Todos os anos celebramos o Natal do Senhor. O Verbo que se fez carne e veio habitar entre nós (João1, 14).
O Natal não é a comemoração do aniversário de Jesus Cristo,
antes é a celebração da chegada do Salvador, nascido de uma mulher
(Gálatas4,4), marcando o momento divinamente estabelecido para Deus enviar Seu
Filho ao mundo, conforme descrito em Gálatas 4, 4 e Efésios 1, 10, cumprindo o
plano de redenção e abrindo caminho para a adoção de filhos de Deus, um período
oportuno (Kairós).
Nesse cenário encontra-se a simbologia do Presépio: Maria,
José, o Menino Jesus deitado na manjedoura, os pastores, os Magos [...] tudo
representa aquele momento espetacular da história em que como diz a Sagrada
Escritura: “Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho Unigênito para todos
que nele creem não pereça, mas tenha a vida eterna” (João3, 16).
É o Cordeiro de Deus anunciado pelo
profeta João Batista, o Enviado do Pai veio para tirar os pecados do mundo
(João1, 29).
Não é o papai-Noel, festejado pelo
comércio. É o nascimento de Jesus que celebramos e festejamos em nossas casas.
É ele o Salvador.
Neste
contexto trago aqui para reflexão os escritos do historiador do século IV
(quarto), Eusébio de Cesaréia. Primeiro historiador da Igreja depois de Lucas.
Quem foi Eusébio?
Eusébio
nasceu no ano 270 d.C e faleceu em 339 d.C. O local de seu nascimento é
incerto, mas passou sua vida em Cesaréia, cidade romana da Palestina, foi bispo
da Igreja de 313 a 315 em diante. Sua formação teológica foi baseada na obra de
Orígenes. Escreveu várias obras dentre elas a “História Eclesiástica”.
Muitos
celebram o Natal, até mesmo quem não é cristão, como uma festa posta
oficialmente no calendário, se adornam as casas, comércios exploram a data para
vender seus produtos. O modernismo está cada vez mais ofuscando o verdadeiro
sentido do Natal. Importa para nós saber a importância de celebrá-lo não com
comilanças e externamente, mas, somente o poderemos fazê-lo se realmente
entendermos o seu verdadeiro significado e assim conhecermos de perto a pessoa
de Cristo cujo é o esplendor de nossa vida.
O
Natal é muito mais que uma comemoração, é um reavivamento, é de fato estar
ligado ao mistério da encarnação do Verbo que se fez carne para a nossa
salvação. É Deus que desce dos céus para se assemelhar a nós, para estar junto
de nós. Ele destrona por um instante e se humilha em uma manjedoura até que por
um grande amor se entrega na cruz. O autor da graça por excelência se faz
pequeno e humilde por amor aos homens. Como expressa Zacarias: “Para dar ao seu
povo conhecer a salvação pelo perdão dos pecados. Graças a ternura e
misericórdia de nosso Deus que nos vai trazer do alto a visita do Sol nascente,
que há de iluminar os que estão nas trevas e na sombra da morte e dirigir
nossos passos no caminho da paz” (Lucas1, 77-79).
Todos
nós conhecemos Jesus, mas poucos sabem quem ele é de verdade. Para os cristãos
ele é o Cristo, para os muçulmanos ele é apenas um profeta, para os espíritas
ele é um espírito evoluído. Afinal quem é Jesus?
O
bispo Eusébio traz para nós a resposta com provas irrefutáveis, mostrando passo
a passo que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus. Tudo foi feito por Ele, para Ele
e n’Ele. Sua presença antes, durante e após a criação do mundo:
Sobre
a preexistência de Nosso Salvador e da atribuição de sua divindade:
“Sendo
a índole de Cristo dupla: uma semelhante à cabeça do corpo, e por esta o
reconhecemos como Deus, e outra, comparável aos pés, mediante a qual, e para a
nossa Salvação ele se revestiu de homem, sujeito ao mesmo que nós, nossa
exposição a seguir será perfeita se iniciarmos o discurso de toda sua história
partindo dos pontos principais e dominantes. Deste modo, a antiguidade e o
caráter divino dos cristãos ficará patente aos olhos de todos que pensam que [o
cristianismo] é algo novo, estranho de ontem e não de antes.”
“Nenhum
tratado poderia bastar para explicar em pormenores a própria substância e
natureza de Cristo, por isso o Espírito divino diz: “Sua linhagem quem
narrará?”; Pois na verdade ninguém conheceu o Pai senão o Filho, e ninguém
conheceu alguma vez ao Filho, segundo a dignidade, se não o próprio Pai que o
engendrou.”
“E
quem a não ser o Pai, poderia conceber sem impureza a luz que é anterior ao
mundo e a sabedoria inteligente e substancial que precedeu aos séculos, o Verbo
vivente no Pai e que desde o princípio é Deus, o primeiro e único que Deus
engendrou antes de toda a criação e de toda a produção de seres visíveis e
invisíveis, o general do exército espiritual e imortal do céu, o anjo do grande
conselho, o servidor do pensamento inefável do Pai, o fazedor de todas as
coisas junto ao Pai, a causa segunda de tudo depois do Pai, o Filho de Deus,
genuíno e único, o Senhor, o Deus e Rei de todos os seres, que recebeu do Pai a
autoridade soberana e a força, junto com a divindade, o poder e a honra? Porque
em verdade, segundo o que dizem d’Ele os misteriosos ensinamentos das
Escrituras: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi feito
(João1,1-3).”
“É
isto mesmo que ensina o grande Moisés, como o mais antigo dos profetas, ao
descrever, sob a inspiração do Espírito divino, a criação e a ordenação do
universo: o Criador e fazedor do universo cedeu a Cristo e apenas a Cristo, seu
divino e primogênito Verbo, o fazer os seres inferiores; e com Ele o vemos
conversando acerca da formação do homem; disse também Deus: “Façamos o homem à
nossa imagem e semelhança” (Gênese1, 26)”.
“Fiador
desta sentença é outro profeta, ao falar de Deus em certa passagem de hinos:
“Pois ele falou, e foi feito; ele ordenou, e foi criado”, (Salmo 33,9).
Introduz aqui o Pai e criador dispondo com gesto régio na qualidade de soberano
absoluto, e o Verbo divino, não outro que o mesmo que nos foi anunciado, como
segundo depois d’Ele e ministro executor das ordens paternas.”
“A
este, já desde o alvorecer da humanidade, todos quantos nos foi dito que
sobressaíram por sua retitude e sua religiosidade: os companheiros do grande
servidor Moisés, e antes dele Abraão, o primeiro, assim como seus filhos e
todos que mostraram justos e profetas, ao contemplá-lo com os olhos límpidos se
sua inteligência, o reconhecem e renderam-lhe o culto devido como o Filho de
Deus.
“E
Ele mesmo, sem desviar em nada de sua piedade para com o Pai, tornou-se para
todos o mestre do conhecimento do Pai. E assim lemos que o Senhor Deus foi
visto por Abraão, que estava sentado no carvalhal de Manré, sob a forma de um
homem comum. Abraão se prostra de pronto e, ainda que o olhe com seus olhos de
homem, ainda assim o adora como Deus, suplica-lhe como Senhor e confessa saber
de quem se tratava, ao dizer textualmente: ‘Senhor, tu que julgas toda a terra,
não vais fazer justiça?’ (Gênese 18, 25)”
“Porque,
se nenhuma razão pode admitir que a substância não criada e imutável de Deus
todo-poderoso se transforme na forma de homem, nem que a aparência de
homem criado engane os olhos de quem
vêem, nem que a Escritura forje enganosamente tais coisas, um Deus e Senhor que
julga toda na terra e faz justiça, e que é visto sob a aparência de homem, nem
se permitindo dizer de que se trata da causa primeira do universo, que outro
poderia ser proclamado como tal, senão seu único e preexistente Verbo? Sobre
ele também se diz nos salmos: “Mandou seu Verbo e os sanou e os livrou de sua
corrupção” (Salmo107, 20).
“Moisés
o proclama claramente segundo o Senhor depois do Pai quando diz: “Fez o Senhor
chover enxofre e fogo, da parte do Senhor sobre Sodoma e Gomorra” (Gênese19,
24). Também a Sagrada Escritura o proclama Deus quando apareceu a Jacó ne
figura de um homem e falou a ele dizendo: “Já não te chamarás Jacó, e sim,
Israel, pois lutaste com Deus”, e então Jacó chamou aquele lugar “Visão de
Deus”, dizendo: “Porque eu vi o Senhor face a face, e minha vida se salvou”
(Gênese32, 28-30).
“E
não se pode supor que estas aparições divinas mencionadas sejam de anjos
inferiores e servidores de Deus, pois quando algum destes aparece aos homens,
não se cala a Escritura, mas chama-os por seu nome, não Deus nem sequer Senhor,
mas, anjos, como é fácil provar com incontáveis passagens.”
“E
a este Verbo, Josué, sucessor de Moisés, depois de havê-lo contemplado não de
outra maneira que em forma e figura de homem, chama-o príncipe do exército de
Deus, como fazendo-o chefe dos anjos e arcanjos do céu e dos poderes
superiores, e como sendo poder e sabedoria do Pai e a quem foi criado o segundo
posto do reinado e do principado sobre todas as coisas.”
“Porque
está escrito: “Estando Josué perto de Jericó, levantando os olhos, viu diante
dele um homem que trazia na mão uma espada nua; chegou -se Josué a ele e
disse-lhe: És tu dos nossos, ou dos nossos adversários? Respondeu ele: Eu sou o
general do exército do Senhor; acabo de chegar. Então Josué prostrou sobre seu
rosto na terra e disse-lhe: Que diz meu Senhor ao seu servo? Respondeu o
general do exército do Senhor a Josué: Descalça as sandálias de teus pés,
porque o lugar que estás é santo” (Josué5, 13-15).
“De
onde, partindo das próprias palavras, observarás que este é o mesmo que se
revelou a Moisés, pois efetivamente a Sagrada Escritura refere-se a ele nos
mesmos termos: “Vendo o Senhor que ele se aproximava para ver, o Senhor, do
meio da sarça, o chamou, e disse: Moisés, Moisés! Ele respondeu: Eis-me aqui. E
disse o Senhor: Não te chegues para cá, tira as sandálias dos pés, porque o
lugar em que estás é terra santa. E lhe disse: Eu sou o Deus de teu pai, Deus
de Abraão, Deus de Isaque e de Jacó” (Êxodo 3, 4-6)
“E
ao menos que há uma substância anterior ao mundo, viva e subsistente, que
serviu de ajuda ao Pai e Deus do universo na criação de todos os seres, chamada
Verbo de Deus e Sabedoria. Além das provas expostas, nos foi dado ouvi-lo da
própria Sabedoria em pessoa que, pela boca de Salomão nos inicia claramente e
seu próprio mistério: “Eu, a sabedoria, plantei minha tenda no conselho e
invoquei o conhecimento e a inteligência; por meu intermédio reinam os reis, e
os potentados administram justiça; por meu intermédio os grandes são
engrandecidos; e por meu intermédio os soberanos dominam a terra”
(Eclesiático24, 6-12; Provérbios8, 15-16).
“Ao que se acrescenta: “O Senhor me criou
como princípio de seus caminhos em suas obras, antes dos séculos assentou meus
fundamentos. No princípio antes que fizesse o céu e a terra, antes que brotasse
as fontes das águas, antes de firmar os montes e antes de todos os outeiros,
engendrou a mim. Quando preparava os céus, eu estava com Ele; e quando tornava
perenes os mananciais que estão sob o céu, eu estava com Ele a dirigir. Eu me
sentava ali onde a cada dia Ele se agradava e me encantava estar diante d’Ele
em toda ocasião, quando Ele se congratulava por ter terminado o universo”.
“Brevemente
pois, está exposto que o Verbo divino existia antes de tudo, e também a quem
apareceu, já que não o fez a todos.”
“Mas
porque não foi isto ensinado antes, antigamente, a todos as nações, assim como
é agora? Talvez possa explica-lo esta resposta: a vida primitiva dos homens era
incapaz de encontrar um lugar para o ensinamento de Cristo, todo sabedoria e
virtude.”
“De
fato, logo no início, depois de seu primeiro tempo de vida feliz, o primeiro
homem se afastou dos mandamentos divinos e lançou-se nesta vida mortal e
perecível, trocando as delícias divinas do começo por essa terra maldita. E
seus descendentes povoaram toda nossa terra, e com exceção de uns poucos aqui e
ali, foram manifestadamente degenerando e chegaram a ter uma conduta própria de
animais e uma vida intolerável.”
“Não
lhes ocorria sequer pensar em cidades, nem em normas, nem em artes, nem
ciências. De leis e juízos, assim como da virtude da filosofia não conheciam
nem o nome. Como gente rude e selvagem, levavam vida nômade por lugares
desertos. Com a excessiva maldade a que livremente se entregaram. Corrompiam o
raciocínio natural e toda semente de inteligência e suavidade próprias da alma
humana. E a tal ponto se entregavam sem reservas à toda iniquidade, que por
vezes se corrompiam mutualmente, às vezes se matavam uns aos outros,
ocasionalmente praticavam antropofagia, levaram sua ousadia até combater contra
Deus e travar guerras de gigantes por todos conhecidas, e pensaram em
fortificar a terra contra o céu e preparar-se, em seu louco desvario, para
fazer guerra àquele que está sobre tudo”.
“Aos
que levavam tal vida, Deus, que tudo controla, perseguiu com inundações e
incêndios devastadores, como fossem uma floresta selvagem espalhada pela terra,
e os abateu com fomes contínuas, com pestes e guerras, e ainda fulminando-os do
alto, como se com estes remédios tão amargos tentasse eliminar uma espantosa e
gravíssima enfermidade das almas.”
“Então,
pois, quando estavam realmente ao ponto de chegar ao estupor da maldade, como
de uma tremenda embriaguez que obscurecesse e afundasse em trevas as almas de
quase todos os homens, a Sabedoria de Deus, sua primeira e primogênita
criatura, o próprio Verbo preexistente, por um excesso de amor aos homens, se
manifestou aos seres inferiores, algumas vezes por mio de visões de anjos e
outras por si mesmo, como poder salvador de Deus, a alguns poucos varões amigos
de Deus, e não de outra maneira que em forma de homem, a única que poderia
aparecer para eles”.
“Mas
uma vez que, por meio destes, a semente da religião se estendeu a uma multidão
de homens, e surgiu dos primeiros hebreus da terra uma nação inteira que se
apegou à religião, Deus, por meio do profeta Moisés, entregou a estes, como a
homens que continuavam em seu antigo estilo de vida, imagens e símbolos de
certo misterioso sábado e da circuncisão, e iniciou-os em outros preceitos
espirituais, mas não lhes revelou o próprio mistério”.
“Mas
a sua lei ficou famosa, e como a brisa perfumada difundiu-se entre os homens.
Então, a partir deles, as mentes da maioria dos povos se foi suavizando por
influência de legisladores e filósofos daqui e d’acolá, e a suavidade, ao ponto
de chegarem a uma paz profunda, amizade e trato de uns para com os outros. Pois
bem, assim é que finalmente, no início do império romano e por meio de um homem
que em nada diferia de nossa natureza quanto à substâncias corporal, se
manifestou a todos os homens e a todas as nações espalhadas pelo mundo
considerando-os preparados e dispostos já a receber o conhecimento do Pai,
aquele mesmo mestre de virtudes em pessoa, o colaborador do Pai em toda obra, o
divino e celestial Verbo de Deus, e tão grandes coisas realizou e padeceu
quantas se achavam nas profecias; estas
haviam proclamado de antemão que um homem e Deus ao mesmo tempo viria habitar
nesta vida e realizaria maravilhas e
seria conhecido como mestre da religião do Pai para todas as nações; também
haviam proclamado a maravilha de seu nascimento, a novidade de seus
ensinamentos, suas obras admiráveis e, como se isto fosse pouco, a forma de sua
morte, sua ressurreição de entre os mortos e sobretudo sua divina restauração
nos céus.”
“Quando
ao reinado final do Verbo, o profeta Daniel, contemplando-o sob influência do
Espírito divino, sentiu-se divinamente inspirado e descreveu assim, bem no
estilo humano sua visão: “Porque eu – disse – estava olhando até que foram
colocados tronos, e um ancião de muitos dias se assentou. E sua roupa era alva
como a neve, e seu cabelo como lã limpa; seu trono era uma chama de fogo, e
suas rodas, fogo ardente. Um rio de fogo brotava diante d’Ele e milhares de
milhares o serviam e miríades e miríades estavam diante d’Ele. Sentou-se no
tribunal e se abriram os livros” (Daniel 7, 9-10).
“Após
poucas linhas continua dizendo: “Eu estava olhando, e eis que vinha com as
nuvens do céu um como um filho de homem que se dirigiu ao Ancião de muitos
dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado o domínio e glória e o reino,
para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu
domínio eterno, não passará, e o seu reino não será destruído”.
“Pois
bem, está claro que todas estas coisas não poderiam referir-se ao a outro que
não fosse nosso Salvador, ao Deus-Verbo, que no princípio estava em Deus e que,
por causa de sua encarnação nos últimos tempos foi chamado Filho do homem”.
“Mas
fiquemos contentes com o que foi dito, para que a presente obra, pois em
comentários especiais já reuni as profecias que tangem a Jesus Cristo, nosso
Salvador, e em outros escritos dei uma melhor demonstração de tudo que
expusemos acerca d’Ele”.
De como os nomes de Jesus e de Cristo já
eram conhecidos desde a antiguidade e honrados pelos profetas inspirados por
Deus
[Das prefigurações do Antigo Testamento a
respeito de Jesus Cristo]
“É
chegado o momento de demonstrar que também entre os antigos profetas, amigos de
Deus, já se honravam os nomes de Jesus e de Cristo”.
“Moisés
mesmo foi o primeiro a conhecer o nome de Cristo cm o mais augusto e glorioso
quando fez entrega de figuras, símbolos e imagens misteriosas das coisas do
céu, conforme a voz que lhe dizia: “Vê, pois, farás todas as coisas segundo o
modelo que te foi mostrado no monte”; e celebrando ao sumo sacerdote de Deus
tanto quanto é possível a um homem, proclama-o Cristo. A esta dignidade do
supremo sacerdócio, que para ele ultrapassa qualquer dignidade dos homens,
sobre a honra e glória, adiciona o nome de Cristo. Portanto, ele conhecia o
caráter divino de Cristo”.
“Mas
o mesmo Moisés, por obra do Espírito divino, conhecia de antemão bem claramente
também o nome de Jesus, considerando-o mesmo digno de um privilégio único. Na
verdade, nunca havia pronunciado este nome entre os homens antes de ser
conhecido por Moisés. Este aplica o nome de Jesus pela primeira e única vez
àquele que, novamente conforme a figura e o símbolo, ele sabia que viria
sucedê-lo depois de sua morte no comando supremo”.
“Nunca
antes seu sucessor havia usado o nome de Jesus, mas era chamado de outro nome,
Ausé, exatamente o que lhe haviam dado seus pais. Moisés deu-lhe o nome de
Jesus como privilégio precioso, muito maior do que o de uma coroa real. Deu-lhe
este nome porque, em realidade, o próprio Jesus, filho de Navé, era portador da
imagem de nosso Salvador, o único que, depois de Moisés e depois de haver
concluído o culto simbólico por ele transmitido, o sucederia no comando da
verdadeira e sólida religião”.
“E
desta maneira Moisés, dando-lhes a maior honra, aplicou o nome de Jesus Cristo
nosso Salvador aos dois homens que, segundo ele, mais sobressaísse em virtude e
glória sobre todo povo, a saber, o sumo sacerdote e aquele que haveria de
sucedê-lo no comando”.
“Está
claro também que os profetas posteriores anunciaram a Cristo por seu nome e
deram testemunho adiantadamente, não apenas da conspiração do povo judeu que
seria levantada contra Ele, mas também do chamamento que Ele faria a todas as
nações. Uma vez será Jeremias, quando assim diz: “O
espírito de nosso rosto, o Cristo Senhor, de quem havíamos dito: A sua sombra
viveremos entre os povos, caiu o preso e suas armadilhas” (Lamentações4,
20). Outra vez será Davi, que exclama perplexo: “Por que se amotinaram as
nações e os povos imaginaram planos vãos? Levantaram-se os reis da terra e os
príncipes se uniram contra o Senhor e seu Cristo; e logo acrescenta, falando na
própria pessoa de Cristo: “O Senhor me disse: Tu és meu filho, eu hoje, te
gerei. Pede-me, e eu te darei as nações em herança e os confins da terra em
possessão”.
“Mas,
deve-se saber que, entre os hebreus, o nome de Cristo não era ornamento apenas
dos que estavam investidos do sumo sacerdócio eram ungidos simbolicamente com
óleo preparado, mas também dos reis, que eram ungidos pelos profetas por
inspiração divina e faziam deles imagens de Cristo, pois efetivamente estes
reis já levavam em si mesmos a imagem do poder real e soberano do único e
verdadeiro Cristo, Verbo divino, que reina sobre todas as coisas”.
“Além
disso, a tradição nos faz saber igualmente que também alguns profetas foram
convertidos em “Cristos”, figuradamente, por meio da unção com o óleo, de forma
que todos estes fazem referência ao verdadeiro Cristo, o Verbo divino e
celestial, único sumo Sacerdote do universo, único rei de toda criação e, entre
os profetas, o único sumo Profeta do Pai”.
“Prova
disto é que nenhum dos que antigamente foram ungidos simbolicamente; nem
sacerdotes, nem reis, nem profetas, possuíram tão alto poder de virtude divina
como está demonstrado que possuiu Jesus, nosso Salvador e Senhor, o único e
verdadeiro Cristo”.
“Ao
menos nenhum deles, por mais que brilhasse por sua dignidade e por sua honra
entre os seus em tantas gerações, deu jamais o nome de cristãos aos seus
súditos, aplicando-lhes figuradamente o nome de Cristo. Nem tampouco seus
súditos renderam-lhes honra de culto, nem foi de nenhum deles a disposição de
que após a sua morte estivessem preparados para morrer pelo mesmo a quem
horavam. E por nenhum deles houve tamanha comoção de todas as nações do vasto
mundo. E assim é, que a força do símbolo que havia neles era incapaz de operar
como operou a presença da verdade demonstrada através de nosso Salvador”.
“Este
não tomou de ninguém os símbolos e figuras do sumo sacerdócio, nem descendia,
quanto à carne, de família sacerdotal, nem foi elevado à dignidade real por um
corpo de guarda composto de homens; nem mesmo foi um profeta igual aos de
antigamente nem obteve entre os judeus nenhuma precedência de honra ou de
qualquer outro tipo; e, ainda assim, está adornado pelo Pai de todas estas
prerrogativas, e não por figura, mas em verdade mesmo”.
“Assim,
sem ter sido objeto de nada semelhante ao que descrevemos, está proclamado
Cristo com mais razão que todos aqueles, e sendo Ele mesmo o único e verdadeiro
Cristo de Deus, encheu o mundo inteiro de cristãos, isto é, de seu nome
realmente venerável e sagrado. Já não são figuras e imagens o que Ele entrega a
seus seguidores, mas as próprias virtudes em sua pureza e uma vida no céu com a
própria doutrina da verdade”.
“E
a unção que recebeu não foi preparada com substâncias materiais, mas algo
divino pelo Espírito de Deus, por sua participação na divindade incriada do
Pai. É justamente isto que ensinava Isaías quando clamava como se o fizesse com
a própria voz de Cristo: “O espírito do Senhor está sobre mim, por isto me
ungiu: e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, a apregoar os cativos à
liberdade e aos cegos o ver de novo” (Isaías61,1).
“E
não apenas Isaías. Também Davi dirige-se ao mesmo Cristo e lhe diz: “Teu trono é, ó Deus, eterno e para sempre; o cetro do teu
reino, cetro de retidão. Amaste a justiça e odiaste a maldade, por isso ungiu
Deus, o teu Deus, com óleo de alegria, mais que aos teus companheiros”
(Salmo45, 6-7). Aqui, o primeiro versículo do texto o chama Deus; o segundo
honra-o com o cetro real”.
“Em
continuação, depois de seu poder divino e real, mostra o mesmo Cristo, em
terceiro lugar, ungido não com óleo que procede de matéria física, mas com o
óleo divino da alegria, representando sua excelência, sua superioridade e sua
diferença em relação aos antigos, ungidos mais corporeamente e figuradamente”.
“Em
outra passagem, o mesmo Davi revela coisas que referem a Cristo com estas
palavras: “Disse o Senhor ao meu senhor: Senta-te à minha destra enquanto ponho
teus inimigos sob teus pés” (Salmo110, 1). E também: “Do meu sei te criei antes
do alvorecer. Jurou o Senhor e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedeque” (Salmo110, 4).
“Pois
bem, esse Melquisedeque aparece na Sagrada Escritura como sacerdote do Deus
Altíssimo sem que fosse assinalado com algum óleo preparado e sem que fosse
aparentado com o sacerdote hebreu por sucessão hereditária alguma. Por isso é
que nosso Salvador é proclamado com juramento Cristo e Sacerdote segundo sua
ordem e não segundo a de outros, que haviam recebido símbolos e figuras”.
“É
por isso que a história tampouco nos transmitiu que Cristo tivesse sido ungido
corporeamente entre os judeus, nem que tivesse nascido de uma tribo sacerdotal,
pelo contrário, que recebeu seu ser de Deus mesmo antes do alvorecer, sito é,
antes da criação do mundo, e que tomou posse de um sacerdócio imortal e
duradouro pela eternidade sem fim”.
“Uma
prova sólida e patente desta unção incorpórea e divina é que, de todos os
homens de seu tempo, e dos que se seguiram até hoje, unicamente Ele, entre
todos e no mundo inteiro, foi chamado e proclamado Cristo; somente a Ele
reconhecem sob este nome, dão testemunho d’Ele e se recordam todos, tantos
gregos, quanto bárbaros; e até hoje seus seguidores, espalhados por toda terra
habitada, seguem dando-lhe honras de rei, honrando-o mais do que os profetas e
glorificando-o como verdadeiro e único Sumo Sacerdote e nascido antes de todos
os séculos, e por haver recebido do Pai as honras divinas, adoram-no como a
Deus”.
“E
o que é mais extraordinário: que aqueles que a Ele estamos consagrados não
somente o horamos com voz e com palavras, mas também com a plena disposição da
alma, ao ponto de estimar mais o martírio por Ele do que nossa própria vida”.
De
quando Cristo se manifestou aos homens.
“Bem,
depois deste preâmbulo, necessário para a história eclesiástica a que me
propus, só nos resta começar nossa espécie de viagem, partindo da manifestação
de nosso Salvador em sua carne e depois de invocar a Deus, Pai do Verbo, ao
mesmo Jesus Cristo, nosso Salvador e Senhor, Verbo celestial de Deus, como
nossa ajuda e nosso colaborador na verdade da exposição”.
“Corria
pois o ano 42 do reinado de Augusto, [nome completo: Caio
Júlio César Otaviano Augusto (César Augusto)] e o vigésimo oitavo desde a
submissão do Egito e da morte de Marco Antônio e Cleópatra (com o qual se
extinguiu a dinastia egípcia dos Ptolomeus), quando nosso Salvador e Senhor
Jesus Cristo nasceu em Belém da Judeia, conforme as profecias a seu respeito,
nos tempos do primeiro recenseamento, e sendo Quirino governador da Síria”.
“Este
recenseamento de Quirino também é registrado pelo mais ilustre dos
historiadores hebreus, Flavo Josefo, ao relatar outros feitos referente à seita
dos galileus, surgida naquela ocasião, e a qual também é mencionada pelo nosso
Lucas no livro dos Atos quando diz: “Depois deste levantou judas o galileu, nos
dias do recenseamento, e arrastou o povo atrás de si. Também este pereceu, e
todos os que o seguiram se dispersaram” (Atos5, 37).
“A
estas indicações o mencionado Josefo acrescenta literalmente no livro 18 de
suas “Antiguidades” o seguinte: “Quirino, membro do senado, homem que havia
desempenhado já outros cargos pelos quais passou, sem omitir um só, até chegar
a cônsul e grande por sua dignidade em todos os demais, assumiu a Síria
acompanhado por uns poucos, enviado por César como juiz da nação e censor dos
bens”.
“E
pouco depois diz: “Mas judas gaulanita – da cidade chamada Gaula –, tomando
consigo a Sadoc, um fariseu, andava instigando à rebelião; dizia que o censo
não conduziria outra coisa que não a escravidão declarada, e exortava o povo a
aferrar-se à liberdade”.
“E
sobre o mesmo escreve no livro 2 de suas “Histórias da guerra judaica”: “Por
esse tempo certo galileu, chamado Judas, provocou a rebelião dos habitantes do
país, reprovando-lhes a submissão ao pagamento do tributo aos romanos e ao
submeter-se a amos mortais além de Deus”. Assim escreveu Josefo”.
De
como segundo as profecias, sem seus dias terminaram os reis por linha
hereditária que regiam a nação judia e começou a reinar Herodes, o primeiro
estrangeiro
“Foi
nesse tempo que assumiu o reinado sobre o povo judeu, pela primeira vez,
Herodes, de família estrangeira, e cumpriu-se a profecia feita por meio de Jeremias,
que dizia: “Não faltará chefe saído de Judá nem governante nascido de sua carne
até que chegue aquele para quem está reservado” (Jeremias33,17). E sinaliza-o
como esperança das nações .”
“Esta
predição efetivamente não havia sido cumprida durante o tempo que ainda lhes
era permitido viver sob governantes de sua própria nação, começando com o
próprio Moisés e continuando até império de Augusto. Nos tempos deste é que
pela primeira vez um estrangeiro, Herodes, se vê investido pelos romanos com o
governo dos judeus: segundo nos informa Josefo, era um idumeu por parte de pai
e árabe por parte de mãe. Mas, segundo Africanus – que não era mau historiador
–, os que dão informação exata sobre Herodes dizem que Antípatro (este era seu
pai) era filho de um certo Herodes de Ascalon, um dos chamados hieródulos,
que servia no templo de Apolo.
“Este
Antípatro, ainda criança, foi raptado por bandidos idumeus e viveu ele. Criado
em meio a seus costumes, mais trade firmou amizade com Hircano, sumo sacerdote
judeu. Dele nasceu Herodes dos tempos de nosso Salvador”.
“Tendo,
pois, o reino judeu vindo às mãos de tal pessoa, a expectativa das nações,
conforme a profecia, estava também à porta; havia desaparecido do reino os
príncipes e mandatários descendentes por via de sucessão entre si do próprio
Moisés”.
“Ao
menos tinham reinado antes do cativeiro e da migração para a Babilônia,
começando com Saul – o primeiro – e por Davi. E antes dos reis, foram
governados por mandatários chamados de juízes, que tinham começado também
depois de Moisés e de seu sucessor, Josué”.
“Pouco
depois do regresso da Babilônia servira-se initerruptamente de um regime
político de oligarquia aristocrática (eram os sacerdotes que estavam à frente
dos assuntos), até que o general romano Pompeu atacou Jerusalém, assaltou à
força e profanou os lugares santos entrando até a parte mais escondida do
Templo. E aquele que até o momento havia mantido por sucessão hereditária, na
qualidade de rei e de sumo sacerdote – chamava-se Aristóbulo – mandou
acorrentado à Roma, junto com seus filhos, e entregou o sumo sacerdócio a seu
irmão Hircano. A partir daquele momento o povo judeu inteiro tornou-se
tributário dos romanos”.
“Desta
forma, assim que Hircano, último a quem chegou à sucessão dos últimos
sacerdotes, foi levado cativo pelos partos, o senado romano e o imperador
Augusto colocaram a nação judia nas mãos de Herodes, o primeiro estrangeiro,
como já foi dito”.
“Em
seu tempo ocorreu visivelmente a vinda de Cristo e, segundo a profecia,
seguiu-se a esperada salvação e vocação dos gentios. A partir deste tempo
efetivamente, os príncipes e mandatários originários de Judá, quero dizer, os
que vinham do povo judeu, desapareceram, e em seguida naturalmente viram
perturbados também os assuntos do sumo sacerdócio, que então vinha sendo
passado de modo estável de pais para filhos em cada geração”.
“Encontramos
importante testemunho de tudo isso em Josefo, que explica como Herodes assim
que os romanos lhe confiaram o reino, deixou de instituir sumos sacerdotes
vindos da antiga linhagem, pelo contrário, distribuiu esta honra entre gente
sem expressão. E diz ainda que a instituição dos sacerdotes Herodes foi imitado
por seu filho Arquelau e depois dele pelos romanos, quando tomaram para si o
governo dos judeus.”
“O
mesmo Josefo explica como Herodes foi o primeiro a fechar sob seu próprio selo
as vestimentas sagradas do sumo sacerdote, não permitindo mais aos sumos
sacerdotes levá-las sobre si, e que o mesmo foi feito por seu sucessor
Arquelau, e depois deste pelos romanos”.
“Tudo
o que foi dito sirva como prova do cumprimento de outra profecia referente à
manifestação de Jesus Cristo nosso Salvador. No livro de Daniel, a Escritura
determina clara e expressamente um número de semanas até o Cristo príncipe –
acerca do que fiz uma exposição detalhada em outras obras – e profetiza que,
depois de cumprida estas semanas, seria extinta por completo a unção entre os
judeus. Agora, pois demonstra-se claramente que isto se cumpriu com o
nascimento de nosso Salvador Jesus Cristo. Sirva como exposição necessária para
a verdade das datas”.
Explicação de Eusébio sobre a discrepância
acerca da genealogia de Jesus Cristo, segundo os evangelistas Mateus e Lucas
“Posto
que ao escrever seus evangelhos Mateus e Lucas nos transmitiram genealogias
diferentes acerca de Cristo, que para muitos (até os nossos dias) parecem
discrepantes, e como cada crente, por ignorância da verdade, se esforça por
inventar sobre estas passagens, vamos adicionar considerações sobre este tema
que chegaram a nós e que Africanus, mencionado a pouco, recorda em carta a
Aristides. Acerca da concordância das genealogias nos evangelhos. Refuta as
opiniões dos demais como forçadas e mentirosas, e expõe o parecer que recebem
nestes mesmos termos: Porque efetivamente, em Israel os nomes das famílias se
enumeram segundo a natureza e segundo a lei. Quando um morria sem filhos e seu
irmão os engendrava para conservar o nome (a razão é que ainda não se havia
dado uma esperança clara de ressurreição, e arremedavam a prometida
ressurreição futura como uma ressurreição mortal, para que se perpetuasse o
nome do falecido). Como queira, que os incluídos nesta genealogia uns se
sucederam por via natural de pais a filhos, e os outros, ainda que gerados por
uns, recebiam o nome de outros, de ambos os grupos se registra a memória: dos
que foram gerados e dos que passaram por sê-lo”.
“Deste
modo nenhum dos evangelhos engana: enumeram segundo a natureza e segundo a lei.
De fato, duas famílias, que descendiam de Salomão e de Natã respectivamente,
estavam mutuamente entrelaçadas por causa das ressurreições dos que haviam
morrido sem filhos, das segundas núpcias e da ressurreição da descendência, de
forma que é justo considerar os mesmos indivíduos em diferentes ocasiões filhos
de diferentes pais, dos fictícios e dos verdadeiros, e também que ambas
genealogias são estritamente verdadeiras e chegam até José por caminhos
complicados, mas exatos”.
“Mas
para que fique claro o que foi dito, vou explicar a transposição das linhagens.
Que vai enumerando gerações a partir de Davi e através de Salomão encontra que
o terceiro antes do final é Matã, o qual gerou Jacó, pai de José. Mas partindo
de Natã, filho de Davi, segundo Lucas, também o terceiro para o final é Melqui,
pois José era filho de Heli, filho de Melqui. Portanto, sendo José nosso ponto
de atenção, deve-se demonstrar como nos é apresentado como seu pai um outro:
Jacó, que traz sua linhagem de Salomão, e Heli, que descende de Natã; e de que
modo, primeiramente os dois, Jacó e Reli, são irmãos; e ainda antes, como é que
os pais deste Natã e Melqui, sendo de linhagens diferentes, aparecem como avós
de José?”
“Assim
é que Matã e Melqui se casaram sucessivamente com a mesma mulher e tiveram
filhos, filhos de uma mesma mãe, pois a lei não impedia que uma mulher sem
marido – porque este a houvesse repudiado ou porque houvesse morrido – se
casasse com outro”.
“Pois
bem, de Esta (pela tradição era assim que chamava a mulher), Matã, o
descendente de Salomão foi o primeiro, gerando Jacó; tendo morrido Matã,
causou-se a viúva com Melqui, cuja descendência remonta a Natã e que, sendo,
como dissemos antes da mesma tribo, era de outra família. Este teve um filho:
Heli”.
“E
assim encontramos que, sendo de duas linhagens diferentes, Jacó e Heli são
irmãos por parte de mãe. Morrendo Heli sem filhos, seu irmão Jacó casou-se com
uma mulher, e dela teve um terceiro filho, José, o qual, segundo a natureza,
era seu (e segundo o texto, pois por isso está escrito: ‘Jacó gerou a José’),
mas, segundo a lei, era filho de Heli, já que Jacó, sendo seu irmão
suscitou-lhe descendência”.
“Portanto,
não se tirará autoridade a sua genealogia. Ao fazer tal enumeração o
evangelista Mateus diz: ‘Jacó gerou a José; mas Lucas procede o contrário: O
qual era segundo se cria (porque também acrescenta isso), filho de José que era
filho de Heli, filho de Melqui. Não seria possível expressar mais corretamente
o nascimento segundo a lei: vai remontando um a um até Adão, que foi de Deus, e
até o final omite o “gerou”, para não o aplicar a este tipo de paternidade”.
“E
isto não está sem provas nem é improvado. Efetivamente, os parentes carnais do
Salvador, por geração ou simplesmente pelo ensino, mas sendo verdadeiros em
tudo, transmitiram também o que segue. Uns ladrões idumeus assaltaram Ascalon,
cidade da Palestina; de um templo de Apolo, construído diante dos muros,
levaram cativo, junto com os despojos, a Antípatro, filho de hieródulos chamado
Herodes. Não podendo o sacerdote pagar o resgate por seu filho, Antípatro foi
educado nos costumes idumeus, e mais tarde fez amizade com Hircano, o sumo
sacerdote da Judéia”.
“Logo
tornou-se embaixador junto a Pompeu em favor de Hircano, para quem conseguiu o
reinol devastado por seu irmão Aristóbulo; e ele mesmo prosperou muito, pois
logo conseguiu o título de epimeletés, da Palestina. A Antípatro,
assassinado por inveja de sua grande fortuna, sucedeu seu filho Herodes, que
mais tarde por decisão de Antônio e Augusto e por decreto senatorial, reinaria
sobre os judeus. Este teve como filhos Herodes e os outros tetrarcas. Todos
estes dados coincidem com as histórias dos gregos”.
“Além
disso, estando escritas até então os arquivos as famílias hebreias, inclusive
as que remontam aos prosélitos, como Aquior o amonita, Rute a moabita e os que
saíram do Egito misturados aos hebreus, Herodes, por não ter nada com a raça
dos israelitas e magoado pela consciência de seu baixo nascimento, fez queimar
os registros de suas linhagens, acreditando que passaria por nobre, já outros
também não poderiam remontar sua linhagem, apoiados em documentos públicos, aos
patriarcas ou aos prosélitos ou aos chamados “geyoras”, os estrangeiros
misturados”.
“Em
realidade, uns poucos mais cuidadosos que tinham para si registros privados ou
que se lembravam dos nomes ou haviam-nos copiado, se ufanavam se ter salvo a
memória da nobreza. Ocorreu que entre estes estavam aqueles de que falamos
antes, chamados despósinoi por causa de seu parentesco com a família do
Salvador e que, desde as aldeias de Nazaré e Cocaba, visitaram o resto do país
e explicaram a referida genealogia, começando pelo Livro dos Dias, até onde
alcançaram”.
“Seja
assim ou de outro modo, ninguém poderia encontrar uma explicação mais clara. Eu
ao menos penso assim, e assim também todo aquele que tenha boa vontade. Ainda
que não seja comprovada, ocupemo-nos dela, porque não é possível expor outra
melhor e mais clara. Em todo caso, o Evangelho diz inteiramente a verdade”.
“E
ao final desta mesma carta adiciona o seguinte: Matã, da linhagem de
Salomão, gerou Jacó. Morto Matã, Melqui, o da linhagem de Natã gerou da mesma
mulher a Heli. Portanto, Heli e Jacó são irmãos uterinos. Morto Heli sem
filhos, Jacó dá-lhe uma descendência gerando a José, filho seu segundo a
natureza, mas de Heli segundo a Lei. Assim é que José era filho de ambos”. Assim
diz Africanus.
“Estabelecida
desta maneira a genealogia de José, também Maria aparece junto a ele,
obrigatoriamente, como sendo da mesma tribo, já que ao menos segundo a lei de
Moisés, não era permitido misturar-se às outras tribos, pois é prescrita a
união em matrimônio com um do mesmo povo e da mesma tribo, para que a herança
familiar não rodasse de tribo em tribo. Que isso seja o bastante”.
[Aqui
Eusébio esclarece e afirma que não existe discrepância na narração das
genealogias de Jesus Cristo escritas por Mateus e Lucas, apenas ambos seguiram
linhas genealógicas diferentes, enquanto um descreve segundo a descendência por
parte direta, ou seja, por natureza, o outro descreve a descendência de Cristo
segundo a lei, conforme era comum entre a lei dos judeus.]
O infanticídio cometido por Herodes e o
seu fim catastrófico
“Nascido
Cristo em Belém de Judá, conforme as profecias no tempo mencionado, Herodes,
ante a pergunta doa magos vindos do Oriente que queriam saber onde se achava o
nascido rei dos judeus – porque tinham visto sua estrela, e o motivo de sua
viagem tão longa era seu empenho em adorar como Deus ao recém-nascido – ,
bastante perturbado pelo assunto, como se estivesse em perigo a soberania - ao menos era o que ele realmente pensava –,
depois de informar-se com os doutores da lei dentre o povo onde esperavam que
haveria de nascer o Cristo, assim soube que a profecia de Miquéias indicava
Belém, ordenou mediante um edito matar os meninos de peito de Belém e
redondezas, de dois anos para baixo, segundo o tempo exato indicado pelos
magos, pensando que também Jesus, como era natural, teria certamente a mesma
sorte que os outros meninos de sua idade”.
“Mas
o menino, levado para o Egito, adiantou-se ao plano: um anjo apareceu a seus
pais indicando-lhe de antemão o que iria acontecer. Isto é, o que nos ensina a
Sagrada Escritura do Evangelho”.
“Mas,
além disso, é conveniente dar uma olhada na resposta pelo atrevimento de
Herodes contra Cristo e os meninos de sua idade. Imediatamente depois, sem a
menor demora, a justiça divina o perseguiu quando ainda transbordava de vida e
lhe mostrou o prelúdio do que o aguardava para depois de sua saída desta vida”.
“Não
é possível resumir as sucessivas calamidades domésticas com que se enevoou a
suposta prosperidade de seu reino: os assassinatos de sua mulher, de seus
filhos e pessoas muito próximas a sua família por parentesco ou por amizade. O que
se pode supor a respeito disso deixa à sombra qualquer representação trágica.
Josefo explica extensamente em seus relatos históricos”.
“Mas
sobre um flagelo divino o arrebatou e ele começou a morrer já desde o momento
em que conspirou contra nosso Salvador e contra os demais meninos, será bom
escutar as palavras do próprio escritor, que no livro 12 de suas Antiguidades
judaicas descreveu o final catastrófico da vida de Herodes como segue: A
doença de Herodes fazia-se mais e mais virulenta. Deus vingava seus crimes”.
“Com
efeito, era um fogo suave que não denunciava ao tato dos que apalpavam, um
abrasamento como o que por dentro aumentava sua destruição; e logo uma vontade terrível
de comer algo, sem que nada lhe servisse, ulcerações e dores atrozes nos
intestinos, e sobretudo no ventre, com inchaço úmido e reluzente nos pés”.
“Em
torno do baixo-ventre tinha uma infecção parecida; mais ainda, suas partes
pudendas estavam podres e criavam vermes. Sua respiração era de uma rigidez
aguda e extremamente desagradável pela carga de supuração e por sua forte asma;
em todos os membros sofria espasmos de uma força insuportável”.
“Certo
é que os adivinhos e os que tem sabedoria para predizer estas coisas diziam que
Deus estava fazendo-se pagar pelas muitas impiedades do rei. Isto é o que o
autor citado anota na mencionada obra”.
“E
no livro segundo os relatos históricos nos dá uma tradição parecida acerca do
mesmo assunto, escrevendo assim: Então a enfermidade de apoderou de todo seu
corpo e foi destroçando-o com vários sofrimentos. A febre na verdade, era
fraca, mas era insuportável a comichão em toda superfície do corpo, as dores
contínuas no ventre, os edemas dos pés, como de um hidrópico, a inflamação do
baixo-ventre e a podridão verminosa de suas partes pudendas, ao que deve
acrescentar a asma, a dispneia e espasmos em todos seus membros, ao ponto de os
adivinhos dizerem que estes sofrimentos eram castigos”.
“Mas,
ele mesmo lutando com tais padecimentos, ainda aferrava à vida, e esperando
salvar-se imaginava curas. Atravessou o Jordão e utilizou águas termais de
Calirroe. Estas vão desaguar no mar do Asfalto, e como são doces são também
potáveis”.
“Ali
os médicos decidiram aquecer com azeite quente todo seu purulento corpo em
banheira cheia de azeite; desmaiou e revirou os olhos, como se estivesse
acabado. Armou-se grande alvoroço entre os criados, e como o ruído voltou a si.
Renunciando desde então à cura, mandou distribuir a cada soldado 50 dracmas e
muito dinheiro aos chefes e a seus amigos”.
“Regressou
então e chegou à Jericó, já vítima da melancolia e ameaçado pela morte. Pôs-se
a tramar uma ação criminosa. De fato, fez reunir notáveis de cada aldeia de
toda Judeia e mandou encerrá-los no chamado hipódromo”.
“Chamando
depois sua irmã Salomé e seu marido Alexandre disse: “Sei que os judeus
estão festejando a minha morte, mas posso ainda ser pranteado por outros a ter
funerais esplêndidos se vocês atenderem minhas ordens. Assim que eu expirar,
fazei com que cada um dos homens aqui detidos seja imediatamente cercado de
soldados e fazei com que os matem, para que a Judeia inteira e cada casa, ainda
que à força chore por mim”.
E
um pouco mais adiante diz: “Depois, torturado também pela falta de alimento e
por uma tosse espasmódica e abatido pelas dores, tramava antecipar sua hora
fatal. Pegou uma maçã e pediu uma faca, pois tinha o costume de cortá-la para
comê-la. Depois, olhando em volta por medo de que houvesse alguém para impedi-lo,
levantou sua mão direita com a intenção de ferir-se”.
“Além
destes detalhes, o mesmo escritor refere que, antes de morrer de todo, mandou
que matassem outro de seus filhos legítimos, terceiro que somou aos outros dois
já assassinados anteriormente, e no mesmo momento. De repente e entre enormes
dores, expirou”.
“Assim
foi o final de Herodes (o grande), justo e merecido pelo infanticídio perpetrado
em Belém por atentar contra nosso Salvador. Depois disto, um anjo se apresentou
em sonhos a José, que vivia no Egito, e ordenou-lhe partir com o menino e sua
mãe para a Judeia, explicando que estavam mortos o que buscavam a morte do
menino, ao que acrescenta o evangelista: “Porém, vindo que Arquelau reinava
no lugar de seu pai Herodes, temeu ir para lá, mas avisados em sonhos,
retirou-se para a região da Galileia”.
Fonte: História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia

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