terça-feira, 17 de outubro de 2017

VIDA E OBRA DE TERTULIANO DE CARTAGO



TERTULIANO DE CARTAGO

Tertuliano era teólogo, jurista e advogado. Considerado o pai da Igreja Ortodoxa primitiva. Alguns acreditam que era padre, outros, porém, negam essa possibilidade já que seus escritos o apresentam como um homem casado.

Parte de seus escritos contribuiu para o crescimento da Fé nos primeiros séculos. Alguns padres da Igreja, porém, na mesma época ou posteriores definiram alguns ensinamentos de Tertuliano como heresia; grande parte de seus ensinamentos foram aceitos e considerados até hoje pela Igreja Romana.

Podemos dizer que existiu fazes na história deste grande teólogo em que ele combate muitas heresias, mas, também em outras constrói outras teses em que as mesmas são consideradas heréticas.

Sua vida é cheia de polêmicas devido sua posição firme em certos assuntos. Sua conversão mais radical acontece quando toma como exemplo a vida dos mártires cristãos. Em certas fases, aceito, em outras, não aceito pela Igreja, seus escritos ajudaram muito na solidificação da doutrina cristã.   

Nem tudo que defendia a teologia de Tertuliano era mentira, mas, nem tudo também era real verdade. Mas, a grande maioria consiste de raízes sólidas e contribuiu para a solidificação da doutrina cristão hoje:  

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Pouquíssima informação confiável existe sobre a vida de Tertuliano. A maior parte do que sabemos sobre ele vem de seus próprios escritos.

De acordo com a tradição, ele foi criado em Cartago e acreditava ser o filho de um centurião romano, um advogado treinado e um padre ordenado. Estas assertivas se baseiam principalmente em Eusébio de Cesareia na sua História Eclesiástica (livro II, cap. 2) e em São Jerônimo, em De Viris Illustribus (cap. 53).


Jerônimo alegou que o pai de Tertuliano tinha a posição de centurio proconsularis no exército romano na África. Porém, não está claro se esta posição sequer existiu nas forças militares romanas.

Adicionalmente, acredita-se que Tertuliano foi um advogado por causa do uso que ele faz de analogias legais e de uma identificação dele com o jurista Tertulianus, que foi citado no "Digesta seu Pandectae".


Embora Tertuliano utilize conhecimentos da lei romana em seus escritos, seu conhecimento legal não é — de forma demonstrável — superior ao que se esperaria de um romano com educação suficiente. Dos escritos de Tertulianus, um advogado com o mesmo cognome, existem apenas fragmentos e eles não demonstram uma autoria cristã. E Tertulianus só foi confundido com Tertuliano muito depois, por alguns historiadores cristãos.



Também não sabemos se ele era um padre. Em suas obras sobreviventes, ele jamais não descreve ser sacerdote; dá a entender que é um leigo, em trechos de "Exortação à Castidade" (7.3) e "Sobre a Monogamia" (12.2).

A África era famosa por possuir muitos oradores. O que demonstra o estilo de Tertuliano, permeado de arcaísmos e provincialismos, suas imagens brilhantes e o seu temperamento apaixonado. Ele era um estudioso erudito, escreveu pelo menos dois livros em grego. Neles, ele se refere a si mesmo, mas nenhum sobreviveu até hoje. Sua principal área de estudo era a jurisprudência e sua forma de raciocinar revela algumas marcas de um treinamento jurídico mais formal.

Conversão
Acredita-se que sua conversão ao cristianismo tenha acontecido por volta de 197–198, mas seus antecedentes imediatos são desconhecidos, exceto o que pode ser conjecturado a partir de seus escritos. O evento deve ter sido repentino e decisivo, transformando de uma vez sua própria personalidade. É conhecido pelas suas frases fortes, inflamáveis e impactantes.

Ele escreveu que não podia imaginar uma vida verdadeiramente cristã sem um ato consciente e radical de conversão:

“Nós somos da mesma laia e natureza: cristãos são feitos e não nascidos”.

Dois livros endereçados à sua esposa confirmam que ele foi casado com cristã.

No meio de sua vida (por volta de 207 d.C.), ele foi atraído pela "Nova profecia" do Montanismo e parece ter deixado o ramo principal da Igreja. No tempo de Santo Agostinho, um grupo de "tertulianistas" ainda tinham uma basílica em Cartago que, nesta mesma época, passou para a Igreja. Não sabemos se esta é apenas uma outra denominação para os montanistas e se significa que Tertuliano rompeu também com os montanistas e fundou seu próprio grupo. Tertuliano tinha um temperamento violento e enérgico, quase fanático, lutador empedernido e muitos dos seus escritos são polêmicos. Bateu de frente muitas vezes com os líderes eclesiásticos da época.

Este temperamento, impressionado com o exemplo dos mártires, que o levou à conversão, permite compreender a sua passagem ao montanismo.


Resultado de imagem para imagens de tertuliano de cartagoSão Jerônimo diz que Tertuliano morreu com idade bastante avançada, mas não há outra fonte confiável que ateste sua sobrevivência além do ano estimado de 220 d.C.. À despeito de seu cisma com a ortodoxia da Igreja, ele continuou a escrever contra as heresias, especialmente o Gnosticismo. Assim, através de suas obras doutrinárias que publicou, Tertuliano se tornou professor de Cipriano de Cartago e o predecessor de Santo Agostinho que, por sua vez, se tornou o principal fundador da teologia latina.



Podemos dividir o conjunto das suas obras em três grandes grupos:

Escritos apologéticos (de defesa da fé contra os opositores): Aos pagãos, Apologeticum (a sua obra mais conhecida), O testemunho da alma, Contra Escápula, Contra os judeus.
Escritos polémicos: A prescrição dos hereges, Contra Marcião, Contra Hermógenes, Contra os valentinianos, O baptismo, Scorpiace, A carne de Cristo, A ressurreição da carne, Contra Práxeas, A alma.
Escritos disciplinares, morais e ascéticos: Aos mártires, Os espetáculos, O vestido das mulheres, A oração, A paciência, A penitência, À esposa, A exortação da castidade, A monogamia, O véu das virgens, A coroa, A fuga na perseguição, A idolatria, O jejum, A pudicícia, O manto.
Apesar de ser considerado por muitos o fundador da teologia ocidental, a verdade é que tal designação é exagerada, porque Tertuliano não tem propriamente um sistema teológico. De facto, para isso faltou-lhe o equilíbrio necessário para organizar os vários artigos da fé, assim como a preocupação pela coerência, pois não era do seu interesse conciliar a fé com a razão humana.

A fé e a filosofia
Para Tertuliano, a questão das relações entre a fé e a filosofia nem sequer se colocavam, pois entre ambas nada existia de comum. A filosofia era vista como adversária da fé, e os filósofos antigos como patriarcas dos hereges. Para ele, de facto, fé e razão opõem-se, e podemos encontrar na filosofia a origem de todos os desvios da fé. No entanto, é forçado a reconhecer que algumas vezes os filósofos pensaram como os cristãos, e denuncia algumas influências de correntes filosóficas antigas, nomeadamente do Estoicismo.

É bem conhecida a frase "credo quia absurdum". Apesar de ela não se encontrar nos escritos de Tertuliano, mas apenas algumas semelhantes, ela condensa bem o seu pensamento acerca da razão. Note-se que o seu significado é não apenas "creio embora seja absurdo", mas sim "creio porque é absurdo". A verdadeira fé tem de se opor à razão.

A teologia e o direito
Tertuliano era jurista, advogado, e isso se refletiu em sua teologia e em seus escritos de duas maneiras:

Quanto ao método argumentação: Nascia na Igreja a procura de uma argumentação precisa e cerrada, sem falhas, à imagem daquela usada nos tribunais. Foi Tertuliano que usou contra os hereges o argumento da prescriptio, que mostrava que apenas a Igreja unida a Roma provinha das origens, enquanto todos os outros teriam surgido depois e seriam, por isso, falsificadores;
Quanto à linguagem: Tertuliano introduziu na teologia latina, e na da Igreja em geral, uma série de termos e conceitos provenientes do direito. Concebeu a vida cristã e a salvação à semelhança de um processo penal, em que Deus é o legislador, o Evangelho a lei, quem obedece recebe a compensação, quem desobedece torna-se culpado e é castigado. Tertuliano introduziu ou consagrou algumas distinções importantes, como por exemplo a de preceito e conselho evangélico.

A regra da fé
Para Tertuliano, a regra da fé constitui-se como lei da fé. Nos seus escritos encontramos fórmulas de dois elementos, com menção do Pai e do Filho, e outras de três, que acrescentam o Espírito Santo. As várias fórmulas apresentadas por Tertuliano, semelhantes entre si na forma e no conteúdo, mostram a existência dum resumo da fé próximo do símbolo batismal.

A Trindade

Tertuliano, apesar de ter dotado a teologia trinitária dum vocabulário preciso, e de ter procurado a exatidão, não se livrou de algumas ambiguidades e deficiências.O maior contributo de Tertuliano para a teologia foi a sua reflexão acerca do mistério trinitário. Criou um vocabulário que passou a fazer parte da linguagem oficial da teologia cristã. Foi ele que introduziu a palavra “Trinitas”, como complemento da “Unitas”.


Segundo Tertuliano, Pai, Filho e Espírito Santo são um só Deus porque uma só é a substância, um só estado (status) e um só poder. Mas, por outro lado, distinguem-se, sem separação, pelo grau, pela forma e pela espécie (manifestação). Tertuliano introduz assim o termo “pessoa”, (persona), para significar cada um dos três, considerado individualmente. Este vocabulário passou a vigorar, até hoje, para referir as realidades trinitárias. No entanto, Tertuliano deixa transparecer alguma influência subordinacionista. A Igreja Católica e grande parte das denominações cristãs aceitam a doutrina da Trindade porque ela é bíblica e claramente comprovada nos evangelhos.


Embora o nome "Trindade" não apareça claramente na Sagrada Escritura, Jesus várias vezes faz referências a Ela ao falar de Deus Pai, ele o Filho e o Espírito Santo. Em Mateus 28, 19 mandou que os Apóstolos quando batizassem, o fizessem  em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tertuliano apenas definiu as reais pessoas distintas de Deus, que é Único, nas três pessoas reveladas por Jesus. E o fez de forma precisa, com argumentos sólidos e hoje todas as denominações para serem consideradas igrejas cristãs tem que admitir e professar a fé na Trindade. Quando falamos em Santíssima Trindade, na verdade, estamos nos referindo a um só Deus, um só Senhor, a nós apresentados como três pessoas  distintas, sendo então, um só Senhor, um só Deus um só poder, uma só substância, uma só comunhão.  


Ao falar da geração do Filho, sem querer comprometer a sua divindade, admite uma certa gradação, desde uma fase anterior à criação, em que o Logos de Deus se contempla a Si mesmo, para passar a contemplar a economia salvífica, e é engendrado de forma imanente em Deus, até à criação, em que a Palavra se realiza como tal ao ser proferida. Cristo é, assim, o primogênito do Pai, gerado antes de todas as coisas, mas não é eterno. O Filho é como que uma porção ou emanação do Pai.

Cristologia

Tertuliano formulou algumas doutrinas relativas à pessoa de Cristo, que haviam de ser reconhecidas mais tarde em concílios, de tal modo que podemos dizer que a sua cristologia tem os méritos da sua teologia trinitária, sem os seus defeitos. Tertuliano afirma com clareza as duas naturezas de Cristo, sem confusão entre as duas, nem redução de alguma delas. Nisso, proclama já o que mais tarde havia de ser solenemente afirmado no Concílio de Calcedônia (451) Jesus Cristo é verdadeiramente Homem e verdadeiramente Deus, nascido do Pai, gerado, não criado, consubstancial ao Pai.

Mariologia

Na sequência da sua cristologia, Tertuliano acentua que Maria deu realmente à luz o Verbo Encarnado. Reconhece que ela era virgem quando concebeu mas, para lutar contra a cristologia doceta, que defendia que o nascimento de Jesus tinha sido apenas aparente, nega a virgindade de Maria no parto e após o parto (pois isso parecia-lhe dar argumentos ao adversário). Do mesmo modo, entende que os “irmãos de Jesus” são filhos de Maria. Isso levou sérios conflitos na Igreja. Apesar de tudo, Tertuliano proclama Maria como a nova Eva.

Em Éfeso, no ano 431, Maria recebeu o nome de “Theotokos”, palavra grega que diz exatamente “Mãe de Deus”, e foi julgado insuficiente o título de “Christotokos”, ou seja “Mãe de Cristo ou Deus Filho ”.  Claro Maria não é mãe de Deus Pai, e sim, mãe de Deus Filho, Jesus Cristo.



A Igreja não reconheceu a última parte desse ensinamento de Tertuliano e em 1854  proclamou dogma da Imaculada Conceição de Maria no ano 1854.

A Igreja proclamou como verdade de fé que Maria foi concebida sem a mancha do pecado original; e afirmando que Jesus é o filho único de Maria e retirou a hipótese de que ela teve mais filhos com José, entendendo o termo "irmãos" como sendo os primos, parentes próximos, ou conterrâneos de Jesus. Já que o discípulo João descreve em seu evangelho que Jesus antes de entregar o espírito na Cruz entregou-a aos cuidados dele. (Jo19, 25-27); Se Maria tivesse outros filhos Jesus não precisaria fazer isso. No entanto,  João escreveu que  dia em diante ele a levou para sua casa. A Tradição conta que Maria, após a morte de Jesus, foi morar em Jerusalém e depois mudou-se para Éfeso e lá permaneceu até sua morte. E não menciona mais sobre se os prováveis irmãos de Jesus a tenham visitado. Também o fato de que os chamados "irmãos de Jesus" só aparece uma vez no evangelho dando a impressão que se referia aos parentes próximos de Jesus. Era costume dos judeus chamarem entre si de irmãos.

O Evangelho apócrifo de Tiago descreve que Maria morreu na companhia dos Apóstolos e não faz nenhuma menção aos irmãos. Mas, Tiago descreve que José antes de casar-se com Maria, era viúvo e teve filhos do primeiro casamento, quando casou com Maria já tinha idade avançada. Pode ser que esses "irmãos" de que a Bíblia fala seja os considerados irmãos de Jesus por parte de José. Por isso os  demais Padres da Igreja derrubaram essa segunda arte do ensinamento de Tertuliano.          

Interessante observar que embora Tertuliano não acreditasse na virgindade de Maria após o parto, pois a Igreja só decidiu o dogma da Imaculada Conceição muitos séculos depois, ele continuou sendo aceito pela Igreja Romana. Suas ideias não causaram, divisões. Ao contrário do protestantismo que defende essa mesma de Tertuliano, mas, separou-se da Igreja.         

Eclesiologia - algumas divergências
Na primeira fase, Tertuliano considera a Igreja como Mãe, numa expressão de extremo respeito e veneração. Tal como Eva foi formada da costela de Adão, também a Igreja teve a sua origem na chaga do lado de Cristo. A Igreja é guardiã de Fé e da Revelação. Assim, as Escrituras pertencem-lhe, e só ela mantém o ensinamento dos Apóstolos e pode transmiti-lo. Esta concepção, do período católico de Tertuliano, é ortodoxa, e semelhante à defendida por Irineu de Lyon.


Na sua segunda fase montanista, porém, torna-se visivelmente herege, concebendo a Igreja como um corpo puramente espiritual, de tal modo que bastam dois ou três cristãos para que se possa dizer que se manifesta a totalidade da Igreja una. Essa seria a Igreja do Espírito, oposta à “Igreja dos bispos”. É por esta teoria que Tertuliano, já herege, substitui a da sucessão apostólica. Tertuliano não aceitava mais a Igreja como instituição e com sua hierarquia. Ele acreditava a Igreja apenas como um corpo espiritual. 

A penitência
Tertuliano fornece-nos pormenores importantes acerca da disciplina penitencial da Igreja, mas a sua teologia da penitência sofre das mesmas contradições e insuficiências da sua eclesiologia. Mas é o primeiro a descrever concretamente com clareza o processo e as formas da penitência. Há possibilidade duma nova conversão após o batismo, conseguida na sequência duma confissão pública do pecado. Ao pedir perdão, o pecador usufrui da intercessão da Igreja e recebe a absolvição final pela pessoa do bispo. Na sua fase católica, Tertuliano mostra considerar que todo o pecador, por maior que fosse, tinha direito a esta penitência. Distinção entre pecados, só entre corporais e espirituais, consumados ou de desejo, mas todos eles podendo ser perdoados através da Igreja. Quando se torna montanista, porém, passa a considerar alguns pecados irremissíveis, tais como a fornicação, a idolatria e o homicídio. Isto é um dado novo, sem precedentes na disciplina primitiva, e testemunha o aparecimento duma facção rigorista, sob a influência do montanismo. Os católicos argumentavam com a Escritura, mostrando que Cristo perdoou todos os pecados, mesmo os “irremissíveis”. Tertuliano responde a isto dizendo que perdoar tais pecados era um poder pessoal e exclusivo do Salvador, não transmitido à Igreja. Para Tertuliano, por conseguinte, só Deus perdoa os pecados. Confrontado com a passagem do Evangelho em que Cristo concede o poder de ligar e desligar, Tertuliano nega que assim a Igreja detenha o poder das chaves, pois tal poder foi dado pessoalmente só a São Pedro, não a todos os bispos. Quando muito, para o Tertuliano montanista, o poder de perdoar os pecados pertence a “homens espirituais”, não aos bispos.

A Eucaristia
Tertuliano emprega vários nomes para referir a Eucaristia. São contudo poucas as suas referências explícitas a esse mistério. Ao falar dos sacramentos da iniciação cristã, diz que “a carne é alimentada com o Corpo e Sangue de Cristo, para que a alma seja saciada de Deus (De resurrectione mortuorum, 8). Isto manifesta a sua fé na presença real de Cristo na Eucaristia. O mesmo se torna patente quando manifesta a sua indignação por alguns se aproximarem indignamente do Corpo do Senhor.

Tertuliano testemunha também o carácter sacrificial da Eucaristia. Fá-lo ao referir o temor que alguns tinham de quebrar o jejum ao receberem o pão eucarístico. Tertuliano refere o costume de levar a espécie eucarística para casa e tomá-la privadamente. É esta uma das mais antigas alusões à reserva eucarística.

Apesar de algumas palavras ambíguas, Tertuliano manifesta a fé na presença real, que acontece mediante as palavras da instituição, mas salvaguarda a sua natureza sacramental pois refere as espécies como sinal e representação (no sentido de tornar presente). A fé nessa presença real exprime-se ainda na condenação daqueles que negam a realidade do corpo crucificado de Cristo, mas celebram a Eucaristia: tal comportamento é absurdo, pois tratam-se da mesma coisa.

Escatologia

Tertuliano admite a ideia duma penitência da alma após a morte. Somente os mártires escapam a ela. Todos os outros têm um tempo de espera até ao juízo final, e só a intercessão dos vivos lhes pode valer. Tal como os milenaristas, Tertuliano considera que, no fim, os justos, ressuscitados, reinarão durante mil anos com Cristo. Depois do juízo final, os justos estarão com Deus, enquanto que os ímpios irão para o fogo eterno.

Em alguns círculos teológicos, Tertuliano é considerado hoje, como o “maior teólogo” ortodoxo da Igreja primitiva. Outros chegaram a chamá-lo de “bispo pentecostal de Cartago” Porém, é interessante observar, que mesmo entre os críticos, Tertuliano é considerado Inclusive o “mais original” de seu século. Primeiro por reconhecer a Teologia não como um simples satélite girando entorno da filosofia, mais sobre tudo também, como uma “ciência” independente e autônoma, capaz de formular suas próprias ferramentas terminológicas.

Tertuliano é também lembrado como o grande <>, tendo como isso, dois objetivo principal que são; a refutação das gravíssimas e aberrantes acusações que os pagãos dirigiam contra a igreja; e também de maneira positiva e missionária, comunicar a mensagem transformadora do evangelho de cristo, em diálogo com a cultura vigente. Tertuliano aparece no cenário da cristandade um estilo que ele era peculiar, denunciando o comportamento injusto das autoridades políticas de sua época.
Sua inteligência e sólida formação jurídica foram claramente demonstradas em seus escritos. Se em Clemente de Alexandria e Origines nos foi legada uma apologética onde os elementos filosóficos são predominantes, em Tertuliano como certeza o formato é jurídico. Em um mundo da pós-modernidade, onde os valores humanos e sociais estão “carregados” de elementos tais como: pluralismo religioso, relativismo, mutabilidade, anti-dogmatismo, secularismo, anti-metafisicismo, estudar pensamento teológico de Tertuliano constitui um dos grandes desafios para igreja no século XXI, não só pela sua inerentemente originalidade, mais sobre tudo também, pelo conteúdo teológico-ortodoxo dentro quais no gênero, Tertuliano talvez seja o seu “maior” representante. Filosofo do século XIX sobre críticas a Tertuliano, está tentativa erronia de associá-lo ao fideísmo.
Para estes Tertuliano teria descredenciando à capacidade humana (razão) de se chegar ao conhecimento de Deus, para saber mais: GEISLER, N. Enciclopédia de Apologética. São Paulo 2001 Vida (pp.825-826)
As características do homem moderno podem ser detalhadamente explicadas por MONDIN, B. Antropologia Teológica. São Paulo 1979 Paulinas (pp.47-72) Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jo 2:9) www.monergismo.com 


Tertuliano era Africano, isto é, um cidadão da África. Seu nome era Quintus Septimius Florens Tertulianus. Todo historiador que se aventurar em pesquisar o conteúdo biográfico na antiguidade perceberá, logo de início, as dificuldades significativas na tentativa de reconstrução precisa dos fatos.

Sobre Tertuliano, não conhecemos “exatamente” as datas de seu nascimento e de sua morte. No entanto, entre a maioria dos historiadores eclesiásticos existe um “consenso”. Ao que parece, Tertuliano nasceu entre ano 150-155 d.c, e morreu em 220 d.c O mesmo teria se convertido ao evangelho em 195 d.c tendo desenvolvido seu “ministério” por aproximadamente vinte cinco anos. Tertuliano nasceu em Cartago no norte da África. A cidade de Cartago era uma província colonizada pelos romanos, situada a onde hoje é conhecido como Tunísia.

Seu pai (pagão) era um subalterno no exército carteniense. O jovem Tertuliano teve seu estudo universitário em Roma, onde se formou em direito, como advogado ele recebeu uma extensa educação em retórica e leis. (Habilidades indispensáveis por ele mesmo na defesa da fé). Mesmo depois de formado, Tertuliano não regressou a sua terra natal Cartago, mais em Roma, se tornou um profissional bem sucedido. Sobre esse particular o historiador eclesiástico E.E. Cairns, diz: “Conhecedor do grego e do latim, os clássicos lhe era familiar, Tertuliano fez-se um advogado competente, ensinou retórica e advogou em Roma.”


Ao que parece o mesmo chegou a ser procurador na cidade. No entanto é importante salientarmos aqui, que não devemos confundir que Tertuliano de Cartago como o mesmo Jurista famoso que aparece em diversas complicações. Após um logo e frutífero desenvolvimento profissional, no ano 195.d.c, Tertuliano aos quarenta anos se converteu ao evangelho, segundo o próprio Tertuliano, devido o forte impacto dos testemunhos dos mártires do evangelho. Talvez por isso, a celebre frase: (sêmen est snguis christianorum!) “O sangue dos mártires era semente de novos cristãos!”.


Como cristão pela Igreja “oficial,” ao que parece Tertuliano não foi nomeado a nenhum cargo ministerial de relevância. Todavia, nem por isso as suas obras deixaram de produzir um impacto magnetizante na cristandade. Após sua conversão Tertuliano retornou a sua cidade natal. Em Cartago ainda recém convertida, nosso autor africano conheceu a Bíblia muito sedo, e se a apaixonou pelas escrituras, aderindo a esta por toda a sua vida. Tertuliano a conhecia profundamente, e se referia a ela em cada situação que fosse 4 Isso geralmente acontece, devido à precariedade das fontes histórica, somente após o aperfeiçoamento de técnica de: arqueológica, etnológica, lingüísticas etc. - MELLO, L. Antropologia Cultura. Rio de Janeiro 1983 (pp.20-30).


Cartago foi uma colônia funda pelos Fenícios, no século IX a.c, uma região ao norte da África, de fundamental importância estratégica. A florescente civilização cartaginesa chegou em sua “Akmé” à desafiar o poder de Roma. – www.nomismatike.hpg.ig.com.br. CAIRNS, E.E. O Cristianismo Através do Século. São Paulo 2006 Vida (pp.87) 7 TERTULIANO- (Apologético 50,13-) (Apologético 2) Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9) www.monergismo.com  possível, devido tamanha dedicação, logo passou a servir a Igreja como catequista. O historiador eclesiástico Campenhausen, falado da rápida ascendência de Tertuliano diz: “Quando ficamos sabendo da existência de Tertuliano, ele já era um respeitável membro da congregação cristã Cartaginesa. Estava no auge da vida, tinha um feliz matrimônio, e mesmo parecendo não ser rico, tinha um situação econômica independente e segura.” 8 Como não era bispo, se limitava a lecionar aos novos convertidos, podendo até ter “pregado” ocasionalmente a sua congregação. Tendo uma vida economicamente estável, Tertuliano dispunha também agora de tempo para produção de trabalhos literários, como isso, logo começou a publicar seus escritos.

No ano 197 d.c ele lança sua principal obra, <>, onde defende os cristãos que são perseguidos pelo Império Romano. Como foi destacado, se na pena de Clemente e Origines estava à linguagem filosófica, a de Tertuliano como certeza a jurídica. Vejamos um trecho:  
“Oh! Sentença necessariamente confusa! Nega-se a buscá-los como a inocentes; e manda castiga-los, como culpados. Tens misericórdia e és severa; dissimulas e castigas. Como evitas então censurar-te a ti mesma? Se condenas, por não investiga? E se não investiga, por que não absolves?” (Apologética 2) Ao lermos estas linhas, percebemos a mente de um advogado que apela a um tribunal superior contra as sentenças injusta de um tribunal inferior.


Nosso nobre autor Africano, ainda escreveu temas importantíssimos sobre diversos assuntos como: heresia, filosofia, teologia, Vida cristã entre outros. Sempre de modo peculiarmente original, cominando sua fala à, uma ironia mordaz como uma lógica inflexível, desenvolvendo os temas, como uma retórica invejável e um pouco de “sadismo”, a linguagem de Tertuliano chega a ser, para alguns, pavorosa e grandiosa ao mesmo tempo. No entanto, de maneira curiosa, “cinco anos” após sua conversão, por volta do ano 200 d.c Tertuliano rompe como a igreja “oficial” e passando a aderir o movimento montanista. Sobre este particular o papa Bento XVI, disse: “A busca individual da verdade, e a intransigência de seu caráter, o levaram pouco a pouco a abandonar a comunhão com a Igreja e a unir-se à seita do montanismo. Contudo, a originalidade de seu pensamento e a incisiva eficácia de linguagem lhe dá um lugar de particular importância na literatura cristã antiga.”


É justamente isso que aconteceu, o ato de Tertuliano ter ou não abandonado a “igreja” oficial não invalidaram em hipótese alguma relevância de seus escritos, exclusive muitos desses foram escritos no período montanista. 10 Como montanista, Tertuliano não se tornou nada além do que sempre foi. Mesmo debaixo de críticas, ele tinha fundado uma “escola”. Cipriano que era bispo em Cartago, (a quem Tertuliano “carinhosamente” chamava de “o vigário pagão”) nunca se dirigindo ao dissidente pelo nome, mesmo assim, nos 8 CAMPENHAUSEN, H. Os Pais da Igreja. Rio de Janeiro 2005 (pp.182) 9 Sobre a fala de Bento XVI ver: www. Vaticano.com.br/ tertuliano 10 Montanismo: CAIRNS, E.E. Ibid, (pp.82,83) ver também CAMPENHAUSE, H. Ibid. (p, 200). Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jo 2:9) www.monergismo.com 5 bastidores foi seu grande admirador. “Mais tarde seu secretário relatou, que não havia se quer um dia, que Cipriano não lesse as obras de Tertuliano, chamando-o simplesmente de mestre.” (Campenhausen).


 Até hoje existe uma incógnita sobre o que teria levando o celebre Tertuliano, se juntar à seita. Aquém diga que foi o formado ascético, e anticlerical inerente ao movimento, como Tertuliano tinha uma “Inclinação” ao legalismo-judaico, o mesmo viu em Montano um fiel pregador. Outros opinam, que a falta de sistemática-doutrinaria, foi quem levou Tertuliano a acoplar-se ao o movimento dando-o ao mesmo as características que lhe faltavam. Seja pelo sim ou pelo não, nunca saberemos ao certo. Em meados de 220 d.c Tertuliano morre em Cartago, o final de sua vida está perdido no obscurantismo, acredita-se que o mesmo tenha fundado um novo grupo cristão pouco tempo antes de sua morte, o qual levaria o seu nome. 150 anos mais tarde Agostinho, se deparou em Cartago como um grupo independente conhecidos por “tertulianista”, a quem Agostinho conquistou novamente para Igreja cristã.

O certo é que nosso autor Africano morreu como dissidente, todavia, contudo a antiga Igreja latina, “nunca mais” teria um mestre da mesma envergadura. II. AS OBRAS Tendo em vista a época em que ele viveu, pode-se dizer que a produção literária de Tertuliano é considerável.


 No entanto, citaremos aqui apenas os títulos de suas obras mais importantes. Entre as muitas obras estão:


1. Apologeticus (Apologética) concluído em 197 d.c, o livro constitui, sem dúvida alguma a obra mais importante do autor. Dirigidas especificamente aos governantes do Império, Tertuliano defendeu veementemente o cristianismo, contras as perseguições romanas, defendeu a postura ética dos Cristãos, mostrando que os mesmo eram leias cidadãos do império. Com a diplomacia de um advogado que quando falava “filosofava” (Harnack).


2. On Baptismate (Do Batismo) Nesta obra o autor demonstrou o valor agregado ao sacramento do batismo. O mesmo de maneira bem intensa, chega a afirmar que os pecados cometidos depois do batismo, deveriam ser considerados pecados mortais.


3. The prescription against heretics (Prescrição contra os heréticos) Tratado dirigido a os filósofos, o qual o nosso autor tentou mostrar a inutilidade dos métodos filosóficos. Pois enquanto os filósofos procuravam pela verdade, o cristão já a tempo a teria encontrado.


4. De Oratione (Da Oração) Obra composta, por 29 capítulos, foi redigida, entre 198- 200, sendo o mais antigo comentário do pai-nosso. Dirigido a cristandade, contendo orientações para vida cristã, o formato da obra é predominantemente prático. Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jo 2:9) www.monergismo.com


5. De Anima (Tratado sobre a alma) Nosso autor trata do estado das almas antes da ressurreição. Para ele, tanto os crentes como ímpios que morreram, estão em um estado “intermediário” da ressurreição ele diz: “A alma espera sempre o corpo, para sofrer ou gozar” (c.58 P.L. 2, 795s).


6. Adversus Marcion (Contra Marcião) Escrita por volta de 207-08 d.c Tertuliano, condena inúmeras heresias de Marcião, entre elas a erronia tentativa dele, de divisibilidade entre a mensagem veotestamentaria com a neotestamentaria.


7. Adversus Praxeas (Contra Praxeas) A obra recheada de polêmica vigorosa contra certo Praxeas que, supostamente, introduziu em Roma a heresia do monarquianismo ou patripassianismo. Nele Tertuliano informa-nos que, enquanto a heresia de Praxeas varria a Igreja, os crentes de uma forma geral continuavam vivendo na sua simplicidade doutrinaria. 


O PENSAMENTO

Todas as vezes que quisermos nos aventura na tentativa de “reconstruir” um pensamento de um autor. Duas coisas básicas precisam ser feitas:

1) ter um contado direto como o próprio autor.

2) Ler pessoalmente todos os seus escritos. Ah! Cuidado, antes de você sugerir um terceira via, lembre-se nada “superaria” as duas anteriores. Sobre este primeiro momento, (ter um contado com o autor) o Filosofo Platão costumava dizer que essa seria a “melhor forma” de se transmitir uma verdade, pois para ele toda verdade só poderia ser transmitida “via diálogo”, pois segundo ele, existia uma diferenciação abismal entre <> o que se pensa. Ou seja, seria uma espécie de “conflito” entre o <>.

Para Platão, no ato de escrever podia-se perfeitamente até ganhar na quantidade, todavia, com certeza perderíamos na qualidade.

Aqui talvez esteja a maior herança socrática em Platão, pois todo o conceito de educação, proposto por Sócrates nuca foi feito comum monologo (típico dos sofistas), mais sim sempre através de um diálogo. Sócrates era da opinião que o conhecimento não poderia ser transmitido via <> mais deveria ser gerado entro do próprio aluno.


 Partindo desse pressuposto, o mestre ou professor segundo Sócrates, seria uma espécie de “parteiro” do conhecimento.

Sua função seria nada mais nada menos, do que a de levar o seu aluno ou discípulo, chegar por ele mesmo, a suas próprias conclusões, daí isso não significa que Platão não tenha deixado Obras escritas, mesmo porque seria uma contradição a nossa própria realidade ocidental. Todo ocidente, inclusive o próprio Cristianismo “devem” perfeitamente a muitos dos escritos platônicos e neoplatônicos. 12 Sobre a arte de parir ideia proposta por Sócrates, CHAUI, M. Introdução à História da Filosofia. São Paulo 2006 Companhia das letras (pp. 187, 505). Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jo 2:9) www.monergismo.com  a celebres frases “conhece-te a ti mesmo” e "sei que nada sei” como o professor varia isso? traveis de diálogos.


No entanto, como vivenciar isso em se tratado de Tertuliano? Como cumprir esse primeiro requisito básico, para uma “perfeita reconstrução” de seu pensamento teológico? Seria possível viajarmos agora para Cartago, para ouvirmos pessoalmente uma aula de escola dominical com Quintus Septimius Florens Tertulianus?

Absolutamente não. Pois pelo que nos consta, suas datas são de 150 á 220 d.c, hora, isso significa dizer que o mesmo teria hoje, o equivalente a 1.857 anos, creio que seria um ato insano, procuramos um ancião com tamanha idade. Portanto, para que nossa modesta aventura de tentar “reconstruir” o pensamento teológico de Tertuliano não cai em algum “descrédito”, tentaremos cumprir o segundo requisito básico.



Ler pessoalmente todos os seus escritos. Em se tratando do segundo requisito básico, para não dizer que a dificuldade é quase a mesma do primeiro. Todo pesquisador perceberá, logo de início, independentemente de seu idioma natal, a tremenda dificuldade para encontrar a tradução de toda obra de Tertuliano. Primeiro por que a maioria dos livros de Tertuliano foram estritos em Latim, e como o idioma quase foi “extinto” e sepultado junto com a própria Idade Média devidas ideias renascentistas e iluministas do século XVII e XVIII.


Ou seja, o Latim para o homem moderno, passou a ser simplesmente um capricho-litúrgico e saudosista da Igreja Católica Romana. Em segundo lugar, o motivo deixa de ter um caráter filosófico, passando a ter um caráter religioso. Observe bem, Tertuliano pelo que parece nunca teria sido ordenado (oficialmente) a cargo nenhum na Igreja. Nem diácono, nem presbítero e muito menos bispo. Na verdade nosso autor Africano foi um dos únicos mestres da Igreja, do período patrístico, que não fora canonizado “santo” pela Igreja Católica romana. Você já percebeu? Todos outros estão lá: “São Policarpo”, “São Justino”, “São Irineu”, “São Clemente”, “São Origines”, mais nunca um “São Tertuliano”.


Ou seja, a partir do momento que Tertuliano abandonou a Igreja oficial em meados do ano 200 d.c, e passou a aderir ao movimento, herético Montanista, ele nuca mais foi olhado pela a cristandade como os mesmos olhos. Por isso, encontrar todas as suas obras traduzidas para um idioma moderno é sem dúvida nenhuma uma raridade.


Assim sendo, devido à precariedade das fontes, para uma tentativa de “reconstrução” do pensamento do autor, estarei utilizando as Obras: De Oratione e Apologeticus sem dispensar é claro, a ajuda de alguns manuais. Diante disso, os principais temas encontrados em Tertuliano foram:


1)Teologia Apologética.

2) Fideísmo Religioso.

3) Teologia Sistemática.

4) A Vida Cristã.  Embora se atribua as duas frases a Sócrates, somente a segundo seria de sua autoria, pois a primeira segundo a tradição encontrava-se a frente do templo de Delfos. Todavia ambas compõem exatamente o bojo de sua filosofia.

As duas obras citadas, só podem ser encontradas (traduzidas para o português via site).

De Oratione. 2006 www.veritas.com. Trad. Timóteo Anastácio.

E Apologeticus. 2001 www.agnusdei..cjb.net/ the tertullian project. Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jo 2:9) www.monergismo.com

A Teologia Apologética

Quem ler a celebre obra de Tertuliano “Apologeticus”, vai logo perceber, que a mesma esta predominantemente recheada de argumentos jurídicos. Ou seja, se em “Protréptico” de Clemente e em “Adversus Ceslus” de Origines, você se tem como elemento predominante a Filosofia, em “Apologeticus”, isso como certeza não acontece. Pois, assim com os “mestres” alexandrinos usavam, do seu próprio oficio, (de filósofos) para deferem a fé cristã frente ao mundo pagão, nosso autor africano por sua vez, também faria o mesmo.



Como experiente e bem sucedido advogado, tento um currículo de mais de vinte anos de carreira, nosso autor também uso do que tinha de melhor para defesa da nova fé (o direito). Raramente um discurso de defesa cristão conhecera precisão de argumentos jurídicos, semelhante rudeza de ironia, semelhante aspereza de lógica. Partindo desse pressuposto, e com uma admirável habilidade, Tertuliano transforma o seu livro numa espécie de “petição”. Para tanto, o autor começa o livro, louvando as autoridades romanas dizendo: “Sendo constituídos para administração da justiça em vosso elevado tribunal (...) ocupando ali a mais elevada posição no estado.” (apologético- Cap.1) embora alguns reconheçam, essa atitude como simples deboche, não é o que parece. Pois no decurso da obra, Tertuliano este realmente convencido, de que é absolutamente possível, convencer os pagãos da inocência dos cristãos.


Logo após, o mesmo constroem sua defesa, baseada em diversos argumentos, onde não teríamos condições de expor todos, todavia gostaríamos, nessa oportunidade, de destacar pelo menos três argumentos que são: Injustiça das sentenças, contraditoriedade das acusações e insuficiência de provas.

1. Sobre a Injustiça das sentenças, Tertuliano denuncia o comportamento das autoridades romanas, desferindo a elas o seguinte golpe: “Somente os cristãos são proibidos de dizerem algo em sua defesa” (apologética 2) como isso, ele pretende denunciar a injustiça de sentenciar um cristão, sem antes ouvir sua defesa. Seus argumentos são extremamente lógicos: “Se, repetindo, é certo que somos os mais malévolos dos homens, por que nos tratais tão diferentemente de nossos companheiros” (ibidem 2) Ou seja, se é verdade que os cristãos são criminosos, por que não temos o mesmo direito de resposta e de discussão.


2. Por contraditoriedade das acusações, nosso autor se base em demonstrar a diferenciação psicológica entre o cristão e o criminoso dizendo: “vedes que os criminosos ficam ansiosos para se esconderem eles mesmos, evitam aparecer em público, ficam tremendo quando são caçados” (ibidem 2). E não somente isso, ele também mostrou outros diferenciais como, sobre pressões os criminosos não somente mudam de discursos, como também associam seus feitos a forças demoníacas. Tertuliano não perdoa e desfere outro golpe: “mas o que tem isso de Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jo 2:9) www.monergismo.com  - semelhança como o caso dos cristãos? Eles se envergonham ou se lamentam de não terem sidos cristãos há mais tempo. Se são apontados cristãos, disso de gloriam!” (ibidem 2). Seu desejo é levar as autoridades romanas, perceberem a tremenda contraditoriedade, com as quais as mesmas estão inseridas.

3. Em terceiro e último lugar, o autor também levantou a questão da insuficiência de provas contra os cristãos. Para Tertuliano, em quanto à maioria dos criminosos são condenados por causa das provas, em se tratando dos cristãos, não havia prova nenhuma dos crimes, pelos quais os cristãos eram acusados, sobre as acusações de assassinato, incesto e canibalismo ele diz: “Saber quantas crianças foram mortas por cada um de nós, quantos incestos cometemos cada um de nós na escuridão, que cozinheiro, que biltres foram testemunhas de nossos crimes.” (ibidem 2).


Como isso, Tertuliano longe de discutir o objeto próprio de nossa fé (Jesus) tentou construir uma apologética juridicamente correta, para de maneira nobre, defender a fé que uma vez foi dada aos santos.

O Fideísmo Religioso

Tertuliano pode ser considerado um Fideísta religioso?
Vejamos bem. Fideísmo religioso é a crença que afirma que todos os assuntos de fé e crenças religiosas não podem ser apoiados pela razão. O teólogo norte americano, Norman Geisler, define o fideísmo dizendo: “Para eles a religião simplesmente um questão de fé e não pode ser arguida pela razão.”
Para o fideísmo, só é preciso crer. A fé e não a razão é o que Deus exige. Na verdade “ora mais, ora menos, esses questionamentos, sempre estiveram presentes no seio da Igreja”. A constante busca de unicidade entre fé e razão, se configurou através de tentativas históricas de unir a verdadeira religião (cristianismo) como a verdadeira expressão de racionalidade (filosofia).


É Justamente por conta disso, que surgiu a tentativa de identificar Tertuliano ao Fideísmo, pois se existe um argumento no bojo do pensamento teológico de Tertuliano, que mais é “lembrado” pelos críticos é, sem dúvida nenhuma, sua aversão deliberada à filosofia. Vejamos o que o mesmo dizia sobre a mesma:  
“O que Atenas tem haver como Jerusalém” [...] “O que associação tem a Academia como a Igreja” (Adversus Praxeas) sua crítica se acentua ao tratar de Platão, o mesma chega o intitula-lo de “patriarca das heresias”. Todavia uma coisa presa ficar bem claro aqui, todas essas críticas que Tertuliano faz a filosofia, não deve em hipótese alguma, ser confundida como uma crítica a razão propriamente dita, como se o autor estivesse fazendo uma apologia ao uma espécie de 15 São várias acusações, as principais são: Ateísmo, assassinatos.

 Canibalismo e incesto. Para saber mais sobre o fideísmo GEISLER, (p.349). Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9) www.monergismo.com irracionalismo (fideísta). Mesmo porque isso seria tremenda contraditoriedade. Primeiro porque Tertuliano como Advogado e defensor da fé cristã, sabia e conhecia bem o valor da razão humana no exercício apologético. Segundo porque é absolutamente perceptiva em toda sua obra a ênfase que o autor deu a razão, ele diz: “[...] nada mais pode ser adequadamente considerado bom além do que é racionalmente bom, muito menos podem a bondade em si ser abandonada por qualquer irracionalidade” (Adversus Marcion, 1.23)


Ora, se Tertuliano critica tanto a filosofia, e se a filosofia é em sua natureza, a “maior” produção humana de sua racionalidade, como Tertuliano não pode ser considerado um Fideísta? A essa pergunta, teremos pelo menos duas respostas. Na primeira Tertuliano, não pode ser considerado um Fideísta por que o mesmo não somente fez uso constante de raciocínios lógicos em toda sua Teologia, como também advogou em sua causa defendendo-a em seus escritos.

No segundo momento, Tertuliano não pode ser comparado como um Fideísta também, porque toda a sua crítica a filosofia, não está firmada no ceticismo-filosófico, mais sim nos métodos-filosóficos. Campenhause reconhece que o objetivo do autor não é o de desprezar capacidade humana de raciocínio. Tertuliano não tem a intenção de negá-los sua crítica se concentra nos métodos filosóficos, sobre isso ele mesmo diz: “Miserável Aristóteles! Foi ele quem lhe ensinou [aos pagãos] a dialética, arte de construir e de demolir, mutável nas opiniões, forçada nas conjecturas nas argumentações” (prescription, 7.12) Em resumo, Tertuliano opõe-se a toda especulação, como bem afirma Gonzalez: “Para falar de Deus, usando nossas próprias especulações, é perder o tempo e arriscar-se a cair no erro. 18 ” o que na verdade Tertuliano está valorizando é a suficiente superioridade da revelação especial, em relação à filosofia. Ele diz: “Buscarás até que encontres, e uma vez que haja encontrado, há de crer.” (prescription, 9), esse foi o grande diferencial de Tertuliano em relação aos seus contemporâneos, pois, enquanto Justino e Clemente via na filosofia uma revelação diferente mais qualitativamente semelhante a todos Judeus, Tertuliano não compartilhava da mesma ideia, para ele somente na bíblia esta a revelação, e em nem um outro lugar. ou seja, o homem de fé se apega àquilo que Deus tem revelado a bíblia, enquanto o filosofo vive sobre a ilusão de que é capaz de resolver por si mesmo.


Essa é a critica que Tertuliano faz a filosofia, a fé se firma na rocha que é Cristo, a filosofia na arenosidade das construções e desconstruções dialéticas. Em Tertuliano a filosofia só teve sentindo na busca pela verdade, enquanto a verdade (Cristo) não havia se manifestado, todavia na medida em que ela se manifestou, todo conhecimento filosófico perdeu-se o sentido de existir. 17 CAMPENHAUSEN (pp.190-191) 18 GONZALEZ J. A Era dos Mártires. São Paulo 2001 Vida Nova (pp.122-123) Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jo 2:9) www.monergismo.com  VI.

A Teologia Sistemática

Tertuliano também nos legou uma riquíssima herança nos principais dogmas da fé cristã. Basta ler alguns de seus escritos para perceber a presença de vários temas de caráter teológico-sistemático. Nesse afã, Tertuliano pode ser perfeitamente considerado “pensador originário” ele foi o primeiro a tratar a Teologia como uma “ciência” autônoma, capaz de formatar seus próprios conceitos e métodos. Se pararmos para pensar Tertuliano dentro do ponto de vista da teologia sistemática, logo vamos perceber que o mesmo também dá um passo enorme no desenvolvimento de vários dogmas:


1. Da Bibliologia: Tertuliano sempre tratou as escrituras com maior estima. Para ele a Bíblia era não somente a maior revelação de Deus, como também a única a ser confiável. Ao que parece, o mesmo não demonstrava nenhuma afinidade como qualquer tipo de revelação natural. O apego demonstrado pelas escrituras foi tão acentuado em Tertuliano, que o mesmo chegou a considerar a bíblia como patrimônio da Igreja, e somente ela, e mais ninguém poderia manuseá-la.


 2. Da Trindade: Do dogma, Trinitário; ele nos deixou a linguagem adequada em latim para expressar este grande mistério, introduzindo os termos de <> e <> esse termo não somente, proporcionou uma definição eficaz sobre o mistério Pai, Filho e Espírito Santos, como também foram decisivo nos conflitos posteriores com o arianismo.


3. Da Cristologia: Ele Também desenvolveu uma linguagem correta para expressar a dupla natureza de Cristo, o mistério de Cristo, filho de Deus e verdadeiro homem. Essa na verdade era o argumento que Tertuliano sempre defendia. Ou seja, para ele os cristão não deixavam de adoravam os deuses pagãos, simplesmente por deixar, mais o faziam na certeza de terem encontrado o verdadeiro Deus, Cristo Jesus o senhor. Como isso, toda a síntese proposta no credo de Nicéia, devem com certeza as contribuições de Tertuliano. 19 Não há duvida que a Teologia Sistemática, como conhece hoje e quantitativamente diferenciada, de muitos dos argumentos de Tertuliano, no entanto, não a como negar a influência (benéfica) do autor sobre esses mesmo. As concepções da Trindade foram ao logo da historia da teologia, tomando formas mais adequada de definição, porém Tertuliano é sem duvida seu patrono. Essa terminologia (Trindade) foi a principal arma contra o arianismo. Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jo 2:9)


4. Da Pneumatologia: O autor africano fala do Espírito Santo, demonstrado seu caráter pessoal e divino o mesmo diz: “Cremos que, segundo sua promessa, Jesus Cristo enviou por meio do pai o Espírito Santo, o paráclito, o santificado da fé de que crê: no Pai, no Filho e no Espírito Santo” (apologética 2) em Tertuliano o <> não era um emanação da divindade, ou quem sabe uma espécie de “força ativa” de seu poder, como mais tarde afirmaria os “Testemunhas de Jeová”, mais sim a terceira pessoa da trindade, portanto Deus. VII. VIDA CRISTÃ Tertuliano Também é lembrar como um Teólogo do “espírito”.


Ou seja, sua religiosidade não se detinha simplesmente no âmbito acadêmico, mais sobre tudo também para pratica do evangelho. Seus escritos são importantes, por que os mesmos refletem toda uma tendência inerentemente viva na comunidade cristã primitiva, principalmente sobre o valor agregado, no matrimonio, na confissão dos pecados, na oração, na pureza e santidade. Em especial, naqueles períodos de intensa perseguição, onde o pânico poderia prevalecer, Tertuliano exorta à esperança que, segundo seus escritos, não é simplesmente uma virtude, mais sobre tudo, um estilo de vida que envolve cada um dos aspectos da existência cristã.


 Em seu famoso tratado sobre Oração (De Oratione) é absolutamente possível, perceber isso, sobre a pratica da oração ele diz: “A lembrança dos preceitos divinos abre a oração o caminho do céu.” [...] “Que melhor momento para trocar com os irmãos o dom da paz, senão quando a nossa oração se torna mais agradável a Deus?” (Oratione 12,28,2) no continuo exercício da confissão de pecados: “è óbvio que, depois de venera a generosidade de Deus, roguemos também a sua clemência” (ibidem 7,1)


Como isso, Tertuliano tentou expressar de maneira cada vez mais convincente a <> através de uma busca continua, profunda e fecunda. Sempre na certeza e no reconhecimento de que, falar de Deus é antes de tudo experimentar a Deus. Para isso, o cristão, não poderá desenvolver sua religiosidade simplesmente no terreno acadêmico, ou especulativo, muito pelo contrario, sua religiosidade só poderá ser genuína, estiver recalcada também com a pratica. 21 Para saber mais sobre Teologia Sistemática-THIESSEN, H. Palestra em Teologia Sistemática. São Paulo 1994 Impressa Batista Regular ou BANCROFT, E.H. Teologia Elementar. São Paulo 1975 Ibidem. 22 TERTULINO (De Oratione) Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jo 2:9) www.monergismo.com


Avaliação - Em se tratando da teologia apologética de Tertuliano, acredito que raramente um discurso de defesa cristão conhecerá semelhante precisão de argumentos jurídicos, recheadamente composta de rudeza irônica, aspereza de lógica e formulas martelantes. Sobre isso o Teólogo A.Hamman disse: “Se não bastasse convencer o adversário Tertuliano o arrasa-o, pisa-o, humilha-o” mesmo não sendo oficialmente contratado, Tertuliano agiu como se tivesse recebendo honorário.


Todavia, fica aqui uma pequena ressalva. Se o advogado Tertuliano usou sua ferramenta de trabalho (o direito) para defender o evangelho de maneira magistral, quem nos garante que a ferramenta de trabalho dos Filósofos, Clemente e Origines, não faria o mesmo? O fato é que, pela sua atuação polemista, Tertuliano mostrou que assim pensava. Sobre a critica acirrada feita por Tertuliano a Filosofia, eu particularmente não concordar, Por pelo menos dois motivos.


Primeira pela <> do autor sobre disciplina. (Tertuliano é advogado e não filosofo) Segundo pela <> Teológica de uma revelação Natural. Observe bem: Se fizermos uma leitura de Tertuliano despreconceituosa vamos perceber, logo de inicio, que o autor fez uma avaliação míope e unilateral sobre o assunto. Ele realmente acertou ao “reconhecer” o elemento <> (construção e des-contrução) na filosofia. No entanto, o mesmo não foi capaz de perceber que justamente esse movimento dialético, de tese, antítese e Síntese. Ou seja, a filosofia só existe dentro do processo de construir e descontrair idéias, a partir do momento que ele deixa de ser dialética, ele se tornará qualquer outra coisa, menos a coisa que ele é.


A dialética é a arte da “discussão” é por meio dela que o filósofo propõe perguntas e resposta A dialética é a “ferramenta de trabalho” que ele utiliza para discutir e argumentar. Seu objetivo não é a promoção do <>, (não conhecimento da verdade) como argumenta Tertuliano, mais sim à tentativa de demonstração da <> (possibilidade de se chegar à verdade) Esse método de avaliação só pode ser operado, através de opiniões contrarias.


Na dialética predominam-se três elementos:

a) A Tese = argumento.

b) Antítese = refutação.

c) Síntese = tentativa de se fundir os dois primeiros, sem que percam suas individualidades.


Como esse processo não ocorre nas primeiras confrontações, e como o mesmo nunca se dá por estático, geralmente dão se o nome de Construção e des-contrução. É verdade que muitos heréticos se CAMPENHAUSE, (pp. 24 Para saber mais sobre dialética e epistemologia CHAUI, (pp.497500).


No século XVIII o filosofo alemão Georg Hegel. (1770-1831) tentou usar o processo, dialético para dizer que a religião cristã é um dos momentos conclusivo da dinâmica dialética do Absoluto. – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jo 2:9) apropriava da dialética, para levar suas heresias. No entanto, essa não era, a principio, o objetivo da Filosofia. Como advogado formado em uma cultura Romana, Tertuliano acabou por “incorporar” a própria ideologia Romana pragmática e anti-especulativa.


Para ele, já que a revelação esta completa em Cristo, não há razão nenhuma para a dialética ser praticada no cristianismo. O grande problema, que talvez o nosso autor africano não perceba, foi que durante toda a sua vida acadêmico-teológica, o mesmo sempre foi um teólogo dialético. Em sua apologetcus, elementos como: argumentação, refutação, conclusão e lógica são predominantes, antagonicamente a tudo aquilo que dizia ocasionalmente ele disse: “É claro que não negaremos que os filósofos às vezes pensam as mesmas coisas que pensamos” (Treatise on the soud 2).


Contradição? Talvez, para os críticos, toda critica que Tertuliano vazia a filosofia era mais por uma questão pessoal (inveja dos contemporâneos alexandrino26 , que dominavam a filosofia) do que por questões teológicas propriamente ditas. Sem segundo lugar Tertuliano não somente demonstrou sua profunda inaptidão à filosofia, como também omitiu, através dessa, de maneira desenfreada a possibilidade de uma revelação natural. No entanto, a palavra de Deus é clara em nos afirmar dizendo: “os Céus manifestam a gloria de Deus, o firmamento anuncia a obra de suas mãos”. Um dia faz declaração há outro dia, sem linguagem, sem fala ouvem-se suas vozes (Sal. 19:1-3).


Para o apostolo Paulo própria natureza tem em sim mesmo um poder pedagógico fantástico de legitimar a essência da espiritualidade humana. Sem profeta, religião ou cerimônias místicas, ela (natureza) tenta novamente “reconduzir” á humanidade pós-queda ao seu estado original. Que é de um verdadeiro adorador! Bem dizia Tomás de Kempis:  “Não há na natureza criatura tão pequena e vil que não represente a bondade de Deus”.


Agostinho bispo de Hipona dizia: “Todas as coisas milagrosas, que acontece nesse mundo, não são tão milagrosas como o próprio universo” Para ele todos os “milagres” que o homem possa realizar através do seu engenho ou ciência jamais serão maiores que o milagre da criação.


Um dos grandes defensores dessa ideia foi o teólogo medieval Tomais de Aquino. Para Aquino a natureza tem um pode essencialmente pedagógico para nos, Sendo assim Deus usa a natureza para denunciar que não somos fruto de um acaso evolutivo darwinista mais que há no universo o dedo de um sábio e santo construtor Isto é um fato. Algum especialista pode confirmaram isso como o pesquisador e antropólogo, Fr. Schimid diz em uma expedição feita à África: <> o mesmo também foi dito por David Livigstone, fundador e diretor do Instituto de Ciência e Psicologia Evolutiva da Inglaterra << A crença de que existe um Deus, e de uma vida futura a pós a morte, é reconhecida pôr dota a África>>.


Na verdade o que se percebe em Tertuliano é uma pessoa de personalidade moral e intelectual muito forte, em toda a sua vida, ele ofereceu-se de maneira sacrificial, dando como certeza, uma contribuição grandiosa ao pensamento cristão. No entanto, a vida de Tertuliano me faz refletir. Seja pela filosofia, ou pelo seu envolvimento com o movimento montanista. Na verdade mesmo com todos os talentos que tinha nosso mestre Africano, vê-se no final que lhe faltava a simplicidade, a humildade para integra-se, seja na compreensão de novas disciplinas como a filosofia, seja na própria realidade eclesiástica, quando o mesmo se deslocou para o montanismo. Tertuliano demonstrando uma habilidade “invejável” mais com certeza, tinha profundas fraquezas, para ser “tolerante” como os outros e consigo mesmo. Em definitivo que deixar uma frase do “papa” Bento XVI “Quando só se vê seu próprio pensamento em sua grandeza, no final se perde esta grandeza”.



(por: Elias Gomes da Silva TEMA: O Pensamento Teológico de Tertuliano Ribeirão Preto-Sp Monergismo.com – “Ao Senhor pertence a salvação” (Jonas 2:9) www.monergismo.com 2 “O coração tem razões”, que a própria Razão desconhece” Blasé Pascal1)



BIBLIOGRAFIA 1. AGOSTINHO, O Livre- Arbítrio. São Paulo: Paulus 1995 2. BANCROFT, E.H. Teologia Elementar. São Paulo: Impressa Batista Regular 1979. 3. CAMPENHAUSE, H.V. Os Pais da Igreja. Rio de Janeiro: CPAD 2005 4. CAIRNS, E.E. O Cristianismo Através dos Séculos. São Paulo: Vida Nova 2006. 5. CHAUI, M. Introdução à História da Filosofia V1. São Paulo: Companhia da Letras-Edição Revista e Ampliada. 2006. 6. GEISLER, N. Enciclopédia de Apologética. São Paulo: Vida 2005. 7. GOMES, C. F Antologia dos Santos Padres. São Paulo: Paulinas 1975. 8. GOMES, E. Vencendo o Sentimento de Culpa. São Paulo: Edição do autor 2001. 9. GONZALES, J.L. A Era dos Mártires. São Paulo: Vida Nova 2005. 10. _____________ A Era dos Gigantes. São Paulo: Vida Nova 2006. 11. KEMPIS, T. Imitação de Cristo. São Paulo: Martin Claret 2005 12. MELLO, L. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Vozes 1983 13. MONDIM, B. Curso de Filosofia. São Paulo: Paulus 2005. 14. __________ Os Grandes Teólogos do Século Vinte. São Paulo: Paulinas 1987. 15. __________ Antropologia Teologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1979. 16. OLSON, R. História da Teologia Cristã. São Paulo: Vida 2005. 17. SUANA, M. História da Igreja. São Paulo: IBAD 2005. 18. TERTULIANO, S. Apologeticus. Cartago. www.agnusdei..cjb.net 2005 19. ______________ De Oratione. Cartago. www.veritas.com, 2005 20. THIESSEN, H. Palestras em Teologia Sistemática. São Paulo: Impressa Batista Regular 1994.



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Figura contraditória e polêmica - mas de capital importância no contexto da Igreja primitiva - pouco se sabe dos dados biográficos de Tertuliano, em especial as datas de nascimento e morte. Sabe-se apenas que, como boa parte dos Pais da Igreja, Tertuliano era africano, nascido em Cartago (estima-se que por volta do ano 155 d.C.), e segundo Jerônimo relata, era filho de um centurião, o mais alto grau que um não romano podia atingir na hierarquia político-militar romana. Os cartagineses, desde os tempos de Aníbal e das Guerras Púnicas, 3 séculos antes de Cristo, nutriam uma especial aversão a Roma, e o cristianismo, nos seus primórdios, foi um fator aglutinador também do sentimento anti-romano. É nesse contexto que nasceu e viveu Tertuliano. Outra certeza que se tem a respeito dele é que suas obras foram escritas entre os últimos anos do século II e as duas primeiras décadas do século III.

O evangelho chegou à África provavelmente logo após o Pentecostes, já que, entre os ouvintes de Pedro naquele dia havia alguns judeus que habitavam “no Egito e em partes da Líbia” (Atos 2:10), e escavações na cidade de Hadrumeto (hoje na Tunísia) descobriram um cemitério judaico em que havia túmulos cristãos datados dos anos 50 e 60 d.C. O historiador Paul Johnson descreve a Igreja de Cartago como “entusiasmada, imensamente corajosa, completamente desafiadora perante as autoridades seculares, muito perseguida, intransigente, intolerante, virulenta e, de fato, violenta em suas controvérsias. Há evidências de que Cartago e outras áreas do litoral africano tenham sido evangelizadas por essênios e zelotes cristãos, demonstrando, desde o princípio, uma tradição de militância e resistência à autoridade e à perseguição. Tertuliano corporificava essa tradição.” (“História do Cristianismo”, Ed. Imago, 2001, pág. 63).


 A igreja africana, apesar das grandes contribuições que trouxe à Igreja primitiva, era conhecida pela sua combatividade prática e por seu silêncio literário, já que pouco se escrevia a seu respeito, talvez em função da forte perseguição das autoridades romanas. O primeiro documento que se conhece da Igreja africana são as Atas dos mártires de Scilli – sete homens e cinco mulheres – que foram condenados pelo procônsul de Cartago a “morrer pela espada” em 17 de julho de 180. Os mártires de Scilli (um povoado pequeno e nunca mais identificado) conheciam e usavam uma tradução latina das cartas de Paulo, que levavam consigo numa “capsa” (caixa), e as Atas de seu martírio são referidas por Tertuliano em sua obra “Ad Scapulam 3” (vide trecho em destaque abaixo), o que comprova a forte influência que recebeu da primitiva Igreja africana. O fato dos mártires se valerem da versão latina das cartas paulinas revela outra faceta da Igreja africana: embora, muito provavelmente, tenha sido formada a partir das Igrejas orientais, foi nos laços com Roma que ela se solidificou, abandonando, pouco a pouco, suas referências helênicas.

(TRECHO DE “OS MÁRTIRES DE SCILLI”)

Saturnino leu a sentença na tabula: “Speratus, Nartzalus, Cittinus, Donata, Vestia, Secunda e todos os outros confessaram que vivem segundo o rito cristão. Visto que lhes foi oferecido o retorno à religião romana, e eles o recusaram com obstinação, nós os condenamos a morrer pela espada”.

Speratus: “Nós damos graças a Deus”.

"Os mártires de scilli, Tertuliano"

Sabe-se que Tertuliano recebeu sólida formação intelectual, sobretudo em direito e retórica, e, muito provavelmente, foi em Roma que viveu boa parte de seus estudos e primeiros passos na vida profissional, ainda jovem. Tertuliano teve uma juventude tempestuosa, pelo que se depreende de seus escritos. Chegou a se casar e supõe-se, com boa dose de certeza, que foi o exemplo dos mártires, não só os de Scilli, mas os de outras tantas perseguições perpetradas pelos romanos, que foi decisivo na conversão de Tertuliano, aos 40 anos de idade, que imediatamente integrou-se à já sólida Igreja africana, levando a ela o seu fervor de neófito, a sua genialidade e a instabilidade do seu temperamento, que não raro o fazia cometer excessos.

O historiador Paul Johnson chama Tertuliano de “um mestre da prosa, a prosa do retórico e do polemista. Estava em casa tanto no latim quanto no grego, mas costumava fazer uso do primeiro – o primeiro teólogo cristão a fazê-lo. Sua influência, de fato, foi imensa, precisamente por ter criado uma latinidade eclesiástica, dotou-os de sentenças inesquecíveis e influentes: ‘o sangue dos mártires é a semente da igreja’; ‘a unidade dos hereges é o cisma’, ‘creio porque é absurdo’ (“História do Cristianismo”, Ed. Imago, 2001, pág. 63). Fortemente anti-gnóstico, foi Marcião o seu primeiro adversário nesta seara, a quem deplorava suas tentativas de conciliar a doutrina cristã com a filosofia grega: “o que tem Atenas a ver com Jerusalém? Que relação há entre a Academia e a Igreja? O que os hereges têm com os cristãos? Nossas instruções vêm do pórtico de Salomão, que ensinou, ele mesmo, que o Senhor deve ser procurado na simplicidade de coração. Fora com todas as tentativas de criar um cristianismo estoico, platônico e dialético!” (citado por Paul Johnson, ob. cit.). Contra Marcião, Tertuliano revela também o seu estilo irônico, ou, porque não dizer, sarcástico: “Quem sois vós? Desde quando existis? Quem vos deu o direito, ó Marcião, de serdes lenhador no meu bosque? Essa terra é minha, tenho os títulos autênticos, recebidos dos proprietários, a quem essa terra pertenceu: sou herdeiro dos apóstolos” (citado por Adalbert – G. Hamman em “Os Padres da Igreja”, Ed. Paulus, 1995, pág. 72).

O Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs (Ed. Paulus e Ed. Vozes, 2002, págs. 1348/9) traz uma lista de suas principais obras, dividindo-as em três categorias - os escritos apologéticos, os doutrinais e os polêmicos - mas estabelecendo uma ordem cronológica:

“A 197 remontam as duas obras apologéticas mais conhecidas, o “Ad nationes” em 2 livros e o “Apologeticum”, dirigidas contra as acusações dos pagãos à nova religião; nelas a defesa e a ilustração dos costumes e das doutrinas cristãs se alternam com o ataque à conduta e às crenças dos gentios. Incerta é a colocação do “Ad martyras”, breve, mas intensa exortação aos co-irmãos para que afrontem corajosamente a perseguição. Esta está posta no início de 197 ou no curso deste mesmo ano ou em 200-203: nesse caso, os destinatários seriam os mártires conhecidos através de um outro documento antigo, a “Passio Perpetuae et Felicitatis”, um texto atribuído às vezes, pelo redator, ao próprio Tertuliano... não menos problemática a data atribuída ao “Adversus Iudaeos”, que se apresenta como o complemento de uma disputa não terminada entre um cristão e um prosélito judaico e que expõe os pontos principais da controvérsia judaico-cristã. A obra, cuja autenticidade foi longamente discutida, remontaria a 200 dC ou, segundo outros, a antes de 197. Pouco antes de 200 parece ter sido composto o “De testimonio animae, escrito apologético em que se recorre ao testemunho da alma para demonstrar a existência de Deus e outras verdades afirmadas pela doutrina cristã. Entre 200 apr. E 206, coloca-se uma importante série de tratados morais, exatamente: o “De spetaculis” (condenação dos jogos do circo, do estádio e do anfiteatro e proibição para os cristãos de neles participar), o “De oratione (sobre a oração e, especialmente, sobre o Pai-nosso), o “De patientia” (sobre a importância da “patientia” cristã, da qual Jesus deu o exemplo), o “De paenitentia” (sobre a primeira “penitência” necessária para se receber o batismo, e sobre a segunda, depois do sacramento da iniciação, que precede a reconciliação eclesiástica), o “De cultu feminarum” (sobre as vestes e os ornamentos das mulheres e a necessidade da modéstia), em 2 livros, o “Ad uxorem” (espécie de testamento espiritual em que se recomenda à esposa não passar para segundas núpcias), em 2 livros. Ao mesmo período pertencem três outras obras importantes: o “De baptismo”, contra a seita dos cainitas (sobre o batismo, sua necessidade, seus efeitos, invalidade do batismo administrado pelos hereges), o “De praescriptione haereticorum” (sobre o direito de possuir e, por conseguinte, de interpretar as Sagradas Escrituras, reservado não aos hereges, mas somente à Igreja, que é sua herdeira por via de transmissão legítima, tendo ela recebido as Escrituras de Cristo através dos apóstolos; sobre os motivos pelos quais as heresias estão no erro. O termo “praescriptio” de nosso autor foi entendido em pelo menos dois sentidos: com valor propriamente jurídico e com valor retórico e dialético), e, enfim, o “Adversus Hermogenem” (uma defesa da doutrina cristã da criação contra aqueles, entre os gnósticos, que consideravam a matéria como eterna).

Nos tratados compostos a começar de 207, nota-se uma influência sempre mais nítida do montanismo, o movimento religioso frígio, nascido na segunda metade do séc. II, ao qual Tertuliano está para aderir. De 207 a 212 sucedem-se vários escritos de cunho doutrinal e antignóstico: os quatro primeiros livros do “Adversus Marcionem”; trata-se da terceira edição de uma obra já elaborada anteriormente (contra Marcião e contra sua tentativa de separar o Deus do AT daquele do NT), o “Adversus Valentinianos” (exposição e refutação da doutrina dos gnósticos valentinianos), o “De anima” (em torno da natureza, da origem, do desenvolvimento e do destino da alma, que é ao mesmo tempo refutação de doutrinas heréticas), o “De carne Christi” (sobre a Encarnação do Senhor), o “De resurrectione mortuorum” (sobre a segunda vinda de Cristo, a salvação do elemento corporal, destinado a reconjugar-se com a alma, a exigência do Juízo e a necessidade da ressurreição), o V livro do “Adversus Marcionem”. Nesta grande empresa doutrinal, Tertuliano parece querer expor os pontos essenciais da ‘regula fidei’ numa moldura que, de propósito, tem presente as dificuldades e as objeções dos heréticos, e, mais em geral, a mentalidade e a cultura de seu tempo. Outras obras, compostas neste período de sua atividade literária, a mais intensa e fecunda, têm caráter moral e prático, e de modo claro revelam a tendência montanista do escritor: como acontece com o “De exhortatione castitatis” (ainda sobre as segundas núpcias, e com atitude mais rígida), com o “De virginibus velandis” (sobre a necessidade de que as virgens tragam o véu não apenas na igreja, mas em todo lugar público), com o “De corona” (diz respeito à incompatibilidade entre cristianismo e serviço militar), com o “Scorpiace” ou remédio contra a mordida do escorpião, quer dizer, contra a heresia gnóstica, em que se exalta o valor do martírio, negado pelos hereges. O “Ad Scapulam” é como uma carta aberta, de natureza apologética, endereçada ao procônsul da África Scapula que, por volta de 211, havia começado a perseguir os cristãos. Sobre o “De idolatria” (contra toda prática idolátrica e contra toda atividade e profissão que esteja em contato com ela), os pareceres sobre sua data estão divididos: se muitos historiadores consideram ter sido composto pouco antes de 212, outros propõe 197 ou os anos imediatamente posteriores (é o caso também de “De pallio”, uma resposta polêmica e amarga do escritor, dirigida a todos aqueles seus concidadãos que dele zombavam por haver deixado a toga romana para vestir a capa dos filósofos: em sua brevidade e obscuridade, foi classificado ora como o primeiro, ora como o último dos tratados de Tertuliano, ou foi colocado em período intermédio).

No terceiro e último período vemos o escritor africano já militando, contra a Grande Igreja, no partido dos montanistas. Interrogou-se acerca do caráter do montanismo africano comparado com aquele da Frigia; e se alguns críticos supuseram diferenças, outros as negaram, identificando o primeiro com o chamado movimento tertulianista (cf. D. Powell, ‘Tertullianists and Cataphrygians’, p. 33s). A partir de 212-213, enumeram-se o “De fuga in persecutione” (sobre a inadmissibilidade de fuga durante a perseguição), o “Adversus Praxeam” (contra o patripassiano Práxeas expõe-se a doutrina sobre a Trindade), o “De monogamia” (ainda contra as segundas núpcias, com textos mais radicais e tons mais duros), o “De ieiunio adversus Psychicos” (defesa da prática montanista sobre o jejum e ataque aos ‘psychici’, isto é, aos católicos, acusados de serem laxistas) e o “De pudicitia”, onde se nega à Igreja o direito de perdoar os pecados, reservando-o aos “homens espirituais”, quer dizer, aos apóstolos e aos profetas; afirma-se que alguns pecados gravíssimos (idolatria, fornicação, homicídio) não têm perdão de ninguém e se tem em mira um bispo que, a respeito do último ponto, expressou opinião oposta. A parábola religiosa de Tertuliano chegou assim a seu termo: a polêmica posta em ato por ele está em seu cume, tanto que várias ideias que se leem nas últimas obras estão em contradição com outras, de obras precedentes.

Jerônimo (cf. De vir. Ill. 53) assinala um motivo de difícil verificação que teria levado o escritor africano para a órbita do montanismo: a invidia e as contumeliae que o clero de Roma teria manifestado contra ele num conflito de que ignoramos todas as minúcias e que, se realmente existiu, se pode supor ter-se relacionado justamente com questões disciplinares; nem se pode, a este respeito, esquecer do rancor que Jerônimo tinha para com o clero de Roma. Com probabilidade, circunstâncias exteriores e afinidades interiores o induzem a aderir ao movimento montanista, permitindo-lhe levar às extremas consequências um ideal de vida rígido e sem meias medidas, para o qual sempre havia sentido uma propensão; solução esta favorecida certamente pela concepção que Tertuliano tem da moral: seu espírito ascético e rigorista era fustigado pelas noções de justiça, retribuição, temor, também esperança, mas não parece inspirado suficientemente pelo amor. Neste sentido, o montanismo havia apenas acelerado um processo iniciado bem antes, brotado da profunda esperança pessoal do homem.”

Apesar de suas contradições, as obras de Tertuliano são decisivas para a formação e consolidação da Igreja primitiva. Primeiramente, ele valeu-se de seus estudos jurídicos para enriquecer o vocabulário teológico com termos, por assim dizer, importados do Direito, como “sacramentum”, que originalmente significava a entrega de uma soma para um processo e, depois, o juramento militar do recruta. Tertuliano cria um neologismo para essa palavra, aplicando-a ao engajamento batismal a serviço de Cristo. Por “persona” ele traduz o grego “hypostasis” (substância) ou “prosopon” (máscara, pessoa), em que a pessoa representa um papel sem perder sua individualidade, para usar a palavra para as pessoas da Trindade.

Seu livro “A Oração” (“De oratione”) foi o encanto de gerações, onde ele comentava o Pai-Nosso, desenvolvendo as condições e as características da oração cristã. Eis o preâmbulo (Adalbert – G. Hamman em “Os Padres da Igreja”, Ed. Paulus, 1995, pág. 73):

De Deus o espírito,

E de Deus a palavra,

E de Deus a sabedoria,

E o Espírito dos dois. Jesus Cristo, nosso Senhor,

Aos discípulos novos do Novo Testamento

Ordenou uma forma nova de oração.

"A Oração - Tertuliano"

Em sua obra “Apologeticum”, Tertuliano faz as vezes de um advogado ao defender o Cristianismo. Assim, por exemplo, referindo-se à carta na qual Trajano ordenou a Plínio que condenasse aqueles cristãos acusados diante dele, mas que não perseguisse aqueles que não eram acusados, Tertuliano escreve:

“Ó miserável pronunciamento – de acordo com as necessidades do caso, uma incoerência! Proíbe de irem à procura deles como se fossem inocentes, e ordena que sejam punidos como se fossem culpados. É ao mesmo tempo misericordioso e cruel; ao mesmo tempo, ignora e pune. Por que fazes um jogo de palavras contigo mesmo, Ó Julgamento? Se condenas, porque também não inquires. Se não inquires, por que também não absolves?”

"Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, pág. 168"

Prova de sua inteligência argumentativa é também a sua “Praescriptione haereticorum” (“Prescrição contra os hereges”), em que usa a palavra “prescrição” principalmente no seu sentido jurídico, valendo-se de um argumento definitivo: “se os hereges não têm direito de usar as Escrituras, torna-se impossível para eles discutir com aqueles que possuem e defendem a ortodoxia, a fim de desviá-los da verdadeira fé. A “praescriptio” é total: os hereges estão excluídos de qualquer discussão; somente as igrejas ortodoxas e apostólicas têm o direito de determinar o que é e o que não é doutrina cristã” (Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, pág. 173).

Entretanto, é na sua obra “Adversus Praxean” (“Contra Práxeas”), que Tertuliano atingiu o cume de suas formulações teológicas, ao defender a doutrina da Trindade. Pouco se sabe sobre Práxeas, a não ser que ele parece ter vindo da Ásia Menor, onde conhecera tanto o monarquianismo como o montanismo, acabando por aceitar o primeiro e rejeitar o último. Chegando em Roma, Práxeas foi bem recebido, combatendo o montanismo e expandindo o monarquianismo, com ênfase no patripassianismo (o sofrimento e morte do Deus Pai), a ponto de Tertuliano atribuir-lhe essa infame dupla função: “fez um duplo serviço para o diabo em Roma: ele afugentou a profecia, e introduziu a heresia; ela afastou o Espírito e crucificou o Pai”.

Ainda valendo-se da terminologia jurídica que lhe era própria e familiar, Tertuliano desenvolveu a doutrina da Trindade, como Justo L. González expõe:

“De acordo com ele, Práxeas afirma que a distinção entre o Pai e o filho destrói a “monarquia” de Deus, mas não compreende que a unidade da monarquia não requer que ela seja sustentada por uma só pessoa. “Monarquia”, este termo tão acalentado por Práxeas e seus seguidores, significa simplesmente que um governo é único, e nada impede o monarca de ter um filho ou de administrar sua monarquia como lhe aprouver – o que Tertuliano chama de “economia” divina. Além do mais, se o pai assim quiser, o filho pode participar na monarquia sem com isso destruí-la. Portanto, a monarquia divina não é razão para se negar a distinção entre o Pai e o Filho, como alegado pelos “simples, na verdade, eu não quero chamá-los de insensatos e ignorantes”, que negam tal distinção.

Mas isto não é suficiente para refutar Práxeas, pois é necessário explicar como é possível que o Pai, o Filho e o Espírito Santo sejam um só Deus e que eles, contudo, sejam diferentes. Aqui Tertuliano apela novamente para sua formação legal e introduz dois termos que a igreja continuaria usando por muitos séculos: “substância” e “pessoa”. O termo “substância” deve ser entendido aqui, não num sentido metafísico, e sim num sentido legal. Dentro deste contexto, “substância” é a propriedade e o direito que uma pessoa tem de fazer uso dessa propriedade. No caso da monarquia, a substância do Imperador é o Império, e é isto que torna possível para o Imperador partilhar sua substância com seu filho – como de fato era comum no Império Romano. “Pessoa”, por outro lado, deve ser entendida como “pessoa jurídica” e não no sentido comum. “Pessoa” é alguém que tem uma certa “substância”. É possível que várias pessoas participem de uma substância, ou que uma pessoa tenha mais de uma substância – e essa é a essência da doutrina de Tertuliano a respeito não apenas da Trindade, mas também a respeito da pessoa de Cristo.

Com base nesses conceitos de substância e pessoa, Tertuliano afirma a unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo sem negar sua distinção: os três compartilham uma única e indivisível substância, mas isto não os impedem de serem três pessoas diferentes:

Três, no entanto, não em condição, mas em grau; não em substância, mas em forma; não em poder, mas em aspecto; todavia de uma substância, e de uma condição, e de um poder, porque ele é um Deus, de quem três graus e formas e aspectos são contados, sob o nome de Pai, de Filho e de Espírito Santo.”

"Justo L. González, “Uma História do Pensamento Cristão”, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. I, pág. 174/5"

Como lembra Paul Tillich (“História do Pensamento Cristão”, Ed. Aste, 2000, pág. 61), “a palavra ‘trinitas’ aparece pela primeira vez nos escritos de Tertuliano. Embora Deus seja um só, ele nunca está só. Diz Irineu: “Estão sempre com ele a palavra e a sabedoria, o Filho e o Espírito, por meio dos quais tudo fez livre e espontaneamente”. Deus é sempre Deus vivo. Não está só. Não é uma identidade morta. Mantém em si para sempre a palavra e a sabedoria. Palavra e sabedoria são símbolos de sua vida espiritual, da sua auto-manifestação e da sua auto-realiação. O motivo da doutrina da trindade é esse falar de Deus em termos de Deus vivo, para tornar compreensível a presença do divino como fundamento vivo e criativo do mundo. Segundo Irineu, esses três são um só Deus porque possuem uma só ‘dynamis’, um só poder de ser, uma só essência, a mesma potencialidade. “Potencialidade” e “dinâmica” são termos latinos e gregos para significar o que expressamos em nossa língua pelo termo “poder de ser”. Tertuliano falava da substância divina uma desenvolvida na economia triádica. “Economia” significa “construção”. A divindade se constrói eternamente em unidade. Rejeita-se definitivamente qualquer interpretação politeísta da trindade. Por outro lado, Deus se estabelece como ser vivo, em contraposição à identidade morta. Assim Tertuliano empregou a fórmula “una substantia, três personae”, para falar de Deus”.

Entretanto, não foi só quanto à doutrina da Trindade que “Adversus Praxean” foi de suma importância para a formulação teológica da Igreja primitiva. Também no campo da Cristologia, uma frase “solta” do capítulo 27:11, “videmus duplicem statum, non confusum sed coinunctum in uma persona, deum et hominem Iesum” (“vemos o duplo estado, não confuso mas unido em uma só pessoa, o Deus e homem Jesus”) foi de vital importância para a definição da natureza de Jesus no Concílio de Calcedônia, em 451 d.C. Ainda que essa fórmula tenha passada quase desapercebida por mais de 200 anos, e tenha encontrado em Agostinho o seu, por assim dizer, recuperador, defensor e aperfeiçoador, chama a atenção o fato de Tertuliano tê-la colocado mais de dois séculos à frente do símbolo calcedônio, o que revela o quanto era avançado para o seu tempo.

Ainda são nebulosas as razões que teriam levado Tertuliano a aderir ao partido dos montanistas. Supõe-se que tenham sido decisivos para esta adesão o crescente poder da hierarquia eclesiástica e a sua tolerância em lidar com os pecadores arrependidos (principalmente aqueles que negavam a Cristo para fugir à perseguição e depois queriam retornar à Igreja). Jerônimo cita um motivo difícil de se comprovar, que teria levado Tertuliano às trincheiras montanistas: um suposto conflito dele com o clero de Roma. Considerando-se que o próprio Jerônimo vivia às voltas com crises com o clero romano, suas palavras devem ser recebidas com o cuidado da dúvida.

Entretanto, Paul Johnson afirma em seu livro “História do Cristianismo” (ob. cit., págs. 99/100), que:

“A gota d’água para Tertuliano ocorreu, segundo ele, quando um “grande bispo” (provavelmente Calixto de Roma) decidiu que a Igreja tinha o poder de conceder a remissão de pecados após o batismo, mesmo de pecados sérios como o adultério ou mesmo a apostasia. 
Foi essa reivindicação em benefício do clero – para ele, inconcebível – que fez do antigo flagelo dos hereges, por assim dizer, o primeiro protestante. E, uma vez tendo renegado os direitos clericais a esse respeito, Tertuliano foi levado, paulatinamente, a questionar os clamores clericais em favor da discriminação de status na Igreja. Em seus tempos de ortodoxia, atacara os hereges montanistas por ‘conferirem até à laicidade as funções do sacerdócio’. Agora, tendo repudiado o poder penitencial, tornou-se ele próprio montanista, pedindo, em “De Exhortatione Castitatis”: ‘não somos também sacerdotes leigos? (...) a diferença entre a ordem e as pessoas deve-se à autoridade da Igreja e à consagração de sua categoria pela reserva de um ramo especial para a ordem. Porém, onde não há assento de clero, você oferece e batiza e é seu único sacerdote. Pois, onde houver três, existirá uma igreja, ainda que sejam leigos (...) você tem os direitos de um sacerdote em sua própria pessoa, quando surgir necessidade.’

Desse modo, Tertuliano atacava bispos que apresentavam o que ele denominava ‘brandura’ no perdão dos pecadores e decaídos. Apelava para o ‘sacerdócio de todos os crentes’ contra os direitos ‘usurpados’ de determinados oficiantes, o ‘senhorio’ não-espiritual, a ‘tirania’ dos clérigos. Mesmo uma mulher, se falasse com o espírito, tinha mais autoridade, nesse sentido, que o maior dos bispos. Este representava um ofício vazio; ela, o espírito vivo. A divisão era bem delineada – entre uma Igreja de devotos, que administravam a si próprios, e uma imensa ralé de devotos e pecadores, que tinha de ser administrada por um clero profissional. Como poderia tal Igreja ser equacionada com a doutrina clara de S. Paulo? Tertuliano leu Romanos, como fez Lutero. O Espírito, a seu ver, não relaxa seu rigor; julga sem parcialidade nem leniência e jamais perdoará alguém em pecado mortal.”

O seja, Tertuliano não aceitava o poder do sacerdote ordenado de perdoar os pecados porque para ele uma vez a pessoa que fosse batizado não podia mais pecar. Com isso ele entrou em contradição consigo mesmo já que se tornou herege também não podia ser perdoado. Para ele só Deus podia perdoar os pecados e nenhum outro homem. Contrariando assim o próprio Evangelho onde em Jo20, 23 Jesus deu aos apóstolos o poder de perdoar os pecados. Ele também negava a autoridade dos bispos acreditando num sacerdócio comum entre os fiéis,  como acontece hoje no meio do protestantismo. Tertuliano defendia que uma pessoa que cometeu pecado mortal jamais seria perdoado, contrariando a Sagrada Escritura que afirma que Deus perdoa qualquer pecado, desde que seja esteja de coração sincero arrependido, com exceção do pecado contra o Espírito Santo, pois, este consiste em não aceitar a Jesus como Senhor e Salvador. Com isso, ele entra em contradição, pois, tendo se tornado um herege estava em pecado mortal. Logicamente se fosse como ele pensa também não podia ser perdoado. 

A Igreja ensina que qualquer um de nós pode perdoar os pecados uns dos outros, mas, o Sacramento da confissão existe para que busquemos diante de Deus o perdão dos pecados que O ofende diretamente. O sacerdote, representando a Igreja, dá a absolvição em nome de Cristo. E não se pode pedir perdão para Deus sem antes perdoar-se a si mesmo e ao próximo.



A Confissão necessita de:

a) Exame de consciência;

b) Dizer os pecados;

c) Pedido de perdão;

d) Gesto de arrependimento e propósito de emenda.       

“De pudicitia”, uma das últimas obras de Tertuliano (aprox. 217-222) marca o fim do, por assim dizer, ‘rastreamento’ da sua passagem pelo planeta. Depois disso, nada mais se sabe do seu paradeiro ou de seu fim. Provavelmente morreu em Cartago, já que os registros dão conta de que fez uma única viagem a Roma na juventude, não saindo mais da cidade natal. O bispo de Cartago, Cipriano, morto em 258, conhece as obras de Tertuliano, mas não o menciona. Jerônimo esconde-se atrás de um prudente “diz-se que...” para dizer que Tertuliano viveu até idade avançada. No seu “Manual de Patrologia” (Ed. Vozes, 2003, pág. 161), Hubertus R. Drobner afirma que “apesar de tudo Tertuliano foi lido até a Idade Média, sendo considerado tão importante que, segundo o relato de Jerônimo (“De viris illustribus 53”), Cipriano lia diariamente suas obras, e, quando queria tê-las à mão, bastava que dissesse a seu notarius: ‘Traze-me o mestre’”. Agostinho, por fim, afirma que Tertuliano se colocou bem depressa em desacordo com os montanistas e formou pequenos grupos próprios, existentes em Cartago no tempo em que Agostinho vivia (“De haeres. 86”). Desta forma, contribuiu para que Tertuliano fosse reabilitado e reconciliado postumamente com a ortodoxia da Igreja.

TERTULIANO : APOLOGIA

De: José Fernandes VIDAL & amp; Luiz Fernando Karps  Pasquotto
Certamente esta é a obra mais importante de Tertuliano, escrita no ano 197 e dirigida aos governantes do Império Romano. Tertuliano nasceu em Cartago no ano 155 dC e aí exercia sua profissão de advogado quando, em 193, converteu-se ao Cristianismo, passando a exercer também a atividade de catequista junto à Igreja.

Sua inteligência e sólida formação jurídica foram claramente demonstradas nesta obra, em que defende os cristãos, apelando por seu direito de liberdade religiosa, perante o Império Romano cruel e perseguidor. Seus argumentos são expostos de forma lógica e polêmica, visando o convencimento das autoridades a quem é dirigida, questionando a "justiça" aplicada contra os cristãos, transportando a apologética do terreno filosófico para o jurídico.

"Com admirável habilidade, Tertuliano censura os processos jurídicos, em voga, do Poder do Estado 'gentio' contra os cristãos: é suficiente o crime do 'nomem christianum' (=nome 'cristão'), para acarretar a condenação. A todos os criminosos concede-se o direito de defesa; aos cristãos, não. Àqueles, a tortura tenta arrancar uma confissão; aos cristãos, uma apostasia. As suspeitas iníquas espalhadas contra os cristãos, Tertuliano as repele como mentiras, expondo, em contraposição, o essencial concernente à fé cristã e à vida das comunidades. Concluindo, declara ser o Cristianismo uma filosofia; mas os filósofos gentios não são obrigados, como os cristãos, a sacrificar e podem até negar os deuses impunemente. Todavia, as crueldades gentílicas não prejudicarão os cristãos; ao contrário, 'o sangue dos cristãos é como semente que brota'" (B.Altaner/A.Stuiber).

"Raramente um discurso de defesa cristão conhecera semelhante precisão de argumentos jurídicos, semelhante rudeza de ironia, semelhantes aspereza de lógica, onde os argumentos são desferidos como golpes certeiros, as fórmulas marteladas, os dilemas inelutáveis, sem concessões à posição dos poderes públicos ou dos filósofos. Para ele [Tertuliano] não basta convencer o adversário: arrasa-o, pisa-o, humilha-o" (A.Hamman).

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Capítulo I - "A Verdade só deseja uma coisa dos governantes da Terra: não ser condenada sem ser conhecida"
Capítulo II - "Se a lei proíbe que alguém seja condenado sem defesa, por que este direito é negado aos cristãos?"
Capítulo III - "O pai, que costumava ser tão paciente, deserda o filho, agora obediente. Constitui grave ofensa alguém reformar sua vida por causa do nome detestável de 'cristão'..."
Capítulo IV - "Vemos nossos perseguidores cometendo os mesmos crimes de que nos acusam à luz do dia. Como também são culpados dos crimes de que somos acusados sem sentido, são merecedores de castigo e caem no ridículo"
Capítulo V - "Que qualidade de leis são essas que somente os ímpios e injustos, os vis, os sanguinários, os sem sentimentos, os insanos, executam contra nós?"
Capítulo VI - "Estais sempre louvando os tempos antigos e, contudo, a cada dia aceitais novidades em vosso modo de vida"
Capítulo VII - "Somos acusados de realizar um rito sagrado no qual imolamos uma criancinha e então a comemos; e, após o banquete, praticamos incesto e nos entregamos a nossas ímpias luxúrias na imoralidade da escuridão"
Capítulo VIII - "O que fazer se houver cristãos sem parentes cristãos? Não será tido, então, por um verdadeiro seguidor de Cristo, quem não tiver um irmão ou um filho?"
Capítulo IX - "As duas cegueiras caminham juntas. Aqueles que não vêem o que acontece, pensam que veem o que não acontece"
Capítulo X - "Vós nos acusais: 'Não adorais os deuses e não ofereceis sacrifícios aos imperadores'"
Capítulo XI - "Já que não ousais negar que essas vossas divindades foram homens e deveis aceitar que foram elevadas à divindade após sua morte, examinemos no que isso implica"
Capítulo XII - "Não fazemos certamente injúrias àqueles que estamos certos de serem nulidades. O que não existe está em sua inexistência livre do sofrimento"
Capítulo XIII - "Constatando que apenas adorais um ou outro deus, certamente ofendeis àqueles que não adorais. Não podeis dar preferência a um sem desprezar o outro, pois a seleção de um implica na rejeição do outro"
Capítulo XIV - "Voltando a vossos livros dos quais tirais vossos ensinamentos de sabedoria e os nobres deveres da vida, que coisas ridículas ali encontro..."
Capítulo XV - "É certamente entre os devotos de vossa religião que sempre se encontram os perpetradores de sacrilégios; porque os cristãos não entram em vossos templos nem mesmo durante o dia"
Capítulo XVI - "Não podemos de boa vontade deixar passar nenhum boato contra nós sem refutação"
Capítulo XVII - "O objeto de nossa adoração é um Único Deus que, por sua palavra de ordem, sua sabedoria ordenadora, seu poder Todo-Poderoso, tirou do nada toda a matéria de nosso mundo"
Capítulo XVIII - "Um dia, tais coisas foram para nós, também, tema de ridículo. Nós somos de vossa geração e natureza: os homens se tornam, não nascem cristãos!"
Capítulo XIX - "Vossos próprios deuses, vossos próprios tempos, oráculos e ritos sagrados são menos antigos do que a palavra de um único profeta"
Capítulo XX - "Tudo aquilo que vos cerca, estou na vossa dianteira anunciando. Tudo o que vos cerca e agora vedes foi previamente anunciado. Tudo o que agora vedes já foi anteriormente predito aos ouvintes humanos"
Capítulo XXI - "Além da questão da idade, não concordamos com os judeus em suas particularidades com respeito à alimentação, aos dias sagrados, nem mesmo no seu bem conhecido sinal da circuncisão, nem no uso de um nome comum"
Capítulo XXII - "Também afirmamos, com certeza, a existência de certos seres espirituais, cujos nomes não vos são desconhecidos"
Capítulo XXIII - "Zombai como gostais de fazer, mas juntai-vos aos demônios, se assim quereis, em vossas zombarias. Que eles neguem que Cristo virá para julgar cada alma humana que já existiu"
Capítulo XXIV - "Se está claro que vossos deuses não existem, não há religião, no caso. Se não existe religião, somos certamente inocentes de qualquer ofensa contra a religião"
Capítulo XXV - "Mas que loucura agora é atribuir a grandeza do nome romano aos méritos da religião, já que foi depois que Roma se tornou um Império que a religião que ela professa promoveu seu progresso!"
Capítulo XXVI - "A Roma de simplicidade rural dos tempos primitivos é mais velha do que muitos de seus deuses. Ela reinou antes que seu orgulhoso e imenso Capitólio fosse construído"
Capítulo XXVII - "Porque, embora todo o poder dos demônios e maus espíritos nos esteja sujeito, contudo, como escravos, indispostos muitas vezes, estão cheios de medo: assim são eles também"
Capítulo XXVIII - "Entre vós, o povo também jura falso mais facilmente pelo nome de todos os deuses, do que pelo nome do supremo Imperador"
Capítulo XXIX - "Mas sois ímpios a tal ponto que procurais a divindade onde não está, que a procurais naqueles que não a possuem"
Capítulo XXX - "Que o imperador faça guerra ao céu, que leve o céu cativo em seu triunfo, que ponha guardas no céu, que imponha taxas ao céu! Ele não pode!"
Capítulo XXXI - "Aquele de vós que pensa que não nos importamos com o bem-estar de César, investigue as revelações de Deus, examine nossos livros sagrados, os quais nós não escondemos e que por muitas maneiras acabam parando nas mãos daqueles que não são dos nossos"
Capítulo XXXII - "Enquanto nos recusamos jurar pelo gênio de César, nós juramos por sua segurança, a qual é muito mais importante que todo seu gênio. São vocês ignorantes do fato de que esses gênios são chamados “Daimones”, e que o diminutivo “Daimonia” é aplicado a eles?"
Capítulo XXXIII - "Nunca irei chamar o imperador de Deus, e isso porque não está em mim ser culpado de falsidade; ou porque eu não me atrevo a expô-lo ao ridículo; ou porque ele mesmo não desejará ter esse alto nome a ele aplicado. Se ele é somente um homem, é do seu interesse como homem dar a Deus seu alto posto"
Capítulo XXXIV - "Cessem também de atribuir o nome sagrado àquele que necessita de Deus. Se essa adulação mentirosa não é vergonhosa, chamando divino um homem, deixe que ele tenha pavor pelo menos do mau presságio o qual ele suporta"
Capítulo XXXV - "Se não estou enganado, os senadores eram romanos; isto é, eles não eram cristãos. Ainda todos eles, na véspera de suas traições, ofereceram sacrifícios pela vida do imperador, e juraram por ele; uma coisa em profissão e outra em seus corações; e eles tinham o hábito de denominar os cristãos de inimigos do Estado"
[...]

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» CAPÍTULO I

Governantes do Império Romano:

Se, sendo constituídos para a administração da justiça em vosso elevado Tribunal, sob os olhares de todos os cidadãos, ocupando ali a mais elevada posição no Estado, vós não podeis abertamente inquirir e perscrutar, diante de todo o mundo, a verdade real com respeito às perseguições feitas contra os Cristãos
Se, somente nesse caso, tendes receio ou ficais inibidos para exercer vossa autoridade, fazendo uma inquirição pública com os cuidados que promovem a justiça
Se, finalmente, os extremos rigores usados para com nosso povo, recentemente, em julgamentos privados, são para nós obstáculo para defender-nos perante vós
então, seguramente não podeis impedir de a Verdade chegar aos vossos ouvidos pelas vias secretas de um silencioso livro.

A Verdade não tem como apelar para vos fazer verificar sua condição, porque isso não promove vossa curiosidade por Ela. Ela sabe que não é senão uma transeunte na terra, e que entre estranhos, naturalmente encontra inimigos. E, mais do que isso, sabe que sua origem, sua habitação natural, sua esperança, sua recompensa, sua honra estão lá em cima. Uma coisa, enquanto isso, Ela deseja ansiosamente dos governantes terrestres: não ser condenada sem ser conhecida. Que dano pode causar às leis - supremas em seu poder - conceder-lhe ser ouvida? Absolutamente nada lhe prejudicaria e sua supremacia não seria mais distinguida ao condená-la, mesmo depois que Ela apresentasse sua defesa? Mas se for pronunciada uma sentença contra Ela, sem ter sido ouvida, ao lado do ódio de uma injusta ação, vós incorrereis na suspeita merecida de assim agirdes com alguma intenção que é injusta, como não desejando ouvir o que vós não estais capacitados a ouvir e a condenar.

Colocamos isto ante vós como primeira argumentação pela qual insistimos que é injusto vosso ódio ao nome de "Cristão". E a verdadeira razão que parece escusar esta injustiça (eu diria ignorância) ao mesmo tempo a agrava e a condena. Pois que o que é mais injusto do que odiar uma coisa da qual nada sabeis, mesmo se pensais que ela mereça ser odiada? Algo é digno de ódio somente quando se sabe que é merecido. Mas sem esse conhecimento, por que se reivindicar justiça? Pois se deve provar, não pelo simples fato de existir uma aversão, mas pelo conhecimento do assunto. Quando os homens, portanto, cultivam uma aversão simplesmente porque desconhecem inteiramente a natureza da coisa odiada, quem diz que não se trata de uma coisa que exatamente não deveriam odiar?

Assim, confirmamos que tanto são ignorantes enquanto nos odeiam, e odeiam descabidamente, quanto quando continuam em sua ignorância, sendo uma coisa o resultado da outra, se não o instrumento da outra. A prova de sua ignorância, ao mesmo tempo condenando e se escusando de sua injustiça, é esta - odeiam o Cristianismo porque não conhecem nada sobre ele nem querem conhecê-lo antes de pôr a todos debaixo de sua inimizade.

Quantos, se antes foram seus inimigos, tornam-se seus discípulos. Simplesmente aprendendo sobre eles, logo começam a odiar o que antes tinham sido e a professar o que antes tinham odiado. E o número destes é tão grande que atraem a vossa preocupação. O clamor é de que o Estado está cheio de cristãos - que estão nos campos, nos vilarejos, nas ilhas; levantam-se lamentações, como se por alguma calamidade, pessoas de ambos os sexos, de todas as idades e condições, mesmo de classe alta, estão se convertendo à profissão de fé cristã.

Entretanto, não ocorre a ninguém o pensamento de que estão deixando de ver alguma coisa boa. Não se permitem que nenhum pensamento mais justo chegue à sua mente, não desejam fazer um julgamento mais correto. Somente neste caso fica adormecida a curiosidade da natureza humana. Preferem ficar ignorantes, embora aos outros o conhecimento tenha trazido a felicidade.

Anacarse reprova o estúpido prazer de criticar os cultos. Quanto mais não reprovaria ele o julgamento daqueles que sabe que podem ser denunciados por homens que são inteiramente ignorantes! Porque deles precocemente não gostam, não querem saber mais. Assim, prejulgam aquilo que não conhecem até que, caso venham a conhecê-lo, deixem de lhe ter inimizade. Mas isso desde que pesquisem e nada encontrem digno de sua inimizade, quando deixam, então, certamente de ter uma aversão injusta. Entretanto, se seu mau caráter se manifesta, em vez de abandonarem o ódio encontram mais uma forte razão para perseverarem nesse ódio, mesmo sob a própria autoridade da justiça.

Mas argumenta alguém: uma coisa não é boa simplesmente porque as multidões se convertem a ela, pois que quantos são por sua natureza inclinados para o que é mal?! Quantos se desviam para os caminhos do erro?! Isso é verdade, sem dúvida. Contudo uma coisa completamente má, nem mesmo aqueles que a ela são levados ousam defendê-la como boa. A natureza encobre tudo o que é mau com um véu, seja de medo seja de vergonha. Por exemplo, vedes que criminosos ficam ansiosos para se esconderem eles mesmos, evitam de aparecer em público, ficam tremendo quando são caçados, negam sua culpa quando são acusados e, mesmo quando são submetidos à tortura, não confessam facilmente, nem sempre chegam a confessar; e quando não há dúvidas sobre sua culpa, lamentam o que fizeram. Em suas confissões admitem terem sido impelidos por disposições malignas, até põem a culpa seja no destino, seja nas estrelas. São incapazes de reconhecerem que aquilo veio deles, porque eles próprios sabem que aquilo é mau.

Mas o que tem isso de semelhante com o caso dos cristãos? Eles se envergonham ou se lamentam de não terem sido cristãos há mais tempo. Se são apontados cristãos, disso se gloriam. Se são acusados, não oferecem defesa. Interrogados, fazem uma confissão voluntária. Condenados, agradecem... Que espécie de mal é este que não apresenta as peculiaridades comuns do mal, do medo, da vergonha, do subterfúgio, do arrependimento, do remorso? Que mal, que crime é este de que o criminoso se alegra? Serem acusados cristãos é seu mais ardente desejo, serem punidos por isso é sua felicidade! Vós não podeis chamar isto de mal - vós que continuais convictos de nada saberdes do assunto.



» CAPÍTULO II

Se, repetindo, é certo que somos os mais malévolos dos homens, por que nos tratais tão diferentemente de nossos companheiros, ou seja, de outros criminosos, sendo justo que o mesmo crime deva receber o mesmo tratamento? Quando os ataques feitos contra nós são feitos contra outros, a esses são permitidos falarem ou contratar advogados para demonstrar sua inocência. Eles têm plena oportunidade de resposta e de discussão.

De fato, é contra a lei condenar alguém sem defesa e sem audiência. Somente os cristãos são proibidos de dizerem algo em sua defesa, na salvaguarda da verdade, para ajudar ao juiz numa decisão de direito. Tudo o que é levado em conta é que o público, com ódio, pede a confissão de um "nome", não o exame da acusação, enquanto em vossas investigações ordinárias judiciais, no caso de um homem que confessa assassinato, ou sacrilégio, ou incesto, ou traição - para se ter idéia do crime de que são acusados - vós não vos contentais em imediatamente emitir uma sentença. Não o fazeis até que examinais as circunstâncias da confissão, qual é o tipo do crime, quantas vezes, onde, de que maneira, quando ele o fez, quem estava com ele e quem tomou parte com ele no crime.

Nada semelhante é feito em nosso caso, embora as falsidades disseminadas a nosso respeito devessem passar pelo mesmo exame para saber quantas crianças foram mortas por cada um de nós, quantos incestos cometemos cada um de nós na escuridão, que cozinheiros, que biltres foram testemunhas de nossos crimes. Ó que grande glória para os governantes que trouxessem à luz alguns cristãos que tivessem devorado uma centena de crianças. Mas, em vez disso, constatamos que mesmo uma inquisição, no nosso caso, é proibida.

Plínio, o Moço, quando era governador de uma província, tendo condenado alguns cristãos à morte, e abalado outros em sua firmeza, mas ficando aborrecido com o grande número deles, procurou, em última instância, o conselho de Trajano, o imperador reinante, para saber o que fazer com eles. Explicou a seu senhor que, com exceção de uma recusa obstinada de oferecer sacrifícios, nada encontrou em seus cultos religiosos a não ser reuniões de manhã cedinho em que cantavam hinos a Cristo e a Deus, confirmando que, em suas casas, seu modo de vida era um geral compromisso de ser fiel a sua religião, proibido-se assassínios, adultério, desonestidade e outros crimes. A respeito disso, respondeu Trajano que os cristãos não deveriam de modo algum ser procurados, mas se fossem trazidos diante dele, Plínio, deveriam ser punidos.

Ó miserável libertação - de acordo com o caso, uma extrema contradição! Proíbe-se que sejam procurados, na qualidade de inocentes, mas manda-se que sejam punidos como culpados. É ao mesmo tempo misericordioso e cruel. Deixa-os em paz, mas os pune. Por que entrais num jogo de evasão convosco mesmo, ó julgamento? Se vós os condenais, por que também não os inquiris? Se não quereis inquiri-los, por que não os absolveis?

Postos militares estão espalhados através de todas as províncias para prenderem ladrões. Contra traidores e inimigos públicos, todo cidadão é um soldado. Buscas são feitas mesmo de seus aliados e auxiliares. Somente os cristãos não devem ser procurados, embora possam ser levados e acusados diante do juiz, se uma busca tiver um resultado diferente do previsto. Deste modo, condenais um homem que ninguém deseja perseguir, quando ele vos é apresentado e que, nem por isso, merece punição. Suponho que não por sua culpa, mas porque, embora seja proibido persegui-lo, ele foi encontrado.

Novamente, neste caso, não concordais conosco sobre os procedimentos ordinários de julgamento de criminosos, porque, no caso de negarem, aplicais a tortura para forçar uma confissão. Aos cristãos somente torturais para fazê-los negarem. É como se considerásseis que se somos culpados de algum crime, nós o negaríamos, e vós com vossas torturas nos forçaríeis a uma confissão. Mas não podeis pensar assim pois, na verdade, nossos crimes não requerem tal investigação simplesmente porque já estais cientes por nossa confissão do nome de nosso crime. Estais diariamente acostumados a isso, sabendo de que crime se trata porque senão exigiríeis uma confissão completa de como o crime foi executado.

Deste modo, agis com a máxima perversidade quando verificando nossos crimes comprovados por nossa confissão do nome de Cristo, nos levais à tortura para obter nossa confissão que não consiste senão em repudiar tal nome, e que logo deixais de lado os crimes de que nos acusais quando mudamos nossa confissão. Suponho que, embora que acreditando que sejamos os piores dos homens, não desejais que morramos. Não há dúvida de que, por conseguinte, estais habituados a compelir o criminoso a negar e a ordenar o homem culpado de sacrilégio a ser torturado se ele persevera em sua confissão. É esse o sistema? Mas, então, não concordais que sejamos criminosos, e nos declarais inocente, e como inocentes que somos, ficais ansiosos para que não perseveremos na confissão que sabeis que vos fará assumir uma condenação por necessidade, não por justiça.

"Sou cristão" - o homem brada. Ele está lhe dizendo o que é. Vós, porém, desejaríeis ouvi-lo dizer que não o é. Assumindo vosso cargo de autoridade para extorquir a verdade, fazeis o máximo para ouvir uma mentira nossa. "Eu sou o que me perguntais se eu sou" - ele diz. Por que me torturais como criminoso? Eu confesso e vós me torturais. O que me faríeis se tivesse negado? Certamente a outros vós não daríeis crédito se negassem. Quando nós negamos, vós logo acreditais. Essa perversidade vossa faz suspeitar que há um poder escondido no caso, sob a influência do qual agis contra os hábitos, contra a natureza da justiça pública, até mesmo contra as próprias leis. Pois que - salvo se estou errado - as leis obrigam a que os malfeitores sejam procurados e não que sejam acobertados. A lei foi feita para que as pessoas que praticarem um crime sejam condenadas, e não absolvidas. Os decretos do Senado, as instruções dos vossos superiores expõem isso claramente. O poder do qual sois executores é civil, não uma tirânica dominação. Entre tiranos, de fato, os tormentos são utilizados para serem aplicados como punições; entre vós são mitigados como um instrumento de interrogatório. Guardai vossa lei como necessária até que seja obtida a confissão. E se a tortura é antecipada pela confissão, não há necessidade dela. A sentença foi passada. O criminoso deve ser entregue ao castigo devido e não libertado.

De acordo com isso, ninguém anseia pela absolvição do culpado, não é certo desejar isso, e assim ninguém nunca deve ser compelido a negar. Bem, julgais um cristão um homem culpado de todos os crimes, um inimigo dos deuses, do Imperador, das leis, da boa moral de qualquer natureza. Contudo vós o obrigais a negar, porque, assim, podeis absolvê-lo, o que sem sua negação não podeis fazê-lo. Vós agis rápido e desmereceis as leis. Quereis que ele negue sua culpa, porque podeis sempre, mesmo contra sua vontade, isentá-lo de censura e livrar-lhe de toda culpa em referência a seu passado. De onde vem essa estranha perversidade da vossa parte? Como não refletis que uma confissão espontânea é mais digna de crédito do que uma negação obrigada? Considerai que, quando compelido a negar, a negação de um homem pode ser feita de má fé, e se absolvido, ele pode, agora e ali, logo que o julgamento termine, rir da vossa hostilidade; e um cristão igualmente.

Vendo, então, que em tudo agis conosco diferentemente de que com outros criminosos, preocupados por um único objetivo - o de obter de nós o nosso nome (na verdade, não nos cabe dizer que os cristãos não existam) - fica perfeitamente claro que não há crime de nenhuma espécie nesse caso, mas simplesmente um nome que um determinado sistema - mesmo indo contra a verdade - persegue com sua inimizade. E age assim principalmente com o objetivo de se assegurar que os homens não venham a ter como certo o que conhecem como certo e de que esse sistema é completamente desconhecedor.

Consequentemente, também, acontece que eles acreditam em coisas sobre nós das quais não têm prova, sobre as quais não estão inclinados a pesquisar, incomodados com as perseguições. Eles gostariam mais de confiar, pois está provado que nada há de fundamentado contra os cristãos. Com esse nome tão hostil àquele poder rival - seus crimes sendo presumidos, não provados - eles poderiam ser condenados simplesmente por causa de sua própria confissão. Assim, somos levados à tortura se confessamos e somos punidos se perseveramos, mas se negamos somos absolvidos porque toda a hostilidade é contra o nome.

Finalmente, por que ides constar em vossas listas que tal homem é cristão? Por que não também que ele é um criminoso, por que não um culpado de incesto ou de outra coisa vil de que nos acusais? Somente em nosso caso, ficais incomodados ou envergonhados de mencionar os nomes verdadeiros de nossos crimes. Se ser chamado "Cristão" não implica em nenhum crime, esse nome é seguramente muito odiado quando por si só constitui crime.



» CAPÍTULO III

Que pensarmos disto: a maioria do povo tão cega bate suas cabeças contra o odiado nome de "Cristão"? Quando dão testemunho de alguém, eles confundem com aversão o nome de quem testemunham. "Gaio Seius é um bom homem" - diz alguém... "só que é cristão". E outro: "Fico atônito como um homem inteligente como Lúcio pode de repente se tornar cristão". Ninguém considera necessário apreciar se Gaio é bom ou não, e Lúcio, inteligente ou não. O que conta no caso é se é cristão ou se é cristão embora sendo inteligente e bom. Eles louvam o que conhecem e desprezam aquilo que não conhecem. Baseiam seu conhecimento em sua ignorância embora, por justiça, preferencialmente se deva julgar o que é desconhecido pelo que é conhecido e não o que é conhecido pelo que é desconhecido.

Outros, no caso de pessoas a quem conheceram antes de se tornarem cristãos, que conheciam como mundanas, vis, más, aplicam-lhes a marca da qualidade que verdadeiramente apreciam. Na cegueira de sua aversão, tornam-se grosseiros em seu próprio julgamento favorável: "Que mulher era ela! Que temerária! Como era alegre! Como ele era jovem! Que descarado! Como era amigo do prazer! - E pena, se tornaram cristãos!".

Assim, o nome odiado é usado preferencialmente a uma reforma de caráter. Alguns até trocam seus confortos por este ódio, satisfazendo-se em cometer uma injúria para livrarem sua casa dessa sua mais odiosa inimizade. O marido, agora não mais ciumento, expulsa de sua casa a esposa, agora casta. O pai, que costumava ser tão paciente, deserda o filho, agora obediente. O patrão, outrora tão educado, manda embora o servo, agora fiel. Constitui grave ofensa alguém reformar sua vida por causa do nome detestado. Bondade é de menos valor do que o ódio aos Cristãos.

Bem, então, se tal é a aversão pelo nome, que censura podeis vós aplicar a nomes? Que acusação podeis levantar contra simples designações, a não ser que o nome indique algo bárbaro, algo desgraçado, algo vil, algo libidinoso. Mas Cristão, tanto quanto indica o nome, é derivado de "ungido". Sim, e mesmo quando é pronunciado de forma errada por vós, "Chrestianus", - por vós que não sabeis precisamente o nome que odiais - ele lembra doçura e benignidade.

Odiais, portanto, gratuitamente, um nome inocente.

Mas o especial motivo de desagrado com a seita é que lembra o nome de seu Fundador. Existe novidade numa seita religiosa que dá a seus seguidores o nome de seu Mestre? Não são os filósofos designados com o nome dos fundadores de seus sistemas: Platônicos, Epicuristas, Pitagóricos? Não são os Estóicos e Acadêmicos assim chamados também por causa dos lugares nos quais se reuniam e permaneciam? Não são os médicos chamados por nome derivado de Erasistrato, os gramáticos, de Aristarco, e também os cozinheiros, de Apício? E, contudo, a exibição do nome, derivado do fundador original, ou qualquer nome designado por ele, não ofende a ninguém. Não há dúvida de que se a seita se comprova maléfica, e, igualmente, mau seu fundador, isso nos leva a considerar maléfico o nome e nos merece aversão o caráter seja da seita, seja do autor. Antes, contudo, de assumir uma aversão ao nome, sois obrigados a julgar a seita pelo que é o autor, ou o autor pelo que é a seita.

Mas, no caso em questão, sem nenhum exame ou conhecimento de ambos, o simples nome se torna objeto de acusação; o simples nome é atacado, e somente uma palavra leva à condenação da seita e de seu autor, conquanto a ambos desconheceis, mas apenas porque eles têm tal e tal nome, não porque foram julgados por algo errado.


» CAPÍTULO IV

Assim, tendo feito essas observações como se fossem um prefácio, pelo qual mostro em verdadeiras cores a injustiça do nosso inimigo público, posso agora fundamentar o argumento da nossa inocência. E poderei não somente refutar as coisas de que nos acusam, como também replicar aos nossos acusadores, para que assim todos saibam que os Cristãos estão inocentes desses muitos crimes que os acusadores sabem existirem entre eles mesmos, mas que, em suas acusações contra nós, consideram vergonhosos.

São acusações - eu não saberia dizer - dos piores homens contra os melhores, pois eles mesmos praticam tais crimes; [acusam] contra aqueles que, no caso, apenas seriam seus companheiros de pecado!

Poderemos refutar a acusação dos variados crimes de que nos acusam cometer em segredo, já que os vemos cometendo-os à luz do dia. Como são culpados dos crimes de que somos acusados sem sentido, são merecedores de castigo, caindo no ridículo.

Mas, mesmo que nossa verdade vos refute com sucesso em todos os pontos, vem se interpor a autoridade da lei, como um último recurso, e alegais que suas determinações são absolutamente conclusivas, que devem ser obedecidas, embora de má vontade, e preferidas à verdade.

Assim, nesse assunto das leis, me entenderei primeiramente convosco como sendo elas vossos protetores escolhidos. Em primeiro lugar, quando rigidamente as aplicais em vossas declarações: "Não é legal a vossa existência", e, com rigor sem hesitações, ordenais que assim continue, estais demonstrando a dominação violenta e injusta de uma simples tirania, afirmando que algo é ilegal simplesmente porque quereis que seja ilegal e não porque deva ser ilegal. Mas se quereis que seja ilegal porque tal coisa não merece ser legal, sem dúvida não deve ser dada permissão da lei para o que é prejudicial.

Deste modo, de fato, já está definido que o que é benéfico é legítimo. Bem, se eu verificar algo que em vossa lei proíba ser bom porque alguém concluiu assim por opinião prévia, não perdeu seu poder de me proibi-la, embora se tal coisa fosse má poderia me proibi-la?

Se vossa lei incidiu em erro, é de origem humana, julgo. Ela não caiu do céu. Não é admirável que um homem possa errar ao fazer uma lei ou cair em seus sentidos e rejeitá-la? Os Lacedemonios não emendaram as leis do próprio Licurgo, daí causando tal desgosto a seu autor que ele se calou, e se condenou a si próprio à morte por inanição? Não estais, a cada dia, fazendo esforços para iluminar a escuridão da antiguidade, eliminando e aparando com os novos machados das prescrições e editos todos os galhos obsoletos e emaranhados das vossas leis?

Severo, o mais resoluto dos governantes, não acabou somente ontem com as leis do ridículo Pápias, que compeliam as pessoas a terem filhos antes que as leis de Juliano as permitissem contrair matrimônio e isso embora tivessem a autoridade da idade a seu favor? Houve leis, também, antigamente, legislando que as partes contra as quais havia sido dada uma decisão, podiam ser cortadas aos pedaços por seus credores.

Contudo, por consenso comum, aquela crueldade foi posteriormente retirada dos regimentos, e a pena capital se transformou numa marca de vergonha. Adotando o plano de confiscar os bens dos devedores, obteve-se mais tingindo de rubor suas faces do que fazendo jorrar seu sangue. Quantas leis permanecem escondidas fora das vistas que ainda necessitam ser reformadas! Para isso, nem o número de seus anos, nem a dignidade de seus legisladores é que as recomendam, mas simplesmente se são justas; e, portanto, quando sua injustiça é reconhecida, são merecidamente condenadas.

Até mesmo os governantes as condenam. Então, por que os chamamos injustos? Não apenas! Se eles punem simples nomes, podemos chamá-los de irracionais. Mas, eles punem atos! Por que, em nosso caso, castigam atos somente com fundamento num nome enquanto nos outros casos exigem que eles sejam provados não apenas por um nome, mas pelo mal feito?

Eu sou praticante de incesto (assim o dizem): por que não fazem uma investigação sobre isso? Eu sou um matador de crianças, por que não aplicam a tortura para obterem de mim a verdade? Eu sou culpado de crimes contra os deuses, contra os Césares. Por que? Ora, eu sou capaz de me defender, por que sou impedido de ser ouvido em minha própria crença?

Nenhuma lei proíbe examinar minuciosamente os crimes que condenam, porque um juiz nunca aplica um castigo adequado se não está bem seguro de que foi cometido um crime, nem obriga um cidadão às justas cominações da lei, se não sabe a natureza do ato pelo qual está sendo punido. Não é suficiente que a lei seja justa, nem que o juiz esteja convencido da sua justiça. Aqueles dos quais se espera obediência deverão estar convencidos disto também.

Não apenas! Uma lei fica sob forte suspeita se não se preocupam que ela mesma seja examinada e aprovada. É realmente uma má lei se, não homologada, tiranizar os homens.

» CAPÍTULO V

Para mencionar algumas palavras sobre a origem de tais leis das quais estamos agora falando, cito um antigo decreto que diz que nenhum deus deve ser instituído pelo imperador antes que primeiramente seja aprovado pelo Senado.

Marco Emílio passou por essa experiência com relação a seu deus Alburno. E assim, também, acontece em nosso caso, porque entre vós a divindade é deificada por julgamento dos seres humanos. A não ser que os deuses dêem satisfação aos homens, não lhe é reconhecida a divindade: Deus deve ser propício ao homem.

Tibério, em cujos dias surgiu o nome Cristão no mundo, tendo recebido informações da Palestina sobre os acontecimentos que demonstraram claramente a verdade da divindade de Cristo, levou, adequadamente, o assunto ante o Senado com sua própria decisão a favor de Cristo. O Senado rejeitou sua proposta porque não fora ele mesmo que dera sua aprovação. O imperador manteve sua posição ameaçando com sua ira todos os acusadores dos cristãos.

Consultai vossas histórias. Verificareis que Nero foi o primeiro que atacou com seu poder imperial a seita Cristã, fazendo isso, então, principalmente em Roma. Mas nós nos gloriamos de termos nossa condenação lavrada pela hostilidade de tal celerado porque quem quer que saiba quem ele foi, sabe que nada a não ser uma coisa de especial valor seria objeto da condenação de Nero.

Domiciano, igualmente, um homem do tipo de Nero em crueldade, tentou erguer sua mão em nossa perseguição, mas possuía algum sentimento humano; logo pôs um fim ao que havia começado, chegando a restituir os direitos daqueles que havia banido.

Assim, como foram sempre nossos perseguidores, homens injustos, ímpios, desprezíveis, dos quais vós mesmos nada tendes de bom a dizer, vós tendes por costume revalidar suas sentenças sobre nós, os perseguidos. Mas entre tantos príncipes daquele tempo até nossos dias, dotados de alguma sabedoria divina e humana, assinalem um único perseguidor do nome Cristão. Bem pelo contrário, nós trazemos ante vós um que foi seu protetor, como podereis ver examinando as cartas de Marco Aurélio, o mais sério dos imperadores, cartas nas quais ele dá seu testemunho daquela seca na Germânia que terminou com as chuvas obtidas pelas preces dos cristãos, as quais permitiu que os germânicos fossem atacados. Como não pôde suspender a ilegalidade dos cristãos por lei pública, contudo, a seu modo, ele a colocou abertamente de lado e até acrescentou uma sentença de condenação, esta da maior severidade, contra os seus acusadores.

Que qualidade de leis são essas que somente os ímpios e injustos, os vis, os sanguinários, os sem sentimentos, os insanos, executam contra nós? Que Trajano por muito tempo tornou nula proibindo procurar os cristãos? Que nem Adriano, embora dedicado no procurar tudo o que fosse estranho e novo, nem Vespasiano, embora fosse o subjugador dos Judeus, nem Pio, nem Vero, jamais as puseram em prática?

Certamente, seria considerado mais natural homens maus serem aniquilados por bons príncipes, na qualidade de seus naturais inimigos, do que o serem aqueles possuidores de espirito assemelhado com o desses últimos.

» CAPÍTULO VI

Eu gostaria de ter agora esses protetores inteligentes e defensores das leis e instituições de seus ancestrais, em atenção à sua fidelidade, à honra e à submissão que demonstraram às instituições ancestrais; eles que partiram do nada; eles que em nada se afastaram das antigos normas; eles que nada relegaram do que é mais útil e necessário, como normas de uma vida virtuosa.

O que aconteceu com as leis que reprimiam os caros e ostensivos modos de vida? Que proibiam gastar mais do que cem asses num jantar, e mais do que uma ave para se sentar à mesa por algum tempo, e essa não engordada... Que expulsavam severamente um patrício do Senado, como se conta, porque ambicionava ser demasiado poderoso, porque tinha lucrado 10 libras de prata... Que fechavam os teatros logo que começassem a debochar das maneiras do povo... Que não permitiam que a insígnia de dignidades de oficial ou de nobre nascimento fossem precipitadas ou impunemente usurpadas...

Pois eu vejo os jantares de uma centena de asses se apresentarem agora, não como de uma centena de asses, mas que gastam um milhão de sestércios*. Vejo que minas de prata são feitas em cinzas (isso, aliás, é pouco se fossem apenas os senadores que fizessem tal, e não também os libertos ou também os simples espoliadores).

E vejo, também, que um simples teatro não é o suficiente, nem há teatros descobertos: não há dúvidas que isso é em busca desse imoderado luxo, que poderia até não ser desprezível no inverno, pois que os Lacedemonios inventaram seus capotes de lã para os jogos.

Vejo agora que não há diferença entre as vestes das senhoras e das prostitutas. Com respeito às mulheres, na verdade, aquelas leis de vossos pais, que costumavam ser de encorajamento à modéstia e à sobriedade, caíram também em desuso. Então, uma mulher não sabia o que era possuir, com suas economias, ouro no dedo que não fosse o do anel nupcial com que seu marido tinha, de forma sagrada, se comprometido.

Então, a abstinência das mulheres quanto ao vinho era levada tão a sério que uma senhora, por abrir o compartimento da adega de vinho, foi condenada à morte por inanição pelos seus amigos. No tempo de Rômulo, Mecênio matou sua esposa simplesmente por testar um vinho, nada sofrendo por conta dessa morte. Com referência a isso, também, era costume das mulheres beijar seus parentes porque eles podiam ser conhecidos por seu hálito.

Onde está a felicidade da vida de casado, sempre tão desejável, que distinguiam nossos antigos costumes e por consequência dos quais por cerca de 600 anos não houve entre nós um único divórcio?

Agora, as mulheres têm cada membro do corpo carregado com ouro, beber vinho é tão comum entre elas que nunca dão o beijo espontaneamente, e para forçar o divórcio, elas sonham com ele como se fosse a consequência natural do casamento.

As leis de vossos antepassados em sua sabedoria regulavam a respeito dos próprios deuses, as quais, vós, seus descendentes, revogaram.

Os cônsules, por autoridade do Senado, baniram o Pai Baco e seus cultos, não simplesmente da cidade, mas de toda Itália. Os cônsules Piso e Gabínio, decerto não cristãos, impediram os deuses Serápis, Ísis e Arpocrates, com seu amigo cabeça de cão, de serem admitidos no Capitólio, cassando-os de imediato da assembleia dos deuses, destruindo seus altares, expulsando-os do país, ansiosos de evitarem que se espalhassem os vícios em que se baseavam, bem como sua religião lasciva. A esses vós restaurastes e lhes conferistes as mais elevadas honras.

O que aconteceu com vossa religião, que venerava os vossos ancestrais? Em vossas vestes, em vossos alimentos, em vosso estilo de vida, em vossas opiniões, e, por último, em vossos ensinamentos, renunciastes aos vossos progenitores!


Estais sempre louvando os tempos antigos e, contudo, a cada dia aceitais novidades em vosso modo de vida. Falhastes em manter o que devíeis, fazeis isso claramente, porque enquanto abandonastes os bons costumes de vossos pais, retendes e guardais aquilo que não devíeis.



Ainda que pareçais defender tão fielmente a tradição verdadeira, na qual encontrais a principal razão de acusação contra os Cristãos - quero dizer, o zelo na adoração aos deuses, ponto principal no qual os antigos incidiram em erro, embora tenhais reconstruído os altares de Serápis, agora uma divindade romana, e a de Baco, agora tornado um deus da Itália, a quem ofereceis vossas orgias - demonstrarei na ocasião adequada, contudo, que desprezais, negligenciais e destruís a autoridade dos antigos, pondo-a inteiramente de lado.

Vou, por enquanto, responder àquela infame acusação de crimes secretos, trazendo as coisas à luz do dia.

*1 sestércio = 2,5 asses.

» CAPÍTULO VII

Monstros de maldade, somos acusados de realizar um rito sagrado no qual imolamos uma criancinha e então a comemos, e no qual, após o banquete, praticamos incesto, e os cães, nossos alcoviteiros, pois não, apagam as luzes para a imoralidade da escuridão nos entregarmos a nossas ímpias luxurias!

Isto é o que constantemente usais para nos perseguir, embora não tenhais tido o cuidado de elucidar a veracidade de tais coisas de que somos acusados há tanto tempo. Tragam, então, esse assunto à luz do dia, se acreditais nisso, ou não lhes deis crédito, se nunca investigastes a respeito. Com base nesse dissimulado jogo, somos levados a vos esclarecer que não é verdade um fato que não ousais investigar.

Determinais aos executores, no caso dos Cristãos, um processo bem diferente de investigação: não lhes cabe fazer-nos confessar o que praticamos, mas fazer-nos negar o que somos.

Datamos a origem de nossa religião, como antes já mencionamos, do tempo do reino de Tibério. A verdade e a aversão à verdade vieram ao mundo juntas. Assim que a verdade apareceu, foi olhada como inimiga. Nesse processo há tantos loucos quantos desconhecedores dele: os Judeus, como se deve pensar, levados por um espirito de rivalidade; os soldados, levados pelo desejo de extorquir dinheiro; nossos domésticos, levados por sua natureza. Somos diariamente atacados por ensandecidos, diariamente traídos, somos muitas vezes surpreendidos em nossas assembleias ou cultos.

Quem encontrou algo por pequeno que seja sobre uma criança chorando, de acordo com o boato popular? Quem procurou o juiz porque encontrou, de fato, as ensanguentadas faces dos Ciclopes e das Sereias? Quem achou quaisquer traços de impureza em nossas viúvas? Onde está o homem que quando encontrou tais atrocidades as ocultou? Ou será que no ato de levar os culpados à presença do juiz foi subornado para não proceder a acusação?

Se sempre mantemos nossos segredos, quando se tornaram conhecidos do público nossos atos? Então, por quem poderiam ter sido desvendados? De certo não pelos próprios acusados, mesmo porque há o conceito de fidelidade ao silêncio que é sempre própria dos mistérios. Por acaso, os Samotrácios e os Eleusínios não escondem o quanto procuram manter silêncio a respeito do que verdadeiramente são, em seus segredos, promovendo castigos humanos oportunos e ameaçando com a futura ira divina?

Se, então, os Cristãos não são eles próprios os denunciadores de seus crimes, conclui-se que são os estranhos. E como têm conhecimento deles, quando é também um costume universal nas iniciações religiosas manter os profanos à distância e se precaver de testemunhas? A menos que aconteça que esses que são tão perversos tenham menos medo do que seus vizinhos!

Todo mundo sabe que coisa é o boato. Diz um de vossos provérbios: "Dentre todos os males nada voa mais depressa do que o boato". É porque ele dá informações? Ou é porque ele é tremendamente mentiroso? Não é uma coisa que nem mesmo quando diz alguma verdade, apresenta uma mancha de falsidade, seja detratando, seja aumentando, seja mudando o fato em si? E não faz parte de sua natureza sobreviver somente enquanto mente, e viver somente enquanto não há provas? Pois que quando se tem a prova, ele deixa de existir.

Tendo feito seu trabalho de simplesmente espalhar uma notícia, ele conta algo que daí em diante passa a ser um fato e a ser chamado um fato. Então, já ninguém diz, por exemplo: "Dizem que aconteceu em Roma", ou "Há um boato de que ele ganhou uma província", mas "Ele ganhou uma província", e "Aconteceu em Roma". Boato é a verdadeira designação da incerteza, não sobrevive quando o fato é comprovado.

Ninguém exceto um louco confia nele, não é? Um homem prudente nunca acredita naquilo que é duvidoso.

Todo mundo sabe como ele se espalha com afinco, como sobrevive com uma afirmação sem limites, como é apenas uma vez ou outra que mostra sua origem. Por isso, necessita se infiltrar através das línguas e ouvidos. Uma pequena semente obscurece toda a história, de modo que ninguém pode determinar se os lábios dos quais se originou, plantou a semente da falsidade, como muitas vezes acontece, por um espirito de oposição ou por um julgamento suspeito ou por um julgamento confirmado ou, como em alguns casos, por um inato prazer em mentir.

É certo que o tempo traz tudo à luz, como vossos provérbios e ditos testemunham, por um procedimento da natureza da verdade que desvela as coisas de tal modo que nada fica escondido por muito tempo, mesmo embora o boato não o faça.

É justamente, então, o que deve acontecer, com essa fama tão duradoura que denuncia os crimes dos cristãos.

Esse boato é a testemunha que trazeis contra nós - boato que nunca foi capaz de provar a acusação que vez ou outra se espalha e, ultimamente, por simples repetição se fez opinião firmada no mundo.

Assim, confiantemente apelo àquela natureza da verdade, sempre reveladora, contra os que infundadamente levantam tais acusações.

» CAPÍTULO VIII

Atentai agora! Apresentamo-vos a recompensa por essas monstruosidades: os Cristãos prometem a vida eterna. Asseguram-na assim também como é de vossa própria convicção.

Pergunto-vos: se assim crêem, não julgais que se farão dignos de obtê-la mantendo uma consciência igual a que pretendeis ter? Vamos, enfiai vossa faca numa criança que não faz mal a ninguém, toda inocência, amada por todos. Ou se isso é feito por outro, simplesmente assisti de vosso lugar a um ser humano morrendo antes de ter realmente vivido, esperai a partida da última alma, recebei o sangue fresco, molhai com ele vosso pão, participai disso livremente. Enquanto vos reclinais à mesa, vede os lugares que vossa mãe e vossa irmã ocupam. Guardai-os bem, de modo que quando o cão trouxer a escuridão para vos envolver, não possais cometer erro, porque sereis culpados de crime se não cometerdes uma ação de incesto.

Iniciados e marcados em semelhantes barbaridades, tendes a vida eterna! Dizei-me, imploro-vos, é a eternidade digna disso? Se não é, então tais coisas não devem merecer crédito.

Mesmo se acreditastes, nego essa vossa vontade. E mesmo se tivestes a vontade, nego a possibilidade. Por que, então, outros poderiam fazê-lo? Por que não podeis se outros podem? Suponho, então, que somos de uma natureza diferente. Somos Cães ou Monstros? Sois homens tanto quanto os cristãos; se não podeis fazê-lo, não podeis acreditar que outros o possam, porque os cristãos são humanos tanto quanto vós.

Mas os que desconhecem essas coisas certamente estão decepcionados e se prevalecem disso. Estão perfeitamente inscientes de que algo dessa natureza é imputado aos cristãos ou, certamente, se informaram por si próprios e desvendaram o assunto.

Mas, em vez disso, é costume das pessoas que desejam iniciação a ritos sagrados, penso eu, ir antes de tudo ao Líder deles para que lhes possa explicar os preparativos que devem ser feitos. Então, nesse caso, não há dúvidas que este diria: deveis levar uma criança ainda de tenra idade, que não saiba o que é morrer, e possa sorrir sob vossa faca; também, pão para aparar o sangue que correrá. Além disso, candelabros, lâmpadas, e cães, com iscas para atraí-los ao apagar das luzes. E, antes de tudo, deveis levar vossa mãe e vossa irmã convosco. Mas o que fazer se a mãe e a irmã não quiserem ir? Ou se não tiver nem uma nem outra? O que fazer se houver cristãos sem parentes cristãos? Não será tido, suponho, por um verdadeiro seguidor de Cristo, quem não tiver um irmão ou um filho.

E o que acontecerá, se essas coisas todas estiverem dispostas como dito, sem o conhecimento deles? No máximo, depois que eles os virem, se afastam e os perdoam.

Temem - é de se concluir - que pagarão por isso se divulgarem o segredo? De modo algum, antes irão, em tal caso, pedir proteção. Preferirão mesmo - pode-se entender - morrer por suas próprias mãos a viver sob o fardo de tão terrível conhecimento. Admitamos que eles terão medo. Contudo por que eles iriam continuar com a coisa?

Pois é bastante claro que vós não desejaríeis continuar sendo o que nunca quisestes ser, se tivésseis tido prévio conhecimento do assunto.

» CAPÍTULO IX

Eis como posso refutar tais acusações: mostrar-vos-ei práticas que vigoram entre vós, em parte abertamente, em parte secretamente, que vos levaram, talvez, a nos acusar de coisas semelhantes.

Os meninos eram sacrificados abertamente na África a Saturno até o proconsulado de Tibério, que expôs à vista do público os seus sacerdotes crucificados nas árvores sagradas, que lançavam sombras sobre seus templos - tantas eram as cruzes nas quais a justiça exigida aplicou o castigo por seus crimes, como os nossos soldados podem ainda testemunhar, tendo sido, de fato, esta uma obra daquele Procônsul. Até presentemente aquele criminoso culto continua a ser feito, secretamente.

Não seriam somente os Cristãos, estais vendo, que vos menosprezariam, porque com isso tudo o que fazeis nenhum crime foi inteiramente e permanentemente erradicado, nem nenhum de vossos deuses reformou seus costumes. Se Saturno não poupou seus próprios filhos, ele também não poupou os filhos dos outros, e os pais desses, na verdade, tinham, eles mesmos, o hábito de fazer tal oferenda, atendendo contentes ao pedido que lhes era feito, mantendo as crianças satisfeitas na ocasião, para que não morressem aos choros.

Destacamos também que há uma grande diferença entre homicídio e parricídio. Mas homens idosos eram sacrificados a Mercúrio, nas Gálias. Tenho em mãos as lendas táuricas feitas para vossos próprios teatros. Por que, mesmo nesta profundamente religiosa cidade de piedosos descendentes de Enéias, há um certo Júpiter que em vossos jogos é banhado com sangue humano? É o sangue de um lutador feroz, dizeis. Por isso, o sangue de um homem se torna irrelevante? Ou não é mais infame o sangue porque corre das veias de um homem mau? De qualquer modo, é sangue derramado até a morte. Ó Júpiter, vós soi um Cristão, e de fato, por vossa crueldade, digno filho de vosso pai!

Mas com respeito à morte de uma criança, como se não interessasse se fosse cometido para um sagrado culto, ou simplesmente por um impulso próprio (embora haja uma grande diferença, como dissemos, entre parricídio e homicídio), me voltarei para o povo em geral. A quantos - pensai nisso - desses aglomerados de pessoas investindo em busca de sangue Cristão, a quantos, mesmo, de vossos governantes, notáveis por sua justiça para convosco e por suas severas medidas para conosco, posso acusar perante sua consciência do pecado de condenar sua descendência à morte?

Se há alguma diferença no tipo de assassinato, a forma mais cruel é certamente matar por afogamento ou exposição ao frio, à fome e aos cães. Uma costume mais civilizado tem sempre preferido a morte pela espada.

Em nosso caso, para os cristãos, a morte foi de uma vez por todas proibida. Não podemos nem mesmo destruir o feto no útero, porque, mesmo então, o ser humano retira sangue de outras partes de seu corpo para sua subsistência. Impedir um nascimento é simplesmente uma forma mais rápida de matar um homem, não importando se mata a vida de quem já nasceu, ou põe fim a de quem está para nascer. Esse é um homem que está se formando, pois tendes o fruto já em sua semente.

Com relação a alimentos de sangue e de outros tão macabros pratos - Eu não estou seguro onde li isto, em Heródoto, penso - o sangue tirado dos braços e bebido por ambas as partes, constituía um aval ao tratado entre algumas nações. Não estou certo se foi assim bebido no tempo de Catilina. Dizem, também, que entre algumas tribos citas os amigos são comidos por seus amigos. Mas estou indo longe demais de casa.

Atualmente, mesmo entre vós, o sangue consagrado a Bellona, sangue retirado da coxa perfurada e então partilhada, sela a iniciação aos ritos daquela divindade. Que dizer daqueles, também, que nos espetáculos dos gladiadores, para a cura da epilepsia, bebem com gananciosa sede o sangue dos criminosos mortos na arena, assim que corre fresco de seus ferimentos, apressando-se para chegarem aos que lhes pertencem? E daqueles, também, que fazem alimentos no sangue de feras selvagens no lugar dos combates - que têm agudo apetite por ursos e veados? Na luta, esse urso foi molhado com o sangue do homem dilacerado por ele; aquele veado rolou no sangue do gladiador ferido pelas suas chifradas. As entranhas das próprias feras, embora misturadas com indigestas vísceras humanas, são muito procuradas. E de vossos homens disputando carne nutrida por carne humana?

Se vós partilhais de alimentos como esses, em que vossos repastos diferem daqueles de que acusais a nós, cristãos? Aqueles que, com luxúria selvagem, disputam corpos humanos, cometem menor mal porque devoram os vivos? Estão menos contaminados do sangue humano porque degustam aquilo que está para se tornar sangue? Eles se alimentam, isto é evidente, não tanto de crianças, como de adultos.

Ruborizai-vos por vossos vis costumes perante os cristãos, que não têm sequer o sangue de animais entre seus alimentos, alimentos que são simples e naturais, que se abstêm de animais estrangulados ou que morrem de morte natural. E isso pela única razão de que eles não querem se contaminar, nem mesmo de sangue contido nas vísceras.

Para encerrar o assunto com um simples exemplo, vós tentais os cristãos com lingüiças de sangue, exatamente porque estais perfeitamente cientes de que assim tentais fazê-los transgredir o hábito que eles consideram ilegal. E como é irracional acreditar que aqueles sobre os quais bem sabeis que olham com horror a idéia de beber o sangue de bois, estejam ansiosos por sangue de homens. Isso a não ser que vós tenhais saboreado o sangue humano e o achastes mais gostoso!

Sim, realmente, eis aqui um teste que podereis aplicar para descobrir os cristãos, bem como a panela e o censor. Eles poderiam ser testados pelo seu apetite por sangue humano, tanto quanto por sua recusa de oferecer sacrifícios. E assim como poder-se-ia afirmar serem cristãos por sua recusa de beber sangue e sua recusa de oferecer sacrifícios, não haveria necessidade de sangue de homens, tão solicitado como é nas torturas e na condenação dos prisioneiros cristãos.

Ora, quem se entrega mais ao crime de incesto do que aqueles que seguem as instruções do próprio Júpiter? Césio nos diz que os persas mantêm relação carnal ilícita com suas mães. Os macedônios, igualmente, são suspeitos do mesmo; porque ouvindo pela primeira vez a tragédia de Édipo, eles coroaram com mirto o incesto, com exclamações em sua língua.

Ainda atualmente, reflitam quantas oportunidades existem para erros que vos levem a uniões incestuosas - vosso promíscuo relaxamento fornece essas oportunidades. Antes de tudo, abandonais vossas crianças que podem ser levadas por qualquer transeunte compadecido, para os quais elas são totalmente desconhecidas; ou as entregais para serem adotados por aqueles que podem cumprir melhor para elas o papel de pais. Bem, com algum tempo toda a memória do parentesco alienado pode ser esquecida; e quando se faz um erro, a transmissão do incesto poderá até ocorrer - o parentesco e o crime caminhando juntos. Pois, mais tarde, onde estejais, em casa ou fora, nos mares - vossa luxúria está à vossa disposição, com indulgência geral, ou mesmo com uma menor indulgência, e podeis facilmente, e não propositadamente, procriar em algum lugar uma criança, de modo que dessa maneira um parente lançado na corrente da vida poderá vir a ter relação carnal com aqueles que são de sua própria carne, sem ter noção que está ocorrendo incesto no caso.

Uma castidade perseverante e firme nos tem protegido de algo assim, pois, resguardando-nos, como fazemos, de adultérios e todas as infidelidades após o matrimônio, não estamos expostos a infortúnios incestuosos. Alguns de nós - tornando o assunto ainda mais seguro - nos abstemos inteiramente do pecado sensual, pela continência virginal; mesmos meninos nossos tomam tal decisão quando ficam adultos. Se tiverdes notícia de que tais pecados que mencionei existem entre vós, examinem e vejam que eles não existem entre os cristãos.

Os mesmos olhos poderão constatar ambos os fatos. Mas as duas cegueiras caminham juntas. Aqueles que não vêem o que acontece, pensam que vêem o que não acontece. Demonstrarei como ocorre assim em qualquer assunto. Mas, por enquanto deixai-me falar de assuntos que são mais importantes.

» CAPÍTULO X

Vós nos acusais: "Não adorais os deuses e não ofereceis sacrifícios aos imperadores".

Sim, não oferecemos sacrifícios a outros pela mesma razão pela qual não os oferecemos a nós mesmos, ou seja, porque vossos deuses não são, de modo algum, referenciais para nossa adoração. Por isso, somos acusados de sacrilégio e de traição. Esse é o principal fundamento de vossa perseguição contra nós. Sim, é toda a razão de nossa ofensa. É digna, então, de exame a respeito, se não forem nossos juizes a prevenção e a injustiça, pois a prevenção não leva a sério descobrir a verdade, e a injustiça a rejeita simples e totalmente.

Não adoramos vossos deuses porque sabemos que não existem tais divindades. Eis o que, portanto, deveríeis fazer: deveríeis nos intimar a demonstrar a inexistência delas, e, então, provar que elas não merecem adoração, pois somente se vossas divindades fossem comprovadamente verdadeiros deuses, haveria toda obrigação de lhes serem rendidas homenagens divinas.

Punição, igualmente, mereceriam os cristãos, se ficasse evidente que aqueles aos quais recusam adoração são verdadeiramente divinos. Vos dizeis: são deuses. Nós negamos e apelamos para vosso próprio entendimento a respeito. Que ele nos julgue, que ele nos condene, se é incapaz de negar que todas essas vossas divindades não passam de pessoas humanas.

Se vosso entendimento se atreve a negar isso, será refutado por vossos próprios livros de histórias primitivas, pelos quais tomou ciência delas, pois esses livros se constituem incontestáveis testemunhas até nossos dias, seja das cidades onde elas nasceram, seja das regiões nas quais elas deixaram marcas de suas andanças, bem como, comprovadamente elas foram enterradas.

Examinarei agora, um por um, a esses vossos deuses tão numerosos e tão diferentes, novos e antigos, gregos, romanos, estrangeiros, de escravos e de adotados, privados e públicos, machos e fêmeas, rurais e urbanos, marítimos e militares? Não. É inútil até pesquisar todos os seus nomes, de modo que me contento com um resumo, e isso não para vossa informação, mas para que tenhais em mente o que colocastes em vossa coleção, porque indubitavelmente agis como se tivésseis esquecido tudo sobre eles.

Nenhum de vossos deuses é mais antigo do que Saturno. Dele fizestes provir todas as vossas divindades, mesmo aquelas de maior dignidade e mais conhecidas. O que, então, puder ser provado sobre o primeiro, poderá ser aplicado àqueles que dele provieram.

De tempos tão primitivos quanto nos informam os livros, nem o grego Diodoro ou Thallos, nem Cássio Severo nem Cornélio Nepos, bem como nenhum outro escritor que escreveu sobre as coisas sagradas primitivas, se aventurou a dizer que Saturno era alguém mais senão um homem. Tanto quanto esse assunto depende dos fatos, nada mais encontro digno de fé do que isso: sabemos o local no qual Saturno se estabeleceu na própria Itália, após muitas expedições e após compartilhar da hospitalidade da Ática, obtendo cordiais boas vindas de Jano ou Janis como os Sálicos o chamavam. A montanha na qual ele morou foi chamada Satúrnio. A cidade que ele fundou foi denominada Satúrnia até aos nossos dias. Por fim, toda a Itália, após ter surgido com o nome de Enótria, foi chamada Satúrnia por causa dele. Foi ele que por primeiro vos ensinou a arte de escrever e de cunhar moedas. Daí, aconteceu que ele passou a governar o Tesouro Público.

Mas, se Saturno foi um homem, teve, sem dúvida, uma origem humana e tendo uma origem humana não foi rebento nascido do céu e da terra. Como seus pais eram desconhecidos, não era incomum que tenha se chamado filho desses elementos dos quais nós todos parecemos nos originar.

Quem não fala do céu e da terra como de um pai e de uma mãe numa forma de veneração e homenagem? Não há até o costume, ainda existente entre nós, de dizer que alguém que nos é estranho ou que surgiu inesperadamente em nosso meio caiu dos céus? Do mesmo modo, aconteceu com Saturno, onde apareceu como um hóspede repentino e inesperado - porque o hóspede recebe em todo o lugar a designação de nascido do céu. Mesmo a tradição popular chama de filhos da terra as pessoas de parentesco desconhecido.

Eu não sei quantos homens naqueles tempos primitivos eram levados a assim procederem quando admirados pela visão de alguém estranho que surgia em seu meio, considerando-o divino, já que naquelas eras distantes até homens de cultura transformavam em deuses pessoas que eles sabiam terem morrido como homens, um dia ou dois antes, movidos pela tristeza geral que lhes acometia.

Que essas observações de Saturno, tão concisas como são, sejam suficientes. Assim, também, pode-se provar que Júpiter era certamente homem, já que nascido de homem, e que uma após outra, todas essas divindades eram mortais como o primitivo rebento.

» CAPÍTULO XI

Já que não ousais negar que essas vossas divindades foram homens e deveis aceitar que foram elevadas à divindade após sua morte, examinemos no que isso implica.

Antes de tudo deveis confirmar a existência de um Deus Altíssimo - alguém possuidor da divindade - que concedeu a tais homens a divindade. Pois que eles não poderiam assumir uma divindade que não lhes pertencesse e somente um Deus que a possuísse poderia conferi-la a alguém. Se não houvesse Alguém para criar divindades, seria inútil, também, sonhar em divindades criadas pois não existiria o seu Criador.

Certamente, se elas pudessem se tornar divindades por si mesmas, com uma divindade superior governando-as, elas nunca teriam se tornado homens.

Se, então, há Alguém que é capaz de criar divindades, eu volto a examinar qual razão que a levaria a criá-las. Não encontro outra razão senão de que o Deus Supremo precisava de administradores e ajudantes para exercer os ofícios de Deus. Mas, primeiramente, é uma idéia indigna pensar que Ele precisasse de ajuda de um homem, e, ainda, de um homem morto. Se Ele tivesse necessidade de assistência, poderia mais apropriadamente ter criado uma divindade desde seu nascimento. Depois, nem sequer vejo algum motivo para tal.

Pois todo esse universo, se existente por si mesmo e incriado, como afirma Pitágoras, ou criado por forças de um Criador, como afirmou Platão, foi, incontestavelmente, já, em sua organização original, programado, dotado, ordenado e governado com uma sabedoria perfeita. Não poderia ser imperfeito Alguém que tudo fez perfeito.

Ninguém estaria esperando por Saturno e sua raça para assim fazê-lo. Os homens ficam loucos quando se recusam a acreditar que o primeiríssimo impulso nasceu do céu, e, então, as estrelas piscaram, a luz brilhou, os trovões rugiram, e o próprio Júpiter temeu os relâmpagos que pondes em suas mãos. O mesmo aconteceu com Baco, Ceres e Minerva, e não somente com o primeiro homem, quem quer que tenha sido, ante os quais toda espécie de frutos brotaram abundantemente do interior da terra, providenciados tão somente para prover e sustentar o homem que depois disso pôde existir.

Em consonância, dizem que essas necessidades da vida foram descobertas, não criadas. As coisas que alguém descobre, já antes existem, e o que tem uma preexistência não deve ser visto como pertencente àquele que o descobriu mas àquele que o criou, porque certamente esse Ser existia antes daquilo que poderia ser descoberto.

Se Baco foi elevado à divindade porque foi o descobridor do vinho, entretanto Lúculo que primeiro introduziu a cerejeira do Ponto na Itália não o foi porque, como descobridor de uma nova fruta, não se arrogou o mérito de ter sido seu criador nem de se galardoar com honras divinas.

Portanto, se o universo existiu desde o início provido de seu sistema, agindo sob determinadas leis para a execução de suas funções, não há nenhuma razão para constituir a humanidade em divindade, porque as situações e poderes que atribuís a vossas divindades existiram desde o começo, exatamente como deveriam ser, embora não as tenhais nunca deificado.

Mas apontais outra razão, dizendo-nos que a atribuição de divindade foi um meio dignificá-las. E daí sois concordes, concluo, de que o Deus que é Deus é de transcendente retidão - Alguém que não quer nem insensata, nem inadequada, nem desnecessariamente outorgar uma recompensa tão grande.

Pediria que, então, considerásseis se as atitudes de vossas divindades são de tal qualidade que as elevassem aos céus e não antes as submergissem no mais profundo do Tártaro - o lugar que considerais, como a maioria, como um cárcere de punições eternas. Ora, pois que nesse lugar temível são dignos de ser lançados todos aqueles que pecam contra a piedade filial, assim como os culpados de incesto com irmãs e sedutores de viuvas, os raptores de virgens e corruptores de menores, os homens de temperamentos furiosos, os assassinos, os ladrões, os enganadores, todos, em resumo, que seguem os exemplos de vossas divindades.

Não, porém, alguém que pode provar estar inocente de crimes e vícios, a não ser o de afirmar que essas divindades foram sempre humanas. Além de não poderdes negar isso, tendes, também, em seus desalmados crimes mais uma razão para não acreditardes que tenham sido elevados à divindade após sua morte. Porque se legislais com verdadeiro propósito de punir tais crimes, se cada homem virtuoso dentre vós se nega a ter qualquer correspondência, conversa, intimidade com os culpados e vis, como, diferentemente, o Deus Altíssimo os tomaria seus pares para compartilhar de sua Majestade? Em que posição ficaria se fosse companheiro daqueles aos quais adorais?

Vossas deificações é uma afronta aos céus. Deificais vossos mais vis criminosos quando quereis agradar vossos deuses. Vós os honrais concedendo honras divinas a seus companheiros.

Mas para não mais falar de uma maneira de agir tão indigna, há homens virtuosos, puros e bons. Contudo, quantos desses homens nobres não relegastes às regiões da condenação? Como fizestes a Sócrates, tão renomado por sua sabedoria; Aristides, por sua justiça; Temístocles, por sua boa sorte; Creso por sua riqueza; Demóstemes por sua eloquência. Qual dos vossos deuses é mais notável por sua seriedade e sabedoria do que Catão; mais justo e combatente do que Cipião? Qual deles mais magnânimo do que Pompeu; mais próspero do que Silas; de maior riqueza do que Creso, mais eloqüente do que Túlio?

Quão mais digno seria para o Deus Supremo esperar que Ele pudesse tomar tais homens para serem seus pares celestes, sabedor como Ele deve ser de suas mais dignas qualidades! Ele está em vexame, suponho, e fechou os portões celestes. Agora, certamente sente vergonha por cauda dessas sumidades que estariam a murmurar, nas regiões infernais, contra sua escolha.

» CAPÍTULO XII

Mas, deixo de lado essas observações, porque sei e vou mostrar o que vossas divindades não são, mostrando o que realmente são. Com referência, então, a eles, examinarei somente nomes de homens falecidos dos tempos antigos. Ouvi histórias fabulosas. Reconheci ritos sagrados cercando simples mitos. Relacionando-os às imagens atuais, vejo-os como simples peças materiais assemelhadas aos vasos e utensílios de uso comum entre vós, ou mesmo consagrados por uma malfadada troca com aqueles úteis objetos nas mãos de descuidada arte, que no processo de transformação os tratou com absoluto desprezo, se não, com verdadeiro ato de sacrilégio.

Dessa forma não poderíamos ter o menor conforto em todos os nossos castigos, padecendo como padecemos por causa desses mesmos deuses, porque em sua formação sofreram como nós sofremos. Pondes os cristãos em cruzes e estacas: Que estátua não é primeiro formada de barro e depois plasmada numa cruz ou numa estaca? O corpo de vosso deus é primeiro consagrado num estrado. Dilacerais os corpos dos cristãos com vossas garras, mas no caso de vossos próprios deuses, machados, plainas e limas são utilizadas mais vigorosamente em cada membro de seus corpos. Colocamos nossas cabeças sobre o cepo. No entanto, o prumo, a cola e os pregos são utilizados em vossas divindades que de início não têm cabeça. Somos lançados às feras selvagens, enquanto as pondes juntas a Baco, Cibele e Celeste. Somos queimados no fogo; assim também eles, em seu original material. Somos condenados às minas; delas provieram vossos deuses. Somos banidos para as ilhas; é comum a vossos deuses nelas nascerem ou morrerem.

Se este é o meio pelo qual se faz uma divindade, segue-se que são punidas enquanto são deificadas e serão torturadas para serem declaradas divindades. Mas é evidente que esses objetos de vossa adoração não sentem as injúrias e as desgraças antes de sua consagração, como também não tomam consciência das honras que lhes são prestadas.

Ó palavras ímpias! Ó acusações blasfemas! É de ranger os dentes contra nós - espumem com louca raiva contra nós - somos as pessoas, sem dúvida, que censuraram um certo Sêneca que falou de vossas superstições longamente e muito mais agudamente! Numa palavra: se recusamos nossa homenagem a estátuas e imagens frígidas, de fato uma reprodução de seus originais falecidos, com os quais convivem falcões, ratos e aranhas, não merece isso louvor em vez de castigo? Que rejeitemos isso que acabamos de examinar é erro? Não fazemos certamente injúrias àqueles que estamos certos de serem nulidades. O que não existe está em sua inexistência livre do sofrimento.


» CAPÍTULO XIII

"Mas eles são nossos deuses", dizeis. Como pode ser isso, pois com absoluta inconsistência, estais cientes de vossa ímpia, sacrílega e irreligiosa conduta para com eles; menosprezais aqueles que imaginais que existam, destruindo aqueles que são objetos de vosso medo, fazendo pouco caso daqueles cuja honra quereis vingar?

Vede se agora estou mentindo. Em primeiro lugar, certamente, constatando que apenas adorais um ou outro deus, certamente ofendeis àqueles que não adorais. Não podeis dar preferência a um sem desprezar o outro, pois a seleção de um implica na rejeição do outro. Desprezais, portanto, aqueles que rejeitais, porque na vossa rejeição a eles se evidencia que não temeis em ofendê-los.

Como já demonstramos, toda divindade vossa depende da decisão do Senado quanto à sua deificação. Ninguém seria deus a não ser que o homem em seu próprio arbítrio não o tivesse desejado; assim, igualmente, rejeitado. Às divindades da família que chamais "Lares" concedeis uma autoridade doméstica, orando a elas, vendendo-as, trocando-as, fazendo às vezes fogo com Saturno, alimentando um braseiro com Minerva, se acontece que um ou outro esteja estragado ou quebrado por seu longo uso sagrado, ou se o chefe da família está premido por alguma necessidade familiar mais sagrada.

Assim, também, por lei pública, levais à desgraça vossos deuses oficializados, colocando-os no catálogo de leilão, tornando-os fontes de renda. Os homens sobem ao Capitólio, como vão ao mercado popular levados pela voz do pregoeiro, fazendo o lance do leilão, com o registro do questor. A divindade é leiloada e arrematada pela mais alta oferta. Mas, certamente, só terras oneradas com impostos são de menor valor, só homens sujeitos à avaliação de impostos são menos nobres, porque bens assim indicam estado de servidão.

No caso das divindades, por outro lado, a santidade é grande em proporção aos tributos que sobre elas são cobrados. Quanto mais sagrada a divindade, maior a taxa que paga. A majestade se torna uma fonte de ganho. A Religião procede como os pedintes de tavernas. Cobrais preço pelo privilégio de ficar num templo, por acesso aos cultos sagrados, não se recebe conselhos gratuitos de vossas divindades - necessitais comprar seus favores.

Que honras lhes concedeis que não concedais aos mortos? Possuís templos tanto para uns como para outros, construís altares tanto para uns como para outros. Suas estátuas são vestidas da mesma maneira, com as mesmas insígnias. Assim como os falecidos tinham sua idade, sua arte, suas ocupações, assim as tinham vossas divindades. Em que a festa de funeral difere da festa de Júpiter? O símbolo das divindades daquele dos manes? Ou o empreiteiro do funeral do vaticinador, se, realmente, o último também trata de mortos?

Com perfeita propriedade dais honras divinas a vossos imperadores quando morrem, já que os adorais em vida. Os deuses ficam em dívida convosco, pois é causa de grande regozijo entre eles que seus mestres sejam constituídos em seus pares.


» CAPÍTULO XIV

Desejaria rever agora vossos ritos sagrados. Deixo passar sem censuras o fato de em vossos sacrifícios ofertardes coisas estragadas, imprestáveis, podres, quando separais a gordura, as partes sem uso, tais como a cabeça e os cascos, que em vossas casas destinais aos escravos ou aos cães; quando do dízimo de Hércules não colocais sequer um terço sobre o altar.

Sou levado mais a louvar vossa sabedoria em aproveitá-las para não as jogar fora. Mas, voltando a vossos livros dos quais tirais vossos ensinamentos de sabedoria e os nobres deveres da vida, que coisas ridículas ali encontro: que os deuses troianos e gregos brigaram entre eles como gladiadores, que Vênus foi ferida por um homem porque ela queria resgatar seu filho Êneas, quando estava ameaçado de perigo de vida pelo próprio Diomedes; que Marte definhou preso por treze meses; que Júpiter foi salvo pela ajuda de um monstro de padecer a mesma violência nas mãos de outros deuses; que ele agora lamenta o destino de Sarpédon, ora cortejando loucamente sua própria irmã, lhe falando sobre antigas amantes, não tão amadas como ela.

Depois disso, que poeta não imita o exemplo de seu Mestre? Um entrega Apolo ao rei Admeto para cuidar de suas ovelhas; um outro aluga o trabalho de construtor de Netuno a Laomedonte. Um conhecido poeta lírico, também, Píndaro, aliás, canta sobre Esculápio merecidamente ferido com um raio por pratica incorreta de sua arte, por ambição. Uma má ação foi essa de Júpiter: se arremessou um raio desnaturado contra seu avô, demonstrando sentimento de inveja contra o médico. Coisas semelhantes não deveriam ser tornadas públicas, se verdadeiras; e, se falsas, não deviam ser levadas ao povo, que professa um grande respeito pela religião. Nem também, certamente, os escritores, trágicos ou cômicos, deveriam denunciar os deuses como origem de todas as calamidades e pecados das famílias.

Não examinarei os filósofos, contentando-me com uma referência a Sócrates que, por desprezo aos deuses, tinha o hábito de jurar por um carvalho, por uma cabra ou por um cão. De fato, exatamente por isso, Sócrates foi condenado à morte, pois subestimava a adoração aos deuses. Num tempo ou noutro, ou seja, sempre, a verdade não é amada. Contudo, quando sentiram remorso pelo julgamento de Sócrates, os atenienses aplicaram punição a seus acusadores, e ergueram uma imagem de ouro dele num templo; a condenação foi nessa ocasião reconsiderada, e a inocência dele restaurada em seus anteriores méritos.

Diógenes, igualmente, zombou de Hércules; e o cínico romano Varro se fez proceder de trezentas imagens de Júpiter, que foram conhecidas todas como sem cabeças.

» CAPÍTULO XV

De vossos escritores, outros, em seus desregramentos sempre vos proporcionam prazeres vilipendiando os deuses. Vede aquelas encantadoras farsas de Lêntulo e Hostílio se nas brincadeiras e facécias não são os bufões e as divindades que vos causam divertimentos. Farsas assim, penso, levam-nos ao ridículo, como a de Anúbio, o adúltero, Luna, do sexo masculino, Diana debaixo do chicote, as interpretações dos desejos de Júpiter falecido e os três famigerados Hércules.

Vossa literatura dramática, igualmente, retrata as vilezas de vossos deuses. O Sol lamenta seus filhos expulsos do céu e vós ficais cheios de júbilo. Cibele procura seu insolente namorado e vós não corais. Levais à cena o recital dos delitos de Júpiter, e do pastor que julga Juno, Vênus e Minerva.

Novamente, quando a máscara de um deus é posta na cabeça de um ignominioso e infame miserável, quando alguém impuro e experimentado na arte de toda efeminação que seja representa Minerva ou Hércules, não é a majestade de vossos deuses insultada e sua divindade desonrada? Contudo vós não somente assistis a isso, como aplaudis.

Sois, suponho, mais devotos na arena quando sob a mesma forma vossas divindades dançam sobre o sangue humano, sobre os ferimentos causados pelas punições infligidas, como se interpretassem suas histórias e aventuras, cedendo sua vez aos pobres condenados, com a diferença de que esses muitas vezes se colocam como a divindade e no momento representam os próprios deuses.

Temos visto presentemente uma representação da mutilação de Átide, o famoso deus de Pessino, e de um homem queimado vivo como Hércules. Faz-se gozação em meio a burlescas crueldades na exibição do meio-dia, com Mercúrio examinando os corpos dos mortos com sua lança ardente. Temos testemunhado o irmão de Júpiter, com malho na mão, rebocando os cadáveres dos gladiadores.

Mas quem pode assistir a tudo isso? Se por tais coisas a honra da divindade é atacada, se estão a macular qualquer traço de sua majestade, temos de entender isso como desprezo com os quais os deuses tratados por aqueles que ora fazem tais coisas e, igualmente, por aqueles para cujo divertimento são feitas. Isto, todavia, dizem, é tudo brincadeira.

Mas, acrescento - todos sabeis e admitis prontamente como fatos que nos templos são arranjados adultérios, que nos altares são praticadas alcovitices, que muitas vezes nas casas dos guardas dos templos e dos sacerdotes, sob os ornamentos de sacrifícios, sob sagradas tiaras e sob as vestimentas púrpuras, em meio das ondas de incenso, são praticados crimes de licenciosidade.

Então, não estou seguro, mas vossos deuses têm mais razão de se queixarem de vós do que dos cristãos. Ë certamente entre os devotos de vossa religião que sempre se encontram os perpetradores de sacrilégios; porque os cristãos não entram em vossos templos nem mesmo durante o dia.

Talvez queirais, também, ser exploradores dos deuses, já que os adorais. O que , então, vos levam a adorar, uma vez que os objetos de adoração são diferentes de vós? Fica, de fato, logo evidenciado como corolário de vossa rejeição à hipocrisia, que rendeis homenagem à verdade. Não perseverais no erro que criastes pelo simples fato de reconhecerdes que isso é um erro.

Aceitai isso, antes de mais nada, e após termos apresentado uma refutação preliminar de alguns conceitos falsos, continuaremos apresentando todo nosso sistema religioso.


» CAPÍTULO XVI

Juntamente como outros, estais na ilusão de que nosso Deus é uma cabeça de asno. Cornélio Tácito foi o primeiro a divulgar tal noção entre o povo. No 5o livro de sua História, começa a narrativa da guerra judaica com um relato da origem da nação, teorizando a seu bel prazer sobre essa origem, tanto quanto sobre o nome e sobre a religião dos judeus. Declara que tendo sido libertados ou ainda, em sua opinião, expulsos do Egito, cruzando as vastas planícies da Arábia, onde a água era escassa, os judeus enfrentaram a sede extrema, mas, tomando por guia asnos selvagens que, imaginavam, podiam estar procurando água depois de se alimentarem, descobriram uma fonte. Desde então, em sua gratidão, passaram a sacralizar a cabeça de um animal dessa espécie.

Como a cristandade está aliada ao judaísmo, por isto, suponho, aceitastes gratuitamente que nós também éramos devotos adoradores da mesma imagem. Mas o citado Cornélio Tácito (em completa oposição ao significado de seu nome - ficar calado e não contar mentiras), informa, na obra já mencionada, que quando Cneio Pompeu capturou Jerusalém, penetrou no templo para ver os segredos da religião dos judeus, mas não encontrou nenhuma imagem ali. Contudo, certamente, se adoração era rendida a algum objeto visível, o lugar exato de sua exibição deveria ser no santuário. Tudo o mais além da adoração, embora irracional, não se fazia necessário ali para causar medo a crentes do exterior, pois que só aos sacerdotes era permitido entrar no lugar sagrado, enquanto toda visão era impedida aos demais por um cortinado cerrado.

Não podeis negar, contudo, que todas as bestas de carga e não partes delas, mas animais inteiros, são com sua deusa Epona objetos de vossa adoração. É isso, talvez, que vos desagrada em nós, porque enquanto vossa adoração aqui é a todos, nós prestamos homenagem somente ao asno.

Se alguns de vós pensais que rendemos adoração supersticiosa à cruz, nessa adoração estais compartilhando conosco. Se dais homenagem a uma peça de madeira, importa pouco qual ela seja, porque a substância é a mesma: a forma é diferente, se nela tendes, de fato, o corpo de Deus. Entretanto, quão diferente é do madeiro da cruz Palas Atenas ou Ceres, quando levantadas para venda numa simples estaca bruta, peça de madeira sem forma!? Cada estaca fixada em posição vertical é um pedaço da cruz. Nós rendemos nossa adoração, se quereis assim, a um Deus inteiro e completo.

Mostramos antes que vossas divindades são feitas de formas modeladas na cruz. Mas vós também cultuais as vitórias, porque em vossos troféus a cruz é o sustentáculo do troféu. A religião dos acampamentos romanos é toda dirigida ao culto de estandartes, uma coleção de estandartes acima de todos os deuses. Bem, aquelas imagens mostradas nos estandartes são ornamentos de cruzes que as sustentam. Todas aquelas coisas penduradas em vossos estandartes e bandeiras são vestes das cruzes. Eu louvo vosso zelo: vós não prestais culto a cruzes desvestidas e desornadas.

Outros, de novo, certamente com mais informação e maior veracidade, acreditam que o sol é nosso deus. Somos confundidos com os persas, talvez, embora não adoremos o astro do dia pintado numa peça de linho, tendo-o sempre em sua própria órbita. A idéia , não há dúvidas, originou-se de nosso conhecido costume de nos virarmos para o nascente em nossas preces. Mas, vós, muitos de vós, no propósito às vezes de adorar os corpos celestes moveis vossos lábios em direção ao oriente.

Da mesma maneira, se dedicamos o dia do sol (Domingo) para nossas celebrações, é por uma razão muito diferente da dos adoradores do sol. Temos alguma semelhança convosco que dedicais o dia de Saturno (Sábado) para repouso e prazer, embora também estejais muito distantes dos costumes judeus, os quais certamente ignorais.

Mas, ultimamente a nova versão de nosso Deus foi dada a conhecer ao mundo nessa grande cidade: originou-se com um certo homem desprezível que tinha costume de se dedicar a trapacear com feras selvagens, e que exibiu uma pintura com esta inscrição: O Deus dos Cristãos nasceu de um asno. Ele tem orelhas de asno, tem casco num pé, segura um livro e usa uma toga. Tanto o nome como a figura nos provoca risos.

Mas nossos inimigos devem ter sido levados a logo prestar homenagem a essa divindade biforme, porque eles conhecem deuses com cabeça de cachorro e de leões, com chifres de bode e carneiro - como um corpo com pernas de dragão, com asas nas costas ou patas. Tais coisas temos esclarecido exaustivamente, porque não podemos de boa vontade deixar passar nenhum boato contra nós sem refutação.

Tendo explicado exaustivamente sobre nós mesmos, voltamos agora a uma demonstração de como é realmente nossa religião.


» CAPÍTULO XVII

O objeto de nossa adoração é um Único Deus que, por sua palavra de ordem, sua sabedoria ordenadora, seu poder Todo-Poderoso, tirou do nada toda a matéria de nosso mundo, com sua lista de todos os elementos, corpos e espíritos, para glória de Sua majestade. A essa criação, por tal razão, também os gregos lhe deram o nome de Cosmos.

Os olhos não podem vê-Lo, embora seja (espiritualmente) visível. Ele é incompreensível, embora tenha se manifestado pela graça. Está além de nosso mais elevado entendimento, embora nossas faculdades humanas o concebam. Ele é, portanto, igualmente real e magnífico. Mas o que, pelo senso comum, pode ser visto, percebido e concebido, é inferior ao que Ele é, ao que d'Ele se percebe, ao que d'Ele as faculdades vislumbram.

Mas o que é infinito é conhecido somente por Ele mesmo. Assim, damos alguma noção de Deus, enquanto, contudo, ele permanece além de todas as nossas concepções - nossa real incapacidade de completamente compreendê-Lo permite-nos ter a idéia do que Ele realmente seja. Ele se apresentou ao nosso conhecimento em sua transcendental grandeza, sendo conhecido e sendo desconhecido.

E tal coisa é a suma culpa dos homens, porque eles não querem reconhecer o Único a quem não podem ignorar. Poderíeis ter a prova pelas obras de Suas mãos, tão numerosas e tão grandes, que igualmente vos contém e vos sustentam, que proporciona tanto vosso prazer quanto vos comove com temor. Ou poderíeis melhor senti-lo pelo testemunho de vossa própria alma?

Embora sob o opressivo cativeiro do corpo, embora transviada por costumes depravados, embora enfraquecida pela concupiscência e paixões, embora na servidão de deuses falsos, contudo, quando a alma O procura, libertando-se do tédio e do torpor, movida por uma doença, e consegue um pouco de sua pureza natural, ela fala de Deus, não usando nenhum outro nome, porque este é o nome próprio do verdadeiro Deus. "Deus é imenso e bom", "Que possa Deus dar", são as palavras que brotam de cada boca. Dão testemunho d'Ele, também, quando exclamam: "Deus vê", "Eu me recomendo a Deus" e "Deus me recompensará".

Ó nobre testemunho da alma, por natureza cristã! Então, igualmente, usando palavras semelhantes a essas, a pessoa olha não para o Capitólio mas para os céus. Ela sabe que ali está o trono do Deus vivo, como se d'Ele e dali tudo proviesse.

» CAPÍTULO XVIII

Mas, porque podemos alcançar um maior e mais autorizado conhecimento tanto d'Ele mesmo quanto de Seus apelos e desejos, Deus acrescentou uma revelação escrita para o proveito de todos aqueles cujos corações se colocam à sua procura, que procurando podem encontrá-lO e encontrando acreditar e acreditando obedecer-Lhe.

Porque primeiro Ele mandou mensageiros ao mundo - homens cuja pura retidão os tornaram dignos de conhecer o Altíssimo e de revelá-Lo - homens abundamtemente iluminados pelo Santo Espírito, que alto proclamaram que há um só Deus que fez todas as coisas, que formou o homem do pó da terra. Ele é o verdadeiro Prometeu que ordenou o mundo, estabelecendo as estações em seu curso.

Aqueles homens mais provas ainda nos deram. Deus mostrou Sua majestade em seus juízos, por inundações e fogo, nos mandamentos indicados por Ele para se obter seu favor, assim como a retribuição guardada para quem os ignora, os renega ou os guarda, pois que quando chegar o fim de todas as coisas, julgará seus adoradores para a vida eterna e os culpados para a mansão do fogo eterno e inextinguível, ressuscitando todos os mortos desde o início dos tempos, reformando-os e renovando-os com o objetivo de premiá-los ou castigá-los.

Um dia, tais coisas foram para nós, também, tema de ridículo. Nós somos de vossa geração e natureza: os homens se tornam, não nascem cristãos! Os pregadores dos quais temos vos falado são chamados profetas, por causa do ofício que lhes pertence de predizer o que virá. Por sua palavras, tanto quanto pelos milagres que fizeram, esses homens podem merecer fé em sua autoridade divina.

Conservamos, ainda, em tesouros literários que permanecem disponíveis a todos, o que eles transmitiram. Ptolomeu, dito Filadelfo, o mais letrado de sua raça, uma homem de vasto conhecimento em toda a literatura, que se iguala, acho, pelo seu amor aos livros, com Pisístrato, entre outros, sobreviveu aos tempos, e, seja por sua antigüidade, seja por seu peculiar interesse, se tornou famoso. Esse Ptolomeu, por sugestão de Demétrio de Falero, que foi reconhecido superior a todos os gramáticos de seu tempo, lhe entregou a tarefa de tratar do assunto relacionado aos escritos dos judeus. Isto é, aos característicos escritos dos judeus e de sua língua, que somente eles falavam, como povo querido de Deus, demonstrado isso na salvação de seus antepassados, povo do qual os profetas sempre se provieram e ao qual sempre pregavam.

Nos tempos antigos, o povo que chamamos judeus usavam o nome de hebreus e falavam o hebraico, língua em que foram redigidos seus escritos. Mas como para o entendimento de seus livros assim se fizesse necessário, os judeus pediram a Ptolomeu que lhe deixassem indicar setenta e dois tradutores, homens que o filósofo Menedemos, reconhecido como indicado por uma Providência, aceitou com respeito, já que compartilhava de seus pontos de vista.

A mesma história é contada por Aristos. Assim, o rei desvendou aquelas obras a todos, na língua grega. Até nossos dias a biblioteca de Ptolomeu se encontra à disposição de todos, no templo de Serápis, na qual estão também os originais idênticos hebreus.

Os judeus, por sua vez, lêem esses livros publicamente. Pagando uma taxa de liberação, têm o hábito de ir ouvi-los todos os sábados. Quem quer que tenha ouvidos neles encontrará Deus, quem quer que se aplica em entendê-los, será levado a crer.


» CAPÍTULO XIX

A grande antigüidade, antes de tudo, dá autoridade àqueles escritos. Vossa religião, também, pede fé baseada no mesmo fundamento. Sim, todas as substâncias, todos os materiais, as origens, classes, conteúdos de vossos mais antigos escritos, além da maioria das nações e cidades ilustres que recordam o passado e são notáveis por sua antigüidade nos livros de anais, as próprias formas de vossas cartas, tudo que revela e conserva os acontecimentos, e - penso que falo coerentemente - vossos próprios deuses, vossos próprios tempos, oráculos e ritos sagrados são menos antigos do que a palavra de um único profeta, no qual encontrareis o tesouro da integral religião judia e, consequentemente, da nossa.

Caso tenhais ouvido falar de um certo Moisés, digo-vos que ele é muitíssimo mais antigo do que o argeu Ínaco, em aproximadamente quatrocentos anos. Ele é anterior a Dânaos, vosso mais antigo nome. Antecedeu por um milênio a morte de Príamo. Posso afirmar, também, que viveu quatrocentos anos antes de Homero, existindo fundamentos para essa afirmação. Os outros profetas, também, embora de datas posteriores, são, mesmo os mais recentes, tão antigos quanto o primeiro de vossos filósofos, legisladores e historiadores.

Aqui faço apenas uma afirmação, não apresentando as provas, não tanto porque isso é difícil, mas devido à amplitude da apresentação de toda a fundamentação. O trabalho não seria somente árduo, mas sobretudo tedioso. Requereria o apressado estudo de muitos livros, os dedos ocupados em folheá-los.

As histórias das mais antigas nações, tais como dos Egípcios, dos Caldeus, dos Fenícios teriam de ser exploradas. Igualmente teriam de ser consultados para apresentarem seus testemunhos homens dessas várias nações, com suas informações. Mâneto, o Egípcio, Beroso, o Caldeu, e Hierão, o Fenício, rei de Tiro, assim como seus sucessores, Ptolemeu o Mendesiano, Demétrio de Falero, O Rei Juba, Apião, Thallo, e o crítico de todos eles, Josefo, da própria nação judia, o pesquisador da história antiga de seu povo, que os confirma ou os refuta.

Igualmente, deveriam ser postas lado a lado as listas dos censores gregos, e esclarecidas as datas dos acontecimentos, para que as conexões cronológicas pudessem ser feitas, bem como usadas as narrativas dos vários anais para lançar mais luz sobre o assunto. Deveríamos seguir aprofundando as histórias e literaturas de todas as nações. Mas, de fato, já vos trouxemos a prova parcial, fornecendo-vos as sugestões de como o estudo poderia ser realizado.

Parece-nos melhor deixarmos para outra ocasião a discussão disso tudo, com receio de que em nossa pressa não possamos aprofundá-lo suficientemente, ou de que no manuseio disso tudo façamos uma digressão demasiadamente extensa.


» CAPÍTULO XX

Para concluir nossa digressão, transmitimo-vos isto de maior importância. Apontamo-vos o poder de nossas Escrituras, se não por sua antigüidade, no caso de duvidardes que sejam tão antigas como dizemos, pela prova que damos de que são divinas. Assim, podereis vos convencer disso de uma vez por todas, sem que nos estendamos mais.

Vossos mestres, o mundo, a antigüidade e os acontecimentos estão todos à vossa vista. Tudo aquilo que vos cerca, estou na vossa dianteira anunciando. Tudo o que vos cerca e agora vedes foi previamente anunciado. Tudo o que agora vedes já foi anteriormente predito aos ouvintes humanos. A destruição de cidades da terra, a submersão de ilhas pelos mares, guerras que trouxeram convulsões internas e externas, o embate de reinos contra reinos, as epidemias de fome e de pestes, os massacres em certos lugares, as desolações disseminadas das mortalidades, a exaltação dos pobres e humildes sobre os orgulhosos, a decadência da honestidade, a disseminação do pecado, os instrumentos da ambição deslavrada dos bens, as próprias estações e atividades elementares naturais escapando a seus normais cursos, monstros e prodígios tomando o lugar de formas naturais - isso tudo foi previsto e predito antes que acontecesse. Enquanto sofremos as calamidades, estamos lendo sobre elas nas Escrituras. Se verificarmos, elas estão sendo confirmadas.

Sim, a verdade de uma profecia, julgo, é a demonstração de seu acontecimento posterior. Daí termos entre nós uma fé confirmada a respeito do eventos que vêm como coisas já confirmadas, porque foram preditas e igualmente cumpridas em nosso dia a dia. Elas foram proferidas pelas mesmas vozes, escritas nos mesmos livros - o mesmo Espírito as inspirou.

Constantemente há alguém predizendo os acontecimentos futuros. O tempo é um só para a profecia que prediz o futuro. Entre os homens, talvez, há uma distinção dos tempos, já que o seu cumprimento vem depois. Sendo eventos do futuro, nós os consideramos como presentes e, então, quando se fazem presentes, nós os consideramos como pertencendo ao passado. Como podemos ser censurados, dizei-nos, porque acreditamos nas coisas que virão como se já tivessem acontecido, com essas provas para nossa fé nesses dois instantes.


» CAPÍTULO XXI

Agora, tendo confirmado que nossa religião está fundamentada nas escrituras dos hebreus, as mais antigas que existem, embora seja corrente e nós admitimos inteiramente que nossa religião date de um período comparativamente recente - não anterior ao reino de Tibério, talvez, devamos levantar a questão de suas bases, para não parecer que ocultamos sua origem sob a sombra de uma ilustre religião, a qual possui, sob todos os aspectos, indubitavelmente, a aceitação da lei.

Igualmente, além da questão da idade, não concordamos com os judeus em suas particularidades com respeito à alimentação, aos dias sagrados, nem mesmo no seu bem conhecido sinal da circuncisão, nem no uso de um nome comum, o que, certamente, seria o caso, já que prestamos homenagem ao mesmo Deus.

Igualmente, o povo comum tem algum conhecimento sobre Cristo, mas não o considera senão um homem, alguém que, de fato, os judeus condenaram, de modo que muitos naturalmente imaginaram que somos adoradores de um simples ser humano.

Mas não estamos nem envergonhados de Cristo - porque nos alegramos de sermos contados entre seus discípulos e de sofrermos por seu nome - nem divergimos dos judeus com relação a Deus.

Faremos, portanto, uma observação ou duas quanto à divindade de Cristo. Nos tempos antigos os judeus muito gozaram do favor de Deus, quando os predecessores de sua raça se notabilizaram por sua honestidade e fé. Assim foi que floresceram muitíssimo como um povo e seu reino atingiu uma eminência sublime. Tão abençoados eram que para sua instrução Deus lhes falou através de especiais revelações, indicando-lhes antes de tudo como deviam se fazer merecedores de Seu favor e de como evitar Seu desagrado.

Mas, caíram profundamente no pecado, se ensoberbeceram na sua fé com a falsa confiança em seus nobres ancestrais, desviando-se do caminho de Deus para um caminho de transviada impiedade, e embora eles se neguem a reconhecer isso, sua ruína nacional atual poderia ser prova suficiente do ocorrido.

Dispersos mundo afora, como uma raça de errantes, exilados de sua própria terra e clima, vagam por todo o mundo sem um rei humano ou divino, não possuindo nem mesmo o direito que têm os estrangeiros de andarem em seu país nativo.

Os escritores sagrados, contudo, lhes tinham advertido previamente dessas coisas, todos com igual clareza, e até declararam que, nos últimos dias do mundo, Deus, de todas as nações, povos e países, escolheria Seus próprios e mais fiéis adoradores, aos quais conferiria Sua graça. Faria isso mais amplamente, preservando-os com o poder de uma concessão mais sublime.

Fielmente, Ele apareceu entre nós, conforme fora previamente anunciado, para renovar e iluminar a natureza humana. Refiro-me a Cristo, o Filho de Deus. E assim o Senhor supremo, o Ministrador dessa graça e modo de vida, o Iluminador e Mestre da raça humana, Filho do próprio Deus, se fez anunciar como tendo nascido entre nós. Nascido, porém, de forma a não se envergonhar do nome de Filho ou de Sua origem paterna.

Não foi seu destino provir de Seu pai através de incesto com uma irmã, ou de violação de uma filha ou da esposa de outro, um deus na forma de serpente, ou de boi, ou de pássaro, ou de um amante, de modo que sua baixeza o transformasse no ouro de Dânaos. Assim são vossas divindades sobre as quais recaíram tais crimes de Júpiter.

Mas o Filho de Deus não teve mãe que, em nenhum sentido, fosse envolvida em impureza. Aquela que os homens têm por Sua mãe, pelo contrário, nunca teve relacionamento nupcial. Mas, primeiro, falarei sobre Sua natureza essencial e, então, a natureza de Seu nascimento poderá ser compreendida.

Já afirmamos que Deus fez o mundo e tudo o que ele contem, por Sua Palavra, Razão e Poder. É plenamente aceito que vossos filósofos também têm em vista o Logos - isto é, a Palavra e a Razão - como o Criador do universo. Zenão explicou que ele é o criador, tendo feito todas as coisas de acordo com determinado plano, que seu nome é o Destino, e Deus, e a alma de Júpiter, e a necessidade de todas as coisas. Cleanto atribui tudo isso ao espírito que, segundo afirma, pervade o universo.

E nós, de maneira semelhante, afirmamos que a Palavra, a Razão e o Poder, com as quais denominamos Deus tudo criou, é espírito com sua substância própria e essencial, da qual a Palavra provem como expressão, e a razão habita para dispor e arranjar, e o poder se sobressai para executar.

Aprendemos que a Palavra procede de Deus, e nessa processão Ela é gerada, de modo que Ela é o Filho de Deus, e é Deus, em unidade e em mesma substância com Deus. Em Deus, igualmente, há um Espírito.

Mesmo quando o raio é lançado do sol, é ainda parte da massa que o gerou. O sol ainda está no raio, porque é um raio do sol. Não há divisão de substância mas simplesmente uma extensão. Assim Cristo é Espírito do Espírito, Deus de Deus, Luz da Luz. O material matriz permanece inteiro e não diminuído, embora dele derive qualquer número de raios, possuindo suas qualidades.

Assim, também, Aquele que provem de Deus é por sua vez Deus e Filho de Deus, e os dois são um só. Dessa maneira, como Ele é Espírito do Espírito, Deus de Deus, Ele é gerado como segundo no modo de existência - na posição, não na natureza. Ele não é criado pela fonte original, mas dela foi gerado.

Este raio de Deus, então, como foi sempre previsto nos tempos antigos, desceu sobre uma virgem, e se fez carne em seu ventre; é em Seu nascimento juntamente Deus e homem. A carne informada pelo Espírito é alimentada, cresce até tornar-se adulto, fala, prega, trabalha - é o Cristo.

Acolha, por enquanto, esta fábula se assim quiserdes chamá-la. É uma concepção vossa, enquanto continuaremos a mostrar como a reivindicação de Cristo foi provada, e como as versões de vosso conhecimento pelas quais tais fábulas foram apresentadas para destruir a verdade, se assemelham.

Os judeus, também, estiveram preocupados de que Cristo tivesse vindo, eles aos quais os profetas falaram. Mas não, ainda agora Seu advento continua sendo esperado por eles. Não há nenhuma dissensão entre eles e nós, senão que eles acreditam que o advento ainda não aconteceu. Pois duas vindas de Cristo nos foram reveladas: a primeira que já se cumpriu na baixeza do destino humano, uma segunda que pende sobre o mundo, agora perto de seu fim, com toda a majestade da Divindade desvelada.

Por interpretarem mal a primeira vinda, os judeus concluíram que a segunda - objeto de predição mais manifesta, e na qual colocam suas esperanças - seria a única. Isto foi o castigo devido a seus pecados - não compreenderem a primeira vinda do Senhor - porque eles a tiveram, mas nela não quiseram acreditar. Se tivessem acreditado, poderiam ter obtido salvação.

Eles próprios leram o que foi escrito a seu respeito - que estão privados da sabedoria e do entendimento - do uso de seus olhos e de seus ouvidos. Assim, então, sob a força de sua rejeição se convenceram a si próprios desse seu baixo procedimento: que Cristo não foi mais do que um homem, seguindo-se, como conseqüência necessária, que tivessem Cristo na conta de mágico, devido aos Seus poderes que demonstrou - expulsando demônios dos homens por sua palavra, restaurando a visão aos cegos, limpando os leprosos, curando os paralíticos, trazendo de novo à vida quem já estava morto, fazendo com que os próprios elementos da natureza o obedecessem, amainando as tempestades e andando por sobre o mar, provando que era o Logos de Deus, aquela primordial Palavra de todo o sempre gerada, acompanhada pelo Poder e Razão e vinda pelo Espírito - Aquele que agora faz todas as coisas pelo poder de sua Palavra e Aquele que fez que do anterior proviesse um e o mesmo.

Mas os judeus ficaram tão exasperados com seus ensinamentos, pelos quais seus governantes e chefes se convenceram da verdade, principalmente porque muitíssimos O seguiram, que, por último, O levaram ante Pôncio Pilatos, naquele tempo governador da Síria. Então, pela violência de seus gritos contra Ele, obtiveram uma sentença entregando-lhes Cristo para ser crucificado. O próprio Cristo havia predito tudo isso, o que teria pouco sentido se não tivessem os profetas antigos dito a mesma coisa.

E, no entanto, pregado na cruz, Cristo manifestou muitas maravilhas admiráveis pelas quais Sua morte foi diferente de todas as outras. Por Sua livre vontade, com uma palavra fez entrega de seu Espírito, antecipando o trabalho dos carrascos. Na mesma hora, também, a luz do dia feneceu, enquanto o sol naquele momento, exatamente, estava fulgurando no seu meridiano. Aqueles que não estavam cientes de que isso tinha sido predito sobre Cristo, pensaram, sem dúvidas, que era um eclipse. Vós mesmos tendes ainda registro em vossos arquivos desse fenômeno da natureza.

Quando seu corpo foi descido da cruz e colocado numa sepultura, os judeus em seu ansioso cuidado cercaram-na com uma grande guarda militar, uma vez que Cristo havia predito Sua ressurreição da morte no terceiro dia. Seus discípulos poderiam secretamente retirar seu corpo e, assim, enganar os incrédulos. Mas, no terceiro dia houve um repentino abalo de terremoto e a pedra que selava a sepultura rolou de seu lugar. Os guardas fugiram com medo. Não havendo nenhum discípulo por perto, a sepultura foi encontrada totalmente vazia exceto pelo sudário daquele que fora ali sepultado.

Mas, assim mesmo, os chefes dos judeus, a quem de perto interessava espalhar uma mentira e, por suas crenças, conservar o povo sob tributos e submissão, disseram que o corpo de Cristo tinha sido roubado pelos discípulos de Cristo. Quanto ao Senhor, vede, não apareceu à vista do público, para que os culpados não se livrassem de seus erros, porque a fé, também, merecedora de uma grande recompensa, se fundamenta na dificuldade. Mas Ele ficou quarenta dias com muitos de Seus discípulos, na Galiléia, uma região da Judéia, instruindo-os nas doutrinas que deveriam ensinar aos outros.

Depois disso, tendo lhes dado o encargo de pregarem a boa nova em todo o mundo, Ele foi cercado por uma nuvem e subiu aos céus - um acontecimento muitíssimo mais certo do que as afirmações de vossos procônsules a respeito de Rômulo.

Todas essas coisas Pilatos fez a Cristo, e agora, realmente, os cristãos têm suas próprias convicções. Pilatos escreveu sobre Cristo ao Imperador reinante que era, na época, Tibério. Sim, e os Imperadores também teriam acreditado em Cristo, caso os Imperadores não tivessem sido necessários ao mundo, ou se os cristãos pudessem se tornar Imperadores.

Seus discípulos, espalhando-se pelo mundo afora, fizeram o que Seu Divino Mestre dissera, e após sofrerem muito, eles próprios, com as perseguições dos judeus, com generosidade de coração, mantendo a fé na verdade, por último, semearam pela cruel espada de Nero, com sangue cristão, a sede de Roma.

Sim, provarei que mesmo vossos próprios deuses são testemunhas efetivas em favor de Cristo. Seria de grande importância, para colocardes vossa fé nos cristãos, se eu pudesse vos demonstrar a autoridade dos próprios seres por conta dos quais recusais dar-lhes créditos.

Eis que vos desvendamos a fé em que nos fundamentamos. Expusemos a origem e o nome de nossa seita, com esse relato do Fundador do Cristianismo. Que ninguém, doravante, nos acuse com infame maldade, que ninguém pense que algo seja diferente do que apresentamos, para que ninguém possa fazer um falso conceito dessa religião.

Pois se alguém adora um outro Deus, diferentemente do que diz, se torna culpado de negar o objeto de sua adoração, transfere sua adoração e homenagem a outro, e nessa transferência deixa de adorar o Deus que a repudia.

Afirmamos, clamamos diante de todos os homens, e dilacerados, sangrando debaixo de vossas torturas, gritamos: "Nós adoramos Deus por Cristo." Tende Cristo como um homem, se assim vos agrada. Por Ele e n' Ele Deus desejaria ser conhecido e adorado.

Se os judeus objetam a isso, respondemos que Moisés, que não foi senão um homem, foi quem lhes ensinou sua religião. Contra os gregos argüimos que Orfeu em Piéria, as Musas em Atenas, Melampo em Argos, Trofônio na Beócia, impuseram seus ritos religiosos. Respondendo a vós próprios que costumais oscilar entre as nações, foi um homem, Numa Pompílio, que impôs aos romanos um pesado fardo de custosas superstições.

Certamente Cristo, então, tem direito de revelar a Divindade que era, de fato, Sua própria essencial possessão, não com o objetivo de manipular ignorantes e selvagens com o temor de uma multidão de deuses, cujos favores deveriam resultar numa civilização, como foi o caso com Numa, mas como alguém que gostava de iluminar os homens já civilizados e sob ilusões de sua própria cultura, para que eles pudessem conhecer a verdade.

Pesquisai, pois, e vede se a divindade de Cristo é verdadeira. Se é de tal natureza que o seu acolhimento transforma o homem e o faz melhor, implicando isso no dever de renunciar como falso o que se lhe opõe. Especialmente se oculta ele próprio, sob o nome e a imagem da morte, seus esforços para convencer os homens de sua divindade, através de sinais especiais, milagres e predições.


» CAPÍTULO XXII

Também afirmamos, com certeza, a existência de certos seres espirituais, cujos nomes não vos são desconhecidos. Os filósofos admitem que existem demônios. O próprio Sócrates esperou pela vontade de um demônio. Por que não? Uma vez que se diz que um espírito mau estava especialmente ao seu lado desde sua juventude - que, sem dúvidas, desviava sua mente do que era bom. Todos os poetas estão, também, de acordo com a existência dos demônios.

Mesmo o povo comum, ignorante, costuma chamá-los quando praguejam. De fato, o povo chama por Satanás, o líder dos demônios, em suas execrações, como se dele tivesse um conhecimento instintivo. Platão admite a existência de anjos. Os que praticam a magia, se apresentam como testemunhas da existência de ambas as espécies de espíritos.

Somos instruídos, ainda, por nossos livros sagrados, de como certos anjos, que se degradaram por sua própria liberdade, originaram uma família de anjos maus, condenados por Deus juntamente com os promotores dessa degradação. A tal líder, acima já nos referimos. Isso seria suficiente para o momento, contudo, temos alguns relatos de suas obras. A grande tarefa deles é levar à ruína os homens de boa vontade. Assim, por sua própria maldade espiritual procuram nossa destruição.

Nesse sentido, infligem males a nossos corpos e outras calamidades mortais, quando com violentos ataques impelem a alma a repentinos e enormes excessos. Sua prodigiosa sutileza e espiritualidade lhes dão acesso a ambas as partes de nossa natureza. Como espíritos, não podem nos ferir; e porque, invisíveis e intangíveis, não tomamos conhecimento de suas ações exceto por seus efeitos, assim como quando algum desconhecido veneno na brisa arruina as maçãs e os grãos quando ainda em floração, ou os matam no botão, ou os destroem quando alcançam a maturidade, como se fosse por uma atmosfera corrompida por meios desconhecidos, espalhando por toda a parte suas exalações pestilenciais.

De semelhante modo, também, por uma influência igualmente obscura, os demônios sopram dentro das almas e as incitam à corrupções com paixões furiosas e excessos vis, ou com cruéis concupiscências, acompanhadas de vários erros, dos quais o pior é aquele empenho pelos quais tais espíritos se dedicam a enganar e iludir os seres humanos para obterem seu próprio alimento de carne, vapores e sangue que são oferecidos às imagens dos ídolos.

Que alimento mais perverso para o espírito do mal do que afastar as mentes humanas do verdadeiro Deus com as ilusões de sua falsa divindade?

Aqui vos exponho como tais ilusões são realizadas. Esses espíritos possuem asas. Essa é uma propriedade comum tanto aos anjos como aos demônios. Assim, eles estão em todo lugar, a cada momento; o mundo todo é um único lugar para eles. Tudo o que é feito no espaço do mundo, para eles se torna fácil tanto de conhecer como de relatar. Sua sutileza de movimento é tomada como coisa divina, porque sua natureza é desconhecida. Assim eles são tidos, muitas vezes, como autores de coisas que então proclamam. Muitas vezes, não há dúvida, as coisas ruins são de sua autoria, nunca o bem.

Os propósitos de Deus, igualmente, eles souberam pelos pronunciamentos dos profetas, logo que eles os faziam. Eles os espionam ainda através de suas obras, quando os ouvem ler em voz alta. Então, obtendo por essa fonte algumas afirmações sobre o futuro, se posicionam como próprios rivais do Deus verdadeiro, enquanto se apropriam do conhecimento divino. Vossos Creso e Pirro bem conhecem a habilidade com as quais suas respostas parecem prever os acontecimentos. É assim que explicamos porque Píton estava apto a declarar que eles estavam cozinhando uma tartaruga com a carne de um cordeiro. Num segundo, ele estava na Lídia.

Porque moram nos ares e por causa de sua proximidade das estrelas e suas comunicações com as nuvens, eles têm meios de saber os processos preparatórios que ascendem a essas elevadas regiões e, assim, podem prometer as chuvas, das quais já tinham conhecimento. Muito hábeis, também, não há dúvidas, são com respeito a curar as doenças. Primeiramente, eles vos fazem adoecer. Depois, para demonstrar um milagre, ordenam a aplicação de remédios seja um remédio novo, seja um inabitual, e rapidamente retirando sua influência mal-sã, se tornam conhecidos como realizadores de uma cura.

Que necessidade, então, de falar de seus outros artifícios ou poderes ilusórios que possuem como espíritos, como daquelas aparições de Castor, da água carregada numa peneira, de um navio que ultrapassa uma barreira, da barba irritada por um toque, tudo feito com o propósito de mostrar que os homens deveriam acreditar na divindade de pedras, e não procurar o único Deus verdadeiro?

» CAPÍTULO XXIII

Ainda mais, se feiticeiras invocam espíritos, e mesmo fazem que apareçam as almas dos mortos, se matam crianças com o propósito de obterem uma resposta dos oráculos, se com suas ilusões de prestidigitação têm a pretensão de fazerem vários milagres, se iludem com sonhos a cabeça do povo pelo poder de demônios, cuja ajuda pediram, por cuja influência, igualmente, cabras e mesas se tornam algo divino - quanto mais não é este poder do mal zeloso em fazer com todas as suas capacidades, a favor de seu próprio propósito, e por seus próprios meios, o que serve aos objetivos de outros!

Ora se anjos e demônios fazem exatamente o que vossos deuses fazem, onde nesse caso está a preeminência da divindade, a quem devemos considerar estar acima de todos em poder? Não seria, então, mais razoável afirmar que esses espíritos se fazem de deuses, apresentando como apresentam, provas reais que exaltam vossos deuses, do que afirmar que os deuses são iguais aos anjos e demônios? Fazeis uma distinção de lugares, suponho, olhando como deuses em seus templo aqueles cuja divindade não reconheceis de modo algum. E observe-se a loucura de considerar como diferentes um homem que sai dos templos sagrados e um outro que sai do templo ao lado. E de se considerar sob domínio de um furor diferente aquele que corta seus braços e intimidades e aquele que corta sua garganta. O resultado da loucura é o mesmo e a forma de instigação também.

Mas há tempo estamos argumentando somente com palavras. Agora trataremos de apresentar provas dos fatos, pelas quais mostraremos que sob diferentes nomes tendes uma mesma e real identidade. Leve-se uma pessoa que está inquestionavelmente sob possessão demoníaca, ante vossos tribunais. O espírito mau ordenado a falar por um seguidor de Cristo prontamente fará a confissão verdadeira de que ele é um demônio, assim como, de outro modo, ele falsamente afirmará que é uma divindade. Ou, se quereis assim, que a pessoa seja possuída por uma divindade, como supondes que seja, a qual aspirando junto ao altar recebeu a divindade pelos vapores, quando estava em ânsias de vômito, em espasmos de respiração.

Vede se a própria Celeste, a prometera de chuva, que Esculápio descobridor de remédios pronto a prolongar a vida de Socórdio, Tanácio e Asclepiódolo, agora no além, se eles não confessariam, perante o sangue derramado do mais indigno seguidor de Cristo, em seu medo de mentir a um cristão, que são demônios. O que seria mais evidente do que uma tal comprovação? O que mais verdadeiro do que tal prova? A simplicidade da verdade será então comprovada. Sua própria dignidade a sustentará. Não haverá mais lugar para a mínima suspeita. Direis que isso será feito por mágica, ou por algum truque - mas de que sorte?

Não podereis dizer nada disso, se vos permitirdes o uso de vossos ouvidos e olhos. Que argumento podereis levantar contra uma coisa que é exibida aos olhos em sua realidade nua? Se, por outro lado, eles são realmente deuses, porque pretendem ser demônios? É por medo de nós? Nesse caso, vossa divindade está sob sujeição dos cristãos, e certamente nunca podeis chamar de divindade àquela que está sob a autoridade do homem e de seu próprios inimigos (mesmo levando em conta a desgraça da possessão).

Se, por outro lado, eles são demônios ou anjos maus, por que sem provas para isso, ousam se promoverem agindo com as prerrogativas dos deuses? E como seres que se promovem como divindades, não poderiam nunca de boa vontade se confessarem demônios, se fossem de fato divindades, porque não poderiam abdicar de sua dignidade. Esses que sabeis ser não mais do que demônios, não ousariam agir como deuses, se aqueles de cujos nomes se apropriam, usando-os, fossem realmente divinos. Pois que não ousariam tratar com desrespeito a majestade suprema dos seres divinos, cujo desagrado lhes seria temível.

Assim, essas vossas divindades não são divindades, porque se fossem não iriam querer passar por demônios, e não iriam querer ver negada sua divindade. Mas desde que de ambas as partes há um conhecimento concorrente de que não são deuses, resta concluirmos que não formam senão uma única família, ou seja, a família dos demônios, a raça verdadeira de uns e outros.

Procurai, então, doravante, deuses, pois que constatastes serem espíritos do mal aqueles que tínheis imaginado serem deuses.

A verdade é, então, como demonstramos de nosso próprio Deus, porque nem ele mesmo nem nenhum outro reivindica sua divindade. Igualmente, podereis ver, então, de uma vez por todas quem é realmente Deus, e se Ele é Aquele Único a quem nós cristãos servimos. E, também, se estais dispostos a acreditar n'Ele e a adorá-Lo, como o fazemos em nossa fé e disciplina cristãs.

Mas, então, dirão: Quem é este Cristo com suas fábulas? É um homem comum? É um feiticeiro? Foi seu corpo roubado por seus discípulos de seu túmulo? Está agora nos reinos inferiores? Ou antes não está nos céus, de onde virá de novo, fazendo todo mundo tremer, enchendo a terra com mortais clamores, fazendo todos, exceto os cristãos, se lamentarem - como o Poder de Deus, o Espírito de Deus, a Palavra, a Razão, a Sabedoria, como o Filho de Deus?

Zombai como gostais de fazer, mas juntai-vos aos demônios, se assim quereis, em vossas zombarias. Que eles neguem que Cristo virá para julgar cada alma humana que já existiu desde o início do mundo, revestindo-os dos corpos deixados por ocasião da morte. Que eles declarem isso, digo, ante vosso tribunal, porque este poder tem sido atribuído a Minos e Radamanto, como Platão e os poetas afirmam. Que eles afastem de si pelo menos a marca da ignomínia e da condenação.

Eles discordam de que sejam espíritos impuros. Contudo temos isso como indubitavelmente provado por seu gosto pelo sangue, pelos vapores e carcassas fétidas de animais sacrificados, e mesmo pela linguagem vil de seus ministros. Que eles neguem isso, porque por sua maldade já condenada, estão livres, de fato, daquele dia do julgamento, com todos os seus adoradores e todas as suas obras.

Porque toda a autoridade e poder que temos sobre eles vem do nome de Cristo, nossa denominação, relembrando-lhes as desgraças com as quais Deus os ameaça pelas mãos de Cristo como Juiz, e com as quais os cristãos esperam um dia surpreendê-los. Temendo Cristo em Deus, e Deus em Cristo, os cristãos se tornam submissos servos de Deus e Cristo.

Assim, ao nosso toque e sopro, esmagados pelo pensamento e realização daquele fogo do julgamento, deixarão sob nosso comando seus corpos, contra a vontade e desamparados, diante de vossos próprios olhos expostos à vergonha pública. Acreditais neles quando eles mentem. Dai crédito a eles quando falam a verdade acerca deles mesmos. Ninguém diz mentira para trazer desgraça sobre sua própria cabeça, mas antes pela salvação da honra.

Estais mais prontos a afirmardes algo ao povo, mesmo fazendo confissões contra as divindades, do que a negardes algo em interesse do próprio povo. Não é coisa rara que esses testemunhos de vossas divindades convertam os homens ao Cristianismo. Pois que acreditando plenamente neles, ficamos livres para acreditar em Cristo.

Sim, vossos próprios deuses põem fé em nossas Escrituras, eles fizeram crescer nossa esperança. Vós também os honrais, como sabemos, com o sangue dos cristãos. Despropositadamente perdem aqueles que lhes são tão úteis e tão temerosos deles, ansiosos mesmo que vos resistam, e a não ser num dia ou outro consigais desbaratá-los - como se sob o poder de um seguidor de Cristo que deseja vos provar a Verdade, lhes fosse possível de algum modo mentirem.


» CAPÍTULO XXIV

A explanação inteira desse assunto pelas quais se deduz que eles não são deuses, e que não existe senão um Deus - o Deus que adoramos - é perfeitamente suficiente para nos isentar do crime de traição, principalmente contra a religião romana. Pois, se está claro que tais deuses não existem, não há religião, no caso. Se não existe religião - porque esses deuses não existem - somos certamente inocentes de qualquer ofensa contra a religião.

Em vez disso, a responsabilidade recai sobre vós. Por adorardes uma mentira, sois de fato culpados do crime de que nos acusais, não simplesmente porque recusais a verdadeira religião do verdadeiro Deus, mas porque ousais perseguí-Lo. Mas, concedendo que esses seres objetos de vossa adoração sejam realmente divindades, não se deve reconhecer universalmente que há um Deus mais elevado e mais poderoso, como ordenador principal do mundo, dotado de poder e majestade absolutos?

De modo usual, se atribui a Deus um poder imperial e supremo, enquanto suas tarefas são distribuídas por muitas divindades, como Platão descreve a respeito do supremo Júpiter habitando nos céus, cercado por uma organização de divindades e demônios. Convém-nos, portanto, mostrar igual respeito aos procuradores, prefeitos e governadores do Império divino. E por maior crime que alguém cometa, quando, entre nós, uma transgressão capital está restrita à apelação da mais alta autoridade, ninguém além de César, tal pessoa delega seus esforços e suas esperanças a outro, com o objetivo de obter um maior favor do Imperador. Ele não sai declarando que o apelo a Deus ou ao Imperador depende somente do Supremo Senhor.

Que um homem adore Deus, outro a Júpiter; que um levante as mãos suplicantes para os céus, outro para o altar de Fides; outro (se tendes esse ponto de vista) faça sua prece às nuvens, outro aos objetos do teto; que um consagre sua própria vida a seu Deus, e outro a uma cabra. Por ver que não dais importante valor à acusação de irreligião, proibindo a liberdade religiosa ou a escolha livre de uma divindade, não sei como não posso adorar de acordo com minha inclinação, mas sou obrigado a adorar contra ela. Nem também um ser humano gostaria de receber homenagem prestada a contragosto, e assim os próprios egípcios receberam permissão para o uso legal de sua ridícula superstição, liberdade para fazer de pássaros e feras seus deuses, assim como para condenar à morte quem quer que mate um deus dessa espécie.

Mesmo cada província e cada cidade tem seu deus. A Síria tem Astartéia, a Arábia tem Dusares, os Nórdicos têm Beleno, a África tem sua Celeste, a Mauritânia também suas próprias dignidades. Eu falei, penso, das Províncias Romanas, e contudo não falei que seus deuses são romanos. Pois que eles não são adorados em Roma, tanto quanto outros que são listadas como divindades em toda a própria Itália por consagração municipal, como Delventino de Cassino, Visidiano de Narnia, Ancária de Áusculo, Nórcia de Orvieto, Valência de Ocrículo, Hóstia de Sátrio, o Pai Curls de Falisco, em honra do qual, também, Juno recebeu seu sobrenome.

De fato, somente nós somos proibidos de ter uma religião própria nossa. Ofendemos aos romanos, somos excluídos de direitos e de privilégios dos romanos porque não adoramos os deuses de Roma. Seria bom que houvesse um único Deus para todos, do qual todos fôssemos adoradores, quiséssemos ou não. Mas com vossa liberalidade permitis adorar qualquer deus exceto o verdadeiro Deus, como se Ele não fosse o Deus que todos devessem adorar, ao qual todos pertencem.

» CAPÍTULO XXV

Eu penso que ofereci prova suficiente sobre a questão da falsa e da verdadeira divindade, mostrando que a prova está não simplesmente fundamentada em debate ou argumento, mas no testemunho dos próprios seres em quem pondes a vossa fé, de modo que esse assunto não precisa mais de discussão.

Contudo, tendo começado a naturalmente falar dos romanos, não posso evitar a controvérsia que é provocada pela divulgada afirmação daqueles que afirmam que, como uma recompensa de sua singular homenagem à religião, os romanos progrediram a tais alturas de poder que se tornaram senhores do mundo. E, portanto, são certamente divinas os deuses que adoram, porque prosperam acima dos outros aqueles que sobrepujam todos os outros na honra às divindades. Isso, certamente, é o preço que os deuses pagaram aos romanos por sua devoção. O progresso do Império deve ser atribuído a Estérculo, a Mutuno e Larentina.

Pois que dificilmente poderia pensar que deuses estrangeiros estivessem dispostos a favorecer mais uma raça estrangeira do que à sua própria, e entregar sua própria terra, na qual nasceram, na qual se tornaram adultos, ficaram famosos, e, enfim, foram enterrados, em benefício de invasores do outras plagas. Assim Cibele, se põe suas afeições na cidade de Roma, como herdeira da progênie troiana salva dos exércitos da Grécia, ela própria sendo, certamente, da raça troiana - como se previsse sua transferência para o povo vingador pelo qual a Grécia, conquistadora da Frígia, seria subjugada, e o preferisse mais do que a seu país natal conquistado pela Grécia.

Por que, igualmente, em nossos dias, a Mãe Magna (Cibele) deu uma notável prova de sua grandeza, conferindo como que uma dádiva à cidade, quando, logo após a perda da estátua de Marco Aurélio, em Sírmio, no dia 17 antes das Calendas de Abril, o mais sagrado de seus sacerdotes havia oferecido, uma semana depois, libações impuras de sangue retirado de seus próprios braços, e ordenado que preces usuais deveriam ser feitas pela saúde do imperador, já morto.

Ó mensageiros tardios! Ó correio dorminhoco! Por cuja falta Cibele não recebeu uma notícia atualizada da morte imperial, para que os cristãos não tivessem oportunidade de ridicularizar uma divindade tão indigna. Júpiter, de novo, nunca deveria ter permitido que sua própria Creta caísse, de repente, diante das forças romanas, esquecido totalmente daquele caverna amada e dos címbalos das festas de Cibele, e do doce odor daquela que ali o amamentou.

Não queria Júpiter que seu próprio túmulo fosse exaltado sobre o Capitólio inteiro, porque, preferencialmente, a terra que cobriu suas cinzas poderia vir a ser a senhora do mundo? Desejaria Juno a destruição da cidade Púnica, amada a ponto de negligenciar Samos, e isso por uma nação primitiva? Sim, eu sei, "aqui estavam seus exércitos, aqui estava sua carruagem, este reino, porque permitam os fados, a deusa desejava e sonhava ser a senhora das nações". A malfadada mulher e irmã de Júpiter não tinha poder para prevalecer contra os fados! "Júpiter mesmo foi ajudado pelo fado". E contudo os romanos nunca prestaram tal homenagem aos fados! Eles que lhes deram Cartago contra o propósito e a vontade de Juno, assim como da abandonada meretriz Larentina.

É indubitável que senão poucos de vossos deuses tiveram poder na terra como reis. Se, então, eles agora possuem mais poder de agraciar um Império do que quando eles mesmos eram reis, de quem receberam suas honras reais? A quem Júpiter e Saturno adoravam? A um Estérculo, suponho. Mas, os romanos primitivos junto com os nativos adoraram depois também a quem nunca tinha sido rei? Nesse caso, então, estavam sob o reinado de outros, a quem nunca sujeitaram, já que não se elevaram à liderança divina. Esta, então, pertencia a outros, que podiam presentear os reinos, já que havia reis antes daqueles deuses terem tido seus nomes no rol das divindades.

Mas que loucura agora é atribuir a grandeza do nome romano aos méritos da religião, já que foi depois que Roma se tornou um Império, ou, se quiserdes, um reinado, que a religião que ela professa promoveu seu imenso progresso! É agora o caso? Foi sua religião a fonte da prosperidade de Roma? Embora Numa Pompílio tenha estabelecido com ardor observâncias supersticiosas, contudo a religião entre os romanos não constava, contudo, de imagens ou templos. Era frugal em seus modos, seus ritos eram simples, não havia capitólios ascendendo aos céus; mas os altares eram improvisados de turfa, os vasos sagrados eram utensílios de barro do Sâmnio, deles vinha o odor de rosa, e não se viam imagens de Deus.

Naquele tempo a habilidade dos Gregos e Toscanos na confecção de imagens não tinha ainda chegado à cidade com os produtos de sua arte. Os romanos, portanto, não foram conhecidos por sua devoção aos deuses antes de terem alcançado a grandeza. Assim, sua grandeza não foi resultado de sua religião. Como poderia a religião tornar grande um povo que deveu sua grandeza à sua irreligião?

Pois que, se não estou errado, reinos e impérios são adquiridos pelas guerras, e são ampliados por vitórias. Mais do que isso, vós não podeis conquistar guerras e vitórias sem a presa e muitas vezes a destruição de cidades.

Isto é uma calamidade na qual os deuses têm sua parte de responsabilidade. Casas e templos sofreram, por isso, igualmente. Há um indiscriminado morticínio de sacerdotes e cidadãos. A mão da rapina se dirige igualmente ao tesouro sagrado e ao tesouro do povo. Assim os sacrilégios dos romanos são tão numerosos como seus troféus. Eles se vangloriam tanto de triunfos sobre os deuses como sobre as nações. Apropriam-se tanto de despojos de batalha, como de imagens das divindades cativas.

Os pobres deuses se submetem a ser adorados por seus inimigos, e ainda proporcionam um Império ilimitado àqueles de cujas mãos receberam por retribuição mais injúrias do que homenagem simulada. Mas as divindades inconscientes são desonradas impunemente, exatamente como são em vão adoradas.

Certamente nunca podeis acreditar que a devoção à religião fez evidentemente progredir a grandeza um povo que, como disse, cresceu seja por injuriar a religião, seja ter uma religião injuriada por seu crescimento.

Igualmente, aqueles cujos reinos se tornaram parte desse grande todo que é o Império do Romano, não eram sem religião, quando seus reinos lhes foram tomados.


» CAPÍTULO XXVI

Examinai e vede se Ele não é o dispenseiro dos reinos, aquele que é simultaneamente o Senhor do mundo, por quem é governado, e que governa os próprios homens; se Ele não fez as mudanças de dinastias, com suas indicadas seqüências, que existiu antes de todos os tempos e determinou no mundo uma continuidade de tempos. Se o soerguimento e a queda dos países não são Sua obra, sob cuja soberania a raça humana primitivamente existiu sem nenhuma país.

Como explicais que incidis em tal erro? Porque a Roma de simplicidade rural dos tempos primitivos é mais velha do que muitos de seus deuses. Ela reinou antes que seu orgulhoso e imenso Capitólio fosse construído. Os babilônios também se constituíram em Império antes dos dias dos pontífices, e os medas antes dos qüindecênviros. Os egípcios antes dos sálios. A Assíria antes de Lupércio, e as amazonas antes das Virgens Vestais.

E para acrescentar outro ponto: se as religiões de Roma lhe proporcionaram um Império, a antiga Judéia nunca teve um, desprezando-o como fez com um e todos aqueles ídolos divinizados; a Judéia cujo Deus, vós, romanos, certa vez honraram com vítimas, com presentes de seu Templo, e com tratados de seu povo, ela nunca esteve sob vosso cetro, senão por ocasião dessa última e final ofensa contra Deus, quando rejeitaram e crucificaram Cristo.

» CAPÍTULO XXVII

Bastante já foi dito nessas explicações para refutar a acusação de traição contra vossa religião e porque não podemos ser considerados prejudiciais àqueles que não existem... Portanto, quando somos convidados a sacrificar, recusamos resolutamente, apoiados no conhecimento que temos, pelo qual estamos certos sobre a realidade dos seres aos quais esses sacrifícios são oferecidos, sob a profanação de imagens e a deificação de seres humanos.

Muitos, de fato, julgam isso um ato de insanidade, pois estando em nosso poder oferecer logo o sacrifício e nos livrarmos do castigo, mantemos nossas convicções; é que preferimos uma persistência obstinada em nossa confissão, para nossa salvação. Vós nos avisais, é certo, que assim estamos tirando vantagens de vós, mas sabemos de quem procedem tais sugestões, quem está por trás disso, querendo vencer nossa constância, e como faz todo esforço, agora com manhosa persuasão e depois com perseguição sem piedade. Não é outro senão o espírito, meio demônio, meio anjo que, nos odiando por causa de sua própria separação de Deus, levado pela inveja do favor que Deus nos tem demonstrado, vira vossas mentes contra nós com influências ocultas, moldando-as e instigando-as a todas as perversidades no julgamento, e àquela crueldade indevida que mencionamos no começo de nosso trabalho, quando iniciamos esta discussão.

Porque, embora todo o poder dos demônios e maus espíritos nos esteja sujeito, contudo, como escravos, indispostos muitas vezes, estão cheios de medo: assim são eles também. Por medo, também inspiram ódio. Além disso, em sua condição desesperada, já que estão condenados, causa-lhes algum conforto quando adiam o castigo e usufruem de suas disposições malignas. No entanto, quando nossas mãos são levantadas contra eles, ficam subjugados de repente, submissos a seu lugar; e àqueles a quem se opõem à distância, reservadamente pedem misericórdia.

Assim, nas sedes rebeladas, em prisões ou minas, ou em qualquer um desses locais para penas escravas, são aqueles que se revoltam contra nós, seus senhores, sabendo sempre que não são ameaça para nós e, exatamente por isso, de fato, se entregam mais renhidamente à destruição. Nós lhes resistimos a contragosto, como se fossem nossos iguais, e os enfrentamos perseverando naquilo que eles atacam.

Nosso triunfo sobre eles nunca é mais completo do que quando somos condenados pela resoluta adesão à nossa fé.


» CAPÍTULO XXVIII

Mas sendo evidente a injustiça de compelir homens livres, contra sua vontade, a oferecer sacrifício - porque mesmo em outros atos de serviço religioso se requer uma mente de boa vontade - deveria ser tido por total absurdo um homem obrigar outro a dar honras aos deuses, quando cada um deve voluntariamente, pelo sentido de sua própria necessidade, procurar o favor deles, para que, na liberdade que é seu direito, esteja pronto a dizer: "Não preciso dos favores de Júpiter, a quem orais... Que Jano me venha com olhares tristes em qualquer uma de suas faces, a que desejar... O que tendes a ver comigo?"

Vós sois levados, não há dúvidas, por aqueles mesmos espíritos maus que vos compelem a oferecer sacrifícios para o bem estar do imperador; e ficais compelidos à necessidade de usar a força, da mesma forma como estamos sob a obrigação de enfrentar os perigos disso. Somos conduzidos, agora, à segunda base da acusação: somos culpados de traição contra a majestade muito augusta, porque cuidais de dar homenagem com maior temor e a maior reverência ao Imperador do que a ao próprio Júpiter Olímpico.

Mas - bem sabeis - procedeis com diferentes fundamentos. É porque não há nenhum homem melhor do que aquele temível, seja quem for? Mas isso não é feito por vós senão com base num poder cuja presença vivamente sentis. Assim também nisso sois culpados de impiedade para com vossos deuses, visto que mostrais uma maior reverência ao soberano humano do que aos deuses. Daí, entre vós, o povo também jura falso mais facilmente pelo nome de todos os deuses, do que pelo nome do supremo Imperador.


» CAPÍTULO XXIX

Esclareçamos, portanto, antes de mais nada, se aqueles aos quais se oferecem sacrifícios estão aptos a proteger seja o Imperador seja alguém mais, e assim nos julguem culpados de traição; se anjos ou demônios, espíritos da pior natureza, podem realizar o bem, se o perdido pode dar salvação, se o condenado pode dar liberdade, se o morto (refiro-me a quem bem conheceis) pode defender o vivo...

Porque certamente a primeira coisa de que cuidariam seria da proteção de suas estátuas, imagens e templos, e aquilo a que antes de tudo deveriam sua segurança, ou seja, à vigilância dos guardas do Imperador. Sim, penso, os próprios materiais de que são feitos provêm das minas do Imperador, e não haveria um templo que não dependesse da vontade do Imperador. Sim, e muitos deuses já sentiram o desagrado do Imperador.

Meu argumento é que eles são também participantes do favor imperial, quando o Imperador lhes confere algum presente ou privilégio. Como podem eles - que assim estão sob o poder do Imperador, que pertencem inteiramente ao Imperador - ter a proteção do Imperador sob sua responsabilidade, do modo que possais imaginá-los aptos a dar ao Imperador o que eles mais prontamente recebem do Imperador?

Esta é, pois, a base na qual somos acusados de traição contra a majestade imperial, a saber, não colocamos os imperadores submissos às suas próprias propriedades; porque não oferecemos um simples arremedo de culto à crença nessas divindades, como não acreditando que a segurança dos imperadores permaneça em mãos metálicas. Mas sois ímpios a tal ponto que procurais a divindade onde não está, que a procurais naqueles que não a possuem, passando por Aquele que a possui inteiramente em Seu poder. Além disso, perseguis aqueles que sabem onde procurá-La e que, sabendo onde procurá-La, são capazes de também gozar de Sua segurança.


» CAPÍTULO XXX

Oferecemos preces pela segurança de nossos líderes ao Eterno, ao Verdadeiro, ao Deus vivo, cujo beneplácito, acima de todos os outros, eles próprios desejam. Eles sabem de quem receberam seu poder. Sabem, já que são homens, de quem receberam a própria vida. Estão convencidos de que Ele é o único Deus, de cujo único poder são inteiramente dependentes, de quem são segundos, depois de Quem ocupam os mais altos cargos, antes e acima de todas as divindades. Por que não são superiores à morte, já que estão acima de todos os seres humanos, e vivendo como vivem?

Eles meditam sobre a extensão de seu poder e assim vêm a compreender o Altíssimo. Reconhecem que possuem todo seu poder recebido d'Ele contra o qual seu poder é nada.

Que o imperador faça guerra ao céu, que leve o céu cativo em seu triunfo, que ponha guardas no céu, que imponha taxas ao céu! Ele não pode! Exatamente porque ele é menor do que o céu, ele é grande. Pois ele mesmo é d'Aquele ao qual o céu e todas as criaturas pertencem. Ele obteve seu cetro quando lhe foi concedida sua humanidade. Seu poder, quando recebeu o sopro da vida.

Para lá elevamos nossos olhos, com as mãos abertas, porque livres do pecado, com a cabeça descoberta, porque não temos nada de que nos envergonharmos, finalmente, sem um monitor porque é de nosso coração que partem nossas preces.

Sem cessar, oferecemos preces por todos os nossos líderes. Pedimos por uma vida longa, pela segurança do Império, para a proteção da casa imperial, para os bravos exércitos, por um senado fiel, por um povo virtuoso, e, enfim, por todo o mundo, seja quem for, homem ou Imperador, como um imperador desejaria.

Essas coisas eu não posso pedir senão a Deus, de quem sei que as obterei, seja porque somente Ele as concede, seja porque Lhe peço sua dádiva, como sendo um servo Dele, rendendo homenagem somente a Ele, perseguido por Sua doutrina, oferecendo a Ele, por Seu própria recomendação, aquele custoso e nobre sacrifício de prece feito por um corpo casto, uma alma pura, um espírito santificado, e não por alguns poucos grãos de incenso que nada valem - extraído da árvore arábica - nem alguns pingos de vinho, nem o sangue de alguma boi indigno para o qual a morte é um destaque, e, em adição a outras ofensivas coisas, uma consciência poluída, de tal modo que alguém se admira quando vossas vítimas são examinadas por aqueles sacerdotes vis. Por que o exame é menor sobre o que sacrificam do que sobre os que são sacrificados?

Com nossas mãos assim abertas e levantadas para Deus, nos entregamos a vossas claves de ferro, somos suspensos em cruzes, lançados às chamas, temos decepadas nossas cabeças pela espada, somos entregues aos animais selvagens: a verdadeira atitude de prece de um cristão é uma preparação para todos os castigos.

Que esses bons administradores façam seu trabalho, arranquem-nos a alma, implorando a Deus pelo bem estar do Imperador. Acima da verdade de Deus e da devoção a Seu nome, ponde o estigma do crime.


» CAPÍTULO XXXI

Mas nós simplesmente, vocês dizem, lisonjeamos o imperador e fingimos essas nossas orações para escaparmos da perseguição. Obrigado por vosso engano, dando a nós a oportunidade de provar nossas alegações. Aquele de vós que pensa que não nos importamos com o bem-estar de César, investigue as revelações de Deus, examine nossos livros sagrados, os quais nós não escondemos e que por muitas maneiras acabam parando nas mãos daqueles que não são dos nossos. Aprenda através deles que uma grande benevolência está sobre nós a ponto de suplicarmos a Deus por nossos inimigos e desejarmos bênçãos a nossos perseguidores. Quem, portanto, são os maiores perseguidores dos cristãos, senão as muitas festas com traições as quais somos carregados. Além disso, muitas vezes e claramente a Escritura diz: “Reze pelos reis, juízes e poderes, então tudo estará em paz com você”. Pois quando há distúrbios no Império, se o tumulto é sentido por seus outros membros, certamente nós também o sentimos, já que nós não somos dados à desordem.


» CAPÍTULO XXXII

Há também uma outra e grande necessidade para oferecermos orações em favor dos imperadores, e não somente para a completa estabilidade do Império e em favor dos interesses dos Romanos em geral. Pois nós sabemos que o iminente choque de poderes em toda a terra é apenas retardado pela contínua existência do Império Romano. Nós não temos desejo algum de sermos tomados por esses terríveis eventos e em nossas orações, no desejo de que esses eventos demorem a acontecer, colocamos em destaque nosso desejo de continuidade do Império Romano. Além disso, enquanto nos recusamos jurar pelo gênio de César, nós juramos por sua segurança, a qual é muito mais importante que todo seu gênio. São vocês ignorantes do fato de que esses gênios são chamados “Daimones”, e que o diminutivo “Daimonia” é aplicado a eles? Nós respeitamos na pessoa do imperador a ordem de Deus, que o pôs acima das nações. Nós sabemos que há isso neles o qual Deus tem legado; e a quem Deus legou essas coisas nós desejamos toda segurança, e nós consideramos um juramento pela segurança do imperador um julgamento muito importante. Mas para os demônios, isso é, seus gênios, nós temos o hábito de exorcizá-los, não juramos por eles, evitando dar a eles a divina honra.


» CAPÍTULO XXXIII

Mas por que se estender a respeito do sagrado respeito e reverência que os cristãos dão ao imperador, o qual nós apenas podemos reconhece-lo chamado por Deus ao seu serviço? Portanto, sob essas condições devo dizer que César pertence mais a nós do que a vocês, pois nosso Deus o escolheu. Portanto, tendo essa possibilidade, eu faço mais por seu bem-estar, não simplesmente porque eu peço isso para Aquele que pode dar isso, ou porque eu peço isso como alguém que merece, mas por que, em se tratando de manter o poder de César em seus devidos limites e pondo isso sob o Excelso e tornando isso menor que o divino, eu muito o recomendo a Deidade, a quem eu o faço o único inferior. Mas eu o coloco em uma posição inferior a quem eu considero mais glorioso que o imperador. Nunca irei chamar o imperador de Deus, e isso porque não está em mim ser culpado de falsidade; ou porque eu não me atrevo a expô-lo ao ridículo; ou porque ele mesmo não desejará ter esse alto nome a ele aplicado. Se ele é somente um homem, é do seu interesse como homem dar a Deus seu alto posto. Deixemos que ele pense sobre isso o suficiente para suportar o nome de imperador. Chamá-lo de Deus é usurpar seu título. Se ele não é um homem, então não pode ser um imperador. Mesmo quando, em meio às honras de um triunfo, ele está sentado no seu honroso carro de guerra, ele se recorda de ser um homem. Uma voz em sua mente permanece suspirando em seus ouvidos: “Olhe para sua condição, lembre-se de que você é apenas um homem.” E isso apenas acrescenta as suas exaltações o fato de que ele brilha com uma luz que ultrapassa os requerimentos de sua condição e que ele necessita de uma reminiscência, para que ele não acredite ser de natureza divina.


» CAPÍTULO XXXIV

Augusto, o fundador do Império, nunca recebeu o título de Senhor; este é, pois, o nome da Deidade. Da minha parte, estou disposto a dar ao imperador essa designação, mas na aceitação comum da palavra e quando sou forçado a chamá-lo assim no caso dele estar sendo um representante de Deus. Mas minha relação com ele é apenas de liberdade, pois tenho um só e verdadeiro Senhor, Deus onipotente e eterno, o qual é senhor também do imperador. Como pode ele, o qual é realmente pai de seu país, ser seu senhor? O nome da piedade é mais gratificante que o nome do poder; então os chefes das famílias são chamados pais tanto mais que senhores. Longe de nós o imperador receber o nome de Deus. Nós apenas podemos professar nossa crença de que ele é o que é indignamente, ou mais que isso, por uma bajulação fatal; isso é como se, tendo um imperador, você chamasse a outro pelo nome de imperador, em qual caso você ofenderia aquele que atualmente reina. Dê toda a reverência a Deus, se você deseja que o imperador seja propiciado por Deus. Dê toda a adoração e acredite nEle, pôs nenhum outro é divino. Cessem também de atribuir o nome sagrado àquele que necessita de Deus. Se essa adulação mentirosa não é vergonhosa, chamando divino um homem, deixe que ele tenha pavor pelo menos do mau presságio o qual ele suporta. É a invocação de um praga, para dar a César o nome de deus antes de sua apoteose.


» CAPÍTULO XXXV

Esta é a razão, pois, do porquê serem os cristãos considerados inimigos públicos: eles não são vaidosos, falsos, nem imprudentes com relação à honra do imperador; como homens que acreditam na verdadeira religião, eles preferem celebrar seus dias de festa com boa consciência, ao invés de serem libertinos. É, verdadeiramente, uma notável homenagem lançar fogos e camas ante o público, banqueteando de rua em rua, tornando a cidade uma grande taverna, fazendo lama com vinho, realizando atos violentos, vergonhosos e luxuriantes! Será honesto alegrar-se abertamente da desgraça pública? Fazer coisas diferentes sendo outras vezes conveniente os dias festivos dos príncipes? Aqueles que observam as regras das virtudes em reverência a César, por causa dele se afastariam delas? Deve a piedade ser uma licença para ações imorais, e deve a religião ser usada para fornecer a ocasião para todo tipo de extravagâncias? Pobres de nós, dignos de condenação! Pois por que nós mantemos os dias votivos e de alta alegria em honra de César com castidade, sobriedade e virtude? Por que, nos dias de felicidade, nós nem cobrimos as vigas de nossas portas com loureiros nem iniciamos o dia com lâmpadas? É algo correto, nas ocasiões de festividade pública, vestir nossa casa elegantemente como um novo bordel? Entretanto, na importância desta homenagem a uma majestade menor, em referência a nós sermos acusados de um pequeno sacrilégio, pois nós não celebramos com vocês os feriados de César de uma maneira proibida pela modéstia, decência e pureza - de fato, eles têm sido estabelecidos como que fornecendo oportunidades para dissoluções mais do que qualquer outro motivo; nesta importância estou ansioso para ressaltar quão fiéis e verdadeiros são vocês, para não acontecer que estes que não nos tem como romanos, mas como inimigos dos chefes de Roma, sejam considerados piores que nós, cristãos! Apelo aos próprios habitantes de Roma, à população das sete colinas: por acaso os habitantes de Roma já dispensaram algum César? O Tibre e as feras selvagens testemunham. Diga agora se a natureza cobriu nossos corações com uma substância transparente através da qual a luz pode passar, os quais, todos cortados, não podem deletar a cena de outro e outro César presidindo a distribuição de um dom? E muitas vezes eles estão gritando: “Talvez Júpiter pegue anos de nós e com eles alongue os de vocês” - palavras tão estranhas aos lábios de um cristão quanto está fora de questão seu desejo de uma mudança de imperador. Mas isto é o povinho, vocês dizem; mas, mesmo sendo a ralé, eles ainda são romanos, e nada mais freqüente do que eles pedirem a morte dos cristãos. É claro que as outras classes, como convém a suas altas posições, são muito religiosas. Nem um único sinal de traição há no Senado, nas ordens eqüestres, nos campos, no palácio. De que lugar, então, veio um Cássio, um Negro, um Albino? De que lugar, eles que acossaram o César entre os dois loureiros? De onde, eles que praticaram luta livre, na qual adquiriram a habilidade necessária para estrangulá-lo? Eles, que entraram no palácio, cheios de armas, mais audaciosos que todos os seus Tigerii e Parthenii. Se não estou enganado, eles eram romanos; isto é, eles não eram cristãos. Ainda todos eles, na véspera de suas traições, ofereceram sacrifícios pela vida do imperador, e juraram por ele, uma coisa em profissão e outra em seus corações; e eles tinham o hábito de denominar os cristãos de inimigos do Estado. Sim, e pessoas que agora são trazidas diariamente à luz como confederados ou aprovadores desses crimes e traições, as junções ainda restantes depois de uma colheita de traidores, com loureiros novos e verdes eles enfeitaram suas portas; com nobres e brilhantes lâmpadas, eles revestiram seus pórticos; com os mais requintados e chamativos sofás eles dividiram o Fórum entre eles; não que eles devam celebrar festas públicas, mas eles devem pegar uma amostra de suas seções votivas em participação das festividades de outro, e inaugurar o modelo e imagem de suas esperanças, mudando em suas mentes o nome do imperador. A mesma homenagem é prestada, também respeitosamente, por aqueles que consultam astrólogos e magos, sobre a vida de César - artes que, sendo feitas por anjos caídos e proibidas por Deus, os cristãos não podem usá-las. Mas quem tem qualquer ocasião para perguntar sobre a vida do imperador, se ele não tem algum desejo contra ela ou alguma esperança e expectativas para depois dela? Pois consultas a astrólogos não têm o mesmo motivo no caso de amigos como no caso dos soberanos. A ansiedade de uma parenta é algo muito diferente da de um súdito.




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