sexta-feira, 3 de agosto de 2018

ORÍGENES - PATRÍSTICA - De Principiis - Livro IV





Quem foi Orígenes?

Orígenes (em grego: Ὠριγένης), cognominado Orígenes de Alexandria ou Orígenes de Cesareia ou ainda Orígenes, o Cristão (Alexandria, Egito, c. 185 — Cesareia, ou, mais provavelmente, Tiro, 253), foi um teólogo, filósofo neoplatônico patrístico e é um dos Padres gregos.

Um dos mais distintos pupilos de Amônio de Alexandria, Orígenes foi um prolífico escritor cristão, de grande erudição, ligado à Escola Catequética de Alexandria, no período pré-niceno.
Inspirados em Orígenes e na Escola de Alexandria, muitos escritores cristãos desenvolveram suas obras: Sexto Júlio Africano, Dionísio de Alexandria, o Grande, Gregório Taumaturgo, Firmiliano, bispo de Cesareia (Capadócia), Teognosto, Pedro de Alexandria, Pânfilo e Hesíquio.
Orígenes de Alexandria não deve ser confundido com o filósofo Orígenes, o Pagão (210-280), mais jovem e também integrante da Escola de Alexandria, porém discípulo de Plotino.

O maior erudito da Igreja antiga - segundo J. Quasten - nasceu de uma família cristã egípcia e teve como mestre Clemente de Alexandria.

Assumiu, em 203, a direção da escola catequética de Alexandria - fundada por um estoico chamado Panteno, que se havia convertido à mensagem de Jesus - atraindo muitos jovens estudantes pelo seu carisma, conhecimento e virtudes pessoais.
Depois de ter também frequentado, desde 205, a escola de Amônio Sacas, fundador do neo-platonismo e mestre de Plotino, apercebeu-se da necessidade do conhecimento apurado dos grandes filósofos.
No decurso de uma viagem à Grécia, no ano de 230, foi ordenado sacerdote na Palestina pelos bispos Alexandre de Jerusalém e Teoctisto de Cesareia.
Em 231, Orígenes foi forçado a abandonar Alexandria devido à animosidade que o bispo Demétrio lhe devotava pelo facto de se ter castrado e convocou o Concílio de Alexandria (231) com esta finalidade. Também, contribui para esse facto o de Orígenes ter levado ao extremo a apropriação da filosofia platônica, tendo sido considerado herético.
Orígenes, então, passou a morar num lugar onde Jesus havia muitas vezes estado: Cesareia, na Palestina, onde prosseguiu suas atividades com grande sucesso, abrindo a chamada Escola de Cesareia. Na sequência da onda de perseguição aos cristãos, ordenada por Décio, Orígenes foi preso e torturado, o que lhe causou a morte, por volta de 253.
Os seus ensinos foram condenados ainda pelo Concílio de Alexandria de 400 e pelo Segundo Concílio de Constantinopla, em 533, o que demonstra terem perdurado até ao século VI.
Ele é o responsável pela teologia da Santíssima Trindade; Ou seja foi ele quem definiu a Sagrada Escritura nos revela Deus em três pessoas distintas sendo um só Deus, mas divididos em três pessoas; o Pai Eterno, o Filho, Jesus e o Espírito Santo tendo ambos igual poder e  a mesma divindade e igual majestade.
O nome Trindade não é bíblico, mas Jesus várias vezes distingue em separado a pessoa de Deus Pai, dele próprio e do Espírito Santo cada uma delas com um papel distinto. Assim disse Jesus "Ide e batizai... em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo" (Mt28, 19).  Não basta   batizar em nome de Deus, nem de Jesus nem somente do Espírito Santo. O batismo tem que ser dado em nome dos três. Provando que Deus é um só em três pessoas distintas, com igual poder e majestade. Daí esse Deus Uno e Trino é chamado por Orígenes de Trindade. OU seja, um único Deus mas, a nós revelados em três pessoas: O Pai Criador, O Filho Redentor, e o Espírito Santo Consolador e Santificador.            

Fonte:https://pt.wikipedia.org/wiki/Or%C3%ADgenes

PRÓLOGO

Todos os que crêem e estão certos de que a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo (Jo. 1, 17) e que sabem Cristo ser a verdade, segundo o que Ele próprio disse:
"Eu sou a verdade", (Jo. 14, 6) buscam a ciência que exorta os homens a viver bem e bem-aventuradamente em nenhum outro lugar senão nas próprias palavras e ensinamentos de Cristo.

Dizemos, porém, serem palavras de Cristo não apenas aquelas que Ele ensinou ao fazer-se homem e vivido na carne, pois, de fato, Cristo, o Verbo de Deus, estava em Moisés e nos profetas. Pois, sem o Verbo de Deus, como poderiam ter profetizado de Cristo? Se não fosse nossa intenção dar a esta obra toda a brevidade que lhe seja possível, não seria difícil demonstrar esta afirmação assinalando, nas Divinas Escrituras, como Moisés ou os profetas falaram ou fizeram tudo o que fizeram cheios do Espírito de Cristo. Julgo, para tanto ser suficiente utilizar apenas este testemunho de São Paulo, tirado da epístola que ele escreveu aos Hebreus, em que ele diz: "Pela fé Moisés, depois de grande, negou ser filho da filha de Faraó, escolhendo antes ser afligido com o povo de Deus que gozar a delícia transitória do pecado, considerando maior riqueza [os opróbrios] de Cristo que os tesouros dos egípcios" (Heb. 11, 24-26).

Paulo também nos indica que Cristo, depois de sua ascensão aos céus, falou em seus apóstolos, quando nos diz: "Porventura quereis por à prova Cristo, que fala em mim?" (II Cor. 13, 3).

Entretanto, muitos daqueles que declaram crer em Cristo discordam entre si não apenas em coisas pequenas e mínimas como também em grandes e máximas. Discordam sobre Deus, sobre o Senhor Jesus Cristo e sobre o Espírito Santo, e não só sobre estas coisas, como também sobre as demais criaturas, como as santas dominações ou virtudes. Parece-nos necessário, portanto, estabelecer primeiro uma linha certa e uma regra manifesta para que em seguida possamos investigar também as demais coisas. Embora haja muitos entre gregos e bárbaros que afirmem possuir a verdade, depois que acreditamos que Cristo é o Filho de Deus, deixamos de procurá-la entre aqueles que a sustentam por meio de falsas opiniões, por nos termos persuadido que é do próprio Cristo que a devemos aprender. Já que muitos, porém, são os que consideram serem de Cristo e que, apesar disto, entre eles mesmos há quem pense diversamente dos que os antecederam, devemos observar a pregação da Igreja que nos foi transmitida pela ordem de sucessão desde os Apóstolos e que nela
permanece até hoje, somente crendo naquela verdade que em nada discorde da tradição eclesiástica e apostólica.

Importa também saber que os santos apóstolos, ao pregar a fé de Cristo, creram que algumas coisas fossem necessárias para todos, mesmo para os que parecessem os mais preguiçosos para com a investigação da ciência divina. A estas no-las quiseram transmitir de modo manifestíssimo, deixando, porém, as suas razões à investigação daqueles que, pela sua excelência, tivessem merecido os dons do Espírito, e principalmente aos que tivessem alcançado, pelo próprio Espírito Santo, os dons da palavra, da sabedoria e da ciência. Quanto ao demais, porém, mencionaram apenas a sua existência, silenciando sobre o seu modo e sobre a sua origem, certamente para que os mais dedicados e amantes da sabedoria, quaisquer que, entre os seus pósteros, estes viessem a ser, pudessem ter um exercício no qual aplicassem o fruto de seu engenho, isto é, todos aqueles que se preparassem para se tornarem dignos e capazes de acolherem a sabedoria.

As coisas que nos foram transmitidas pela pregação apostólica de modo manifesto são as seguintes.
Primeiramente, que há um só Deus que tudo criou e ordenou e que, quando nada existia, fêz o Universo, Deus desde a primeira criatura e fundação do mundo, Deus de todos os justos, de Adão, de Abel, de Set, de Enós, de Enoc, de Noé, de Sem, de Abraão, de Isaac, de Jacó, dos doze patriarcas, de Moisés e dos profetas. E que este Deus, nos últimos dias, assim como havia prometido anteriormente pelos seus profetas, enviou Nosso Senhor Jesus Cristo, que primeiro haveria de chamar a Israel, depois também os gentios, após a perfídia do povo de Israel. Este Deus, justo e bom, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi quem nos deu a Lei e os Profetas e o próprio Evangelho, o qual é também o Deus dos apóstolos, assim como do Velho e do Novo Testamento.
Em segundo lugar, que o próprio Jesus Cristo que veio (ao mundo) foi gerado do Pai antes de toda a criatura. Ele mesmo, que serviu ao Pai na criação de todas as coisas, e que por meio dele todas as coisas foram feitas, humilhando-se a si mesmo nos últimos tempos, encarnou-se feito homem. Sendo Deus, permaneceu sendo Deus ao fazer- se homem.

Assumiu um corpo semelhante ao nosso corpo, deste diferindo apenas por ter nascido de uma virgem e pelo Espírito Santo. E também que este Jesus Cristo nasceu e padeceu de verdade, e não sofreu a morte comum a todos apenas imaginariamente, mas morrendo verdadeiramente.

Verdadeiramente também ressuscitou dos mortos e, depois da ressurreição, tendo convivido com os seus discípulos, subiu aos céus.
Em terceiro lugar, os apóstolos nos manifestaram o Espírito Santo, associado em honra e dignidade ao Pai e ao Filho. Nisto, porém, já não se distingue manifestamente se o Espírito Santo é gerado ou não gerado, ou se deve ser tido também ele mesmo como Filho de Deus ou não.
São estas coisas que devem ser investigadas com a melhor de nossa capacidade através de uma cuidadosa busca à partir das Sagradas Escrituras.

Prega-se também manifestamente nas igrejas que este Espírito inspirou cada um dos santos, dos profetas e dos apóstolos, e que não é outro o Espírito pelo qual foram inspirados os antigos e aqueles que viveram no tempo do advento de Cristo.

Depois disto foi-nos transmitido também que a alma, possuindo substância e vida própria, ao abandonar este mundo, será remunerada de acordo com os seus merecimentos, havendo de fruir a herança da vida eterna e da bem aventurança, se a isto houver dirigido os seus atos, ou de ser entregue ao fogo e suplício eternos, se a isto houver se curvado pela culpa de seus crimes. Haverá também um tempo para a ressurreição dos mortos, quando este corpo que agora "semeado na corrupção, ressuscitará
na incorrupção; semeado na ignomínia, ressuscitará na glória". (I Cor. 15, 42-43)

Está também definido na pregação da Igreja que toda alma racional possui vontade e livre arbítrio, e que há também para ela uma luta a ser travada contra o demônio e seus anjos e forças adversas, já que eles trabalham para onerá-la de pecados, enquanto que nós se vivermos retamente e com conselho, devemo-nos esforçar em nos despojarmos deste jugo.

Deve-se entender, por conseguinte, que ninguém de nós está submetido à necessidade, de tal modo que, ainda que não queiramos, sejamos a qualquer custo obrigado a fazer coisas boas ou más.
Se, de fato, temos nosso livre arbítrio, talvez algumas forças poderão impugnar-nos ao pecado, assim como outras também poderão ajudar-nos à salvação; certamente, porém, não seremos obrigados por necessidade a fazer o bem ou o mal, embora seja isto que julguem que aconteça aqueles que dizem que o curso e o movimento das estrelas seja a causa dos atos humanos, não apenas daqueles que ocorrem além da liberdade do arbítrio, mas também daqueles submetidos ao nosso poder.

Se a alma, porém, no-la é transmitida pelo sêmen, de tal modo que sua razão ou substância esteja contida no próprio sêmen corporal, ou se tenha algum outro início, e se este início é gerado ou não gerado, ou se é posto no corpo desde fora ou não, nenhuma destas coisas é possível ser distinguida como suficientemente manifesta pela pregação.

Quanto ao demônio, seus anjos e forças adversas, a pregação da Igreja ensina que realmente existem. O que, porém eles sejam, ou como sejam, não está claramente exposto. Muitos, porém, são de opinião que o demônio havia sido um anjo o qual, tornando-se apóstata, persuadiu uma multidão de anjos a caírem consigo, os quais agora são chamados de seus anjos.

Faz parte também da pregação da Igreja que este mundo foi criado, que começou em um determinado tempo e que há de acabar pela sua própria corrupção. O que havia, porém, antes que este mundo existisse, ou o que haverá depois que este mundo já não existir, isto já não é tido por muitos como coisa manifesta. Não há palavra evidente sobre estas coisas na pregação da Igreja.

Finalmente, também, que as Sagradas Escrituras foram escritas pelo Espírito de Deus e que possuem um sentido que não é apenas o manifesto, mas também um outro oculto para muitos. As coisas que foram escritas, de fato, são formas de certos mistérios e imagens das coisas divinas. A este respeito há uma só sentença em toda a Igreja, que toda a lei é espiritual e que as coisas que a lei espiritualiza não são conhecidas por todos, mas
apenas por aqueles aos quais a graça do Espírito Santo é concedida na palavra de sabedoria e de ciência.

A palavra assomaton, isto é, `incorpóreo', é inusitada e desconhecida não somente para muitos outros, como também para nossas Escrituras. Se alguém no-la quiser apontar no livro que se chama "A Doutrina de Pedro", onde o Salvador parece dizer aos discípulos: "Não sou um demônio incorpóreo", deve-se-lhe responder, em primeiro lugar, que este livro não é tido como pertencente aos livros da Igreja, e deve-se-lhe mostrar que esta escritura não é nem de Pedro nem de qualquer outro que tivesse sido inspirado pelo Espírito de Deus. Mas, ainda que isto concedêssemos, o sentido da palavra `incorpóreo' neste texto não é o mesmo que se depreende dos escritos dos autores gregos e gentios, quando os filósofos disputam sobre a natureza incorpórea.

Neste livro fala-se de demônio incorpóreo no sentido em que, qualquer que seja o hábito ou o invólucro do corpo do demônio, ele certamente não é semelhante a este nosso corpo grosseiro e visível. Devemos ler o que está dito segundo o sentido de quem compôs esta escritura, que é se um corpo como o que possuem os demônios é naturalmente sutil e como uma tênue aura, e por
isso mesmo considerado ou dito incorpóreo por muitos, ou se se trata de um corpo sólido e palpável. De fato, segundo o costume dos homens, tudo o que for daquele modo é chamado pelos mais simples e imperitos de incorpóreo, como quando dizem que este ar que respiramos é incorpóreo, por não ser um corpo que possa ser apalpado e guardado, ou que possa oferecer resistência a quem o empurre.

Investigaremos, porém, se a própria realidade que os filósofos gregos chamam de assomaton, isto é, `incorpóreo', se encontra nas Sagradas Escrituras com outro nome. Deve-se investigar, também, como o próprio Deus deve ser entendido, se corpóreo e dotado de alguma forma, ou se possuidor de outra natureza que não a dos corpos, o que também em nossa pregação não é manifestamente assinalado. O mesmo também deve ser investigado de Cristo e do Espírito Santo, mas não de toda alma e de toda criatura racional.

Pertence também à pregação da Igreja a existência de anjos de Deus e de boas forças que o auxiliam para a consumação da salvação dos homens.
Mas quando eles foram criados, ou quais e como são, não são assinalado de modo completamente manifesto. Quanto ao sol, à lua e às estrelas, se são animados ou destituídos de alma, não no- lo é transmitido manifestamente.

Importa, portanto, que use destas coisas como de elementos e fundamentos, segundo o mandamento que diz "Iluminai-vos pela luz da ciência", (Os. 10, 2) todo aquele que deseje construir uma série e um corpo de razões de todas estas coisas, para investigar por meio de afirmações manifestas e necessárias o que haja de verdade em cada uma delas, e edificar um corpo de exemplos e afirmações a partir do que tiver encontrado nas Sagradas Escrituras ou que tiver alcançado em consequência de sua própria investigação e método correto.

PARTE I

Para tratar de tantas e tais coisas não basta confiar a sumidade deste assunto aos sentidos humanos e à inteligência comum, discorrendo, por assim dizer, visivelmente sobre as coisas invisíveis. Devemos tomar também, para a demonstração das coisas de que falamos os testemunhos das Divinas Escrituras. No entanto, para que estes testemunhos possam oferecer-nos uma fé certa e indubitável, tanto nas coisas que haveremos de dizer, como nas que já dissemos, parece-nos ser necessário mostrar antes que as próprias Escrituras são divinas, isto é, inspiradas pelo Espírito de Deus.

Mostraremos, tão brevemente quanto pudermos, o que as próprias Escrituras nos dizem a este respeito e que nos possa mover competentemente. Falaremos, pois, de Moisés, o primeiro legislador do povo hebreu, e das palavras de Jesus Cristo, autor e príncipe da religião e do dogma dos cristãos.
Entre gregos e bárbaros. de fato, existiram muitos legisladores e também inúmeros doutores e filósofos afirmando oferecer a verdade. Não nos lembramos, porém, de nenhum legislador que tenha podido produzir tal afeto e dedicação nas almas dos povos estrangeiros a tal ponto que estes aceitassem livremente as suas leis ou com toda a alma defendessem as suas intenções. Ninguém houve também que tenha podido sugerir ou dar a conhecer aquilo que lhe pareceu ser a verdade, não digo a muitas nações estrangeiras, mas nem mesmo sequer a um só povo, para que todos alcançassem a sua ciência ou a sua fé. E, no entanto, não se pode duvidar que os legisladores gostariam que suas leis fossem obedecidas por todos, se isto fosse possível, e que os mestres apreciariam que aquilo que lhes pareceu ser a verdade fosse também conhecido por todos. Sabendo, porém, que não seria de nenhum modo possível que neles subsistisse tamanha virtude que fosse capaz de convidar as nações estrangeiras à observância de suas leis ou de suas afirmações, nem sequer ousaram começar a fazê-lo, para que não ficassem conhecidos como imprudentes por semelhantes iniciativas ineficazes e inexecutáveis.

São, no entanto, multidões inumeráveis, em toda a face da terra, em toda a Grécia e em todas as demais nações estrangeiras, aqueles que, abandonando as leis de sua pátria e aqueles que consideravam deuses, se entregaram à observância da lei de Moisés e ao discipulado e ao culto de Cristo, e isto não sem um grande ódio levantado contra si por parte daqueles que veneram os simulacros, a ponto de serem frequentemente atormentados por parte destes e algumas vezes inclusive conduzidos à morte. Mesmo assim abraçam e observam com todo o afeto a palavra do
ensinamento de Cristo.

É verdadeiramente admirável como em tão breve tempo esta religião cresceu pelo sofrimento e pelo martírio de seus seguidores, pela violência que lhes foi feita e pela paciência com que toleraram todo gênero de suplícios. Mais admirável ainda é que seus doutores não são nem eruditos nem numerosos e, no entanto, esta palavra é pregada em toda a terra, de modo que gregos e bárbaros, sábios e ignorantes, recebem a doutrina cristã. Não há dúvida de que isto não se realiza por força ou obra humana.
A palavra de Cristo Jesus se fortalece com toda a fé e poder junto a todas as mentes e junto a todas as almas. Ademais, é manifesto que todas estas coisas foram preditas e confirmadas por Ele, quando disse em seus divinos oráculos: "Por causa de mim sereis conduzidos à presença de governadores e juízes, para dar testemunho perante eles e perante as nações". (Mt. 10, 18) E também: "Este evangelho será pregado em todas as nações". (Mt. 24, 14) E novamente: "Muitos me dirão naquele dia:
`Senhor, Senhor, porventura não foi em teu nome que caminhamos e bebemos, e em teu nome que expulsamos demônios?' E eu lhes direi: “Afastai-vos de mim, vós que operais a iniquidade, nunca vos conheci”. (Mt. 7, 22-23)

Se todas estas coisas tivessem sido ditas por Ele, mas sem que se tivesse realizado o que havia sido predito, pareceriam talvez menos verdadeiras, embora tivessem mesmo assim alguma autoridade. Agora, porém, preditas com tanto poder e autoridade e tendo chegado à sua realização, fica manifestissimamente declarado ser verdade que Ele, ao fazer-se homem, veio trazer aos homens os preceitos da salvação.

E o que deveremos dizer sobre o que, antes dEle, os profetas predisseram sobre Ele? Estava escrito que não cessariam os príncipes de Judá, nem os soberanos de seu meio, até que chegasse aquele a quem teria sido confiado o reino, e até que viesse a expectação dos povos (Gen. 49, 10). Pelo que hoje pode observar-se, tudo isto é mais do que manifesto pela própria história. Desde os tempos de Cristo não há mais reis entre os judeus.
Todas aquelas ambições judaicas nas quais tantos se jactavam e se exaltavam, seja do decoro do Templo, seja dos famosos altares, de todos aqueles aparatos sacerdotais e vestimentas pontifícias, tudo isto foi destruído. Consumou-se assim a profecia que dizia:
"Os filhos de Israel ficarão durante muitos dias sem reis e sem príncipes, sem sacrifício e sem altar, sem sacerdócio e sem respostas". (Os. 3, 4)

Utilizamos estes testemunhos para aqueles que, no que diz respeito às coisas que foram ditas no Gênesis por Jacó ao falar de Judá (Gen. 49, 10), parecem afirmar que ainda haveria um príncipe da descendência de Judá, que seria aquele que é o príncipe de seu povo e ao qual chamam de Patriarca, os quais afirmam também que não poderá faltar alguém que permaneça de sua descendência até o advento do Cristo, conforme o descrevem para si mesmos. Mas se é verdadeiro o que diz o Profeta, segundo quem "por muitos dias os filhos de Israel, permanecerão sem rei e sem príncipe, nem haverá sacrifício, nem altar, nem sacerdócio", e se, de fato, desde que foi destruído o Templo, não se oferecem mais sacrifícios, nem se encontram altares, e se consta também não haver sacerdócio, é mais do que certo que "faltam os príncipes de Judá", assim como estava escrito, "nem há soberanos em seu meio, até que venha aquele a quem foi confiado o reino". (Gen. 49, 10)

Consta, porém, que já veio Aquele a quem foi confiado, Aquele em que reside a expectação das nações, e que tudo isto parece manifestamente consumado pela multidão daqueles que, de diversas nações, por meio de Cristo, creram em Deus.

Mas no Deuteronômio também nos é assinalado, por meio de uma
profecia, que pelos pecados do primeiro povo haveria a futura eleição de um povo insensato, eleição esta que não é outra senão a que foi realizada por Cristo. Assim, de fato, está escrito: "Eles provocaram-me com o que não era Deus, e irritaram-me com os seus simulacros; e eu os provocarei em meu zelo, e os irritarei com um povo insensato". (Dt. 32, 21)

É bastante evidente que os hebreus, dos quais se diz terem provocado a Deus com aqueles que não são deuses e terem-no irritado com os seus simulacros, irritaram-se também eles em ciúmes por um povo insensato, que Deus escolheu pelo advento de Jesus Cristo, e pelos seus discípulos.
De fato, assim diz o Apóstolo: "Vede a vossa vocação, irmãos, como entre vós não há muitos sábios segundo a carne, nem muitos nobres, mas aqueles que são estultos para o mundo, estes Deus escolheu, e os que não são, para destruir os que eram primeiro". (I Cor. 1, 27-28)
Não se glorie, portanto, o Israel carnal. Assim é, de fato, que este é chamado pelo Apóstolo, "para que não se glorie a carne na presença de Deus". (I Cor. 1, 29)

O que se deverá dizer, também, do que é profetizado de Cristo nos Salmos, principalmente naquele que levou o título de “Cântico pelo Amado”, onde se diz: "Sua língua é como a pena de um escriba que escreve velozmente; ultrapassa em formosura aos filhos dos homens, pois a graça derramou-se sobre os seus lábios"? (Salmo 44, 2-3)
O sinal da graça derramada em seus lábios é que, passado tão breve tempo, pois ensinou Ele por apenas um ano e alguns poucos meses, toda a terra encheu-se com a doutrina e a fé da sua piedade. Floresceu, portanto, "em seus dias a justiça, e a abundância da paz", (Salmo 71, 7) que durará até o fim, fim este que no salmo é designado como "até que a lua deixe de existir" (Salmo 71, 7). "E dominará de mar a mar, e desde o rio até as extremidades da terra". (Salmo 71, 8)

Foi dado também este sinal à casa de Davi: "Uma virgem conceberá, e dará à luz a um filho, cujo nome será Emmanuel, que quer dizer Deus conosco". (Is. 7, 14)
"Ajuntai-vos, povos, e sereis vencidos" (Is. 8, 9). Fomos vencidos e superados, nós que somos dos gentios, e somos como que despojos de sua vitória, nós que dobramos nosso pescoço à sua graça.

Mas também o lugar de seu nascimento foi predito pelo profeta Miquéias, ao dizer: "E tu, Belém, terra de Judá, não és a menor entre as cidades de Judá. De ti, de fato, sairá o condutor que regerá o meu povo de Israel". (Miq. 5, 2)

Completaram-se também as semanas de anos até o Cristo condutor que haviam sido preditas pelo profeta Daniel. Está também presente aquele que em Jó é dito que haveria de vencer a enorme besta, o qual também deu poder aos seus discípulos de "calcar aos pés serpentes e escorpiões, e todo o poder do inimigo, sem que nada lhes fizesse dano". (Lc. 10, 19)
Se alguém considerar igualmente os discursos dos apóstolos de Cristo, pelos quais estes pregaram o Evangelho de Cristo por cada um dos lugares aos quais foram por Ele enviados, encontrará que o que eles ousaram começar é algo sobre humano e o que eles puderam realizar provém de Deus. Se considerarmos como os homens os receberam, ao ouvirem que eles lhes anunciavam uma nova doutrina; ou melhor, como frequentemente os homens, querendo fazer-lhes o mal, foram impedidos por uma força divina que neles havia, veremos que nada nesta causa foi realizado por forças humanas, mas tudo pelo poder e pela providência divina, o que sem dúvida, por sinais e portentos evidentes, testemunha em favor de sua palavra e de seus ensinamentos.

Demonstradas previamente estas coisas, isto é, a deidade de Jesus Cristo e a realização de todas as coisas que dele foram profetizadas, julgo que com isto provamos também que as próprias Escrituras que sobre Ele profetizaram são divinamente inspiradas. Elas predisseram o seu advento, o poder de sua doutrina e a assunção de todos os povos.

Devemos acrescentar também que é principalmente pelo advento de Cristo ao mundo que ilumina-se e prova-se que tanto os vaticínios dos profetas como a Lei de Moisés são divinos e divinamente inspirados.
Antes que se tivessem realizado as coisas que haviam sido por eles preditas por eles, embora estes fossem verdadeiros e inspirados por Deus, não podiam, todavia, ser mostrados como verdadeiros, pelo fato de que ainda não podiam ser provados realizados. O advento de Cristo, porém, manifestou serem verdadeiras e divinamente inspiradas as coisas que eles haviam dito, já que antes era incerto se as coisas que haviam sido preditas seriam realizadas com êxito.
Mesmo assim, porém, se alguém considerar os escritos proféticos com toda a aplicação e reverência de que são dignos, no próprio ato de lê-los e de examiná-los diligentemente, reconhecerá certamente, tocado por alguma inspiração divina em sua mente e em seus sentidos, que aquilo que lê não foi dito humanamente, mas que é palavra de Deus.

Sentirá por si mesmo que estes livros foram escritos não por uma arte humana, nem por discurso de mortais, mas pela excelência de uma arte divina. O esplendor do advento de Cristo, iluminando pelo fulgor da verdade a lei de Moisés e retirando o véu que estava sobreposto à sua letra, descobriu a todos os que creem n’Ele toda a multidão de bens que o invólucro da palavra escondia.

É algo verdadeiramente trabalhoso enumerar cada uma das coisas que outrora foram ditas pelos profetas, e como e quando cada uma se realizou, para que por elas vejamos confirmarem-se aqueles que duvidam. Para quem queira conhecê-las mais diligentemente, será possível reunir abundantemente estas provas dos próprios livros da verdade. Não se admirem, porém, se perceberem que as coisas divinas são transmitidas ao homem com alguma lentidão, quando aos que são menos eruditos nas 13 disciplinas divinas não se lhes descobre imediatamente, logo na primeira leitura, o sentido que está acima do homem. Tudo isto está tanto mais escondido quanto mais incrédulo ou indigno for o homem.

É coisa certa que tudo o que está ou se faz neste mundo é dispensado pela providência divina. Algumas, porém, manifestam de modo bastante evidente serem governadas pela providência, enquanto que outras têm uma explicação tão oculta e tão incompreensível que nelas a razão da divina providência é-nos inteiramente oculta, e de tal modo que às vezes alguns nem creem que pertençam à providência. A razão pela qual, por uma inefável arte, a obra da divina providência é dispensada, permanece escondida; esta razão, todavia, não está igualmente oculta para todos.
Entre os homens ela é considerada por uns menos, por outros mais, e é mais conhecida pelos que habitam no céu do que por todos os homens que habitam na terra. A natureza dos corpos é clara para nós de modo diverso pelo qual no-la é a natureza das árvores, dos animais e da alma.

A maneira pela qual os diversos movimentos das mentes racionais são dispensadas pela divina providência está mais escondida para os homens do que para os anjos, embora também para eles julgo que não o esteja pouco. No entanto, assim como a existência da divina providência não é refutada por aqueles que estão certos de sua existência, mas que não podem compreender sua obra e dispensação pelo engenho humano, assim também nem a inspiração divina da Sagrada Escritura, que se estende através de todo o seu corpo, pode ser considerada inexistente porque a enfermidade de nossa inteligência não é capaz de investigar as sentenças ocultas e escondidas em cada singular palavra. O tesouro da divina sabedoria está escondido nos recipientes mais vis e grosseiros das palavras, como o próprio Apóstolo o afirma, dizendo: "Trazemos este tesouro em vasos de barro". (II Cor. 4, 7)

Não misturando nenhum ornamento da eloquência humana na verdade dos dogmas, mais resplandece com isto a virtude da potência divina. Se, de fato, nossos livros tivessem sido escritos de modo que levassem os homens a crer seduzindo-os pela astúcia filosófica ou pela arte retórica, sem dúvida a nossa fé seria considerada estar fundamentada na arte das palavras ou na sabedoria humana e não no poder de Deus. Agora, porém, é conhecido por todos que a palavra desta pregação foi recebida por muitos em todo o mundo de tal modo que os que creram entenderam que ela se fundamenta não em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas na demonstração da força e do espírito. Pelo que, conduzidos por uma celeste virtude, ou até mais do que celeste, à fé e à aceitação pela qual adoramos nosso Deus como o único Criador de todas as coisas, procuremos agora esforçar-nos para que, abandonando a palavra dos inícios de Cristo que são os primeiros princípios da ciência, sejamos conduzidos à perfeição, para que aquela sabedoria, que é transmitida aos perfeitos, também no-la seja transmitida.

Assim, de fato, foi afirmado por aquele a quem foi confiada a pregação desta sabedoria: "No entanto, é da sabedoria que falamos entre os perfeitos, não a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que serão destruídos". (I Cor. 2, 6)
Ele nos mostra, com estas palavras, que esta nossa sabedoria nada tem em comum, no que nos diz respeito à beleza do fraseado, com a sabedoria deste mundo. Esta sabedoria será inscrita mais clara e perfeitamente em nossos corações se nos for manifestada segundo a revelação do mistério que ficou oculto desde os tempos eternos, e que no-lo foi agora manifestado pelos escritos proféticos e pelo advento do Senhor e Salvador nosso Jesus Cristo, a quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amén.

PARTE II

Feito este breve comentário sobre a inspiração das Sagradas Escrituras pelo Espírito Santo, parece-nos agora necessário explicar por que motivo alguns, ignorando o caminho pelo qual se alcança o entendimento das letras divinas, não as lendo corretamente, caíram em tantos erros.
Os judeus, pela dureza de seu coração, querendo parecer sábios diante de si mesmos, julgando que as coisas que foram ditas de Cristo deviam ser entendidas segundo a letra, não creram em nosso Senhor e Salvador.

Julgaram que Ele pregaria a libertação aos cativos de modo sensível e visível, que deveria antes edificar a cidade que verdadeiramente consideram a cidade de Deus, exterminando simultaneamente as carroças de Efraim e os cavalos de Jerusalém (Zc. 9, 10), e que comeria manteiga e mel para que, antes que soubesse rejeitar o mal, escolhesse o bem (Is. 7,15).

Também julgaram ter sido profetizado que, quando do advento de
Cristo, o lobo, este animal quadrúpede, seria apascentado com os
cordeiros, que o leopardo repousaria com os cabritos, que o bezerro e o touro se alimentariam junto com os leões e que seriam conduzidos ao pasto por uma criança pequena; que o boi e o urso descansariam juntos nas pastagens e que suas crias seriam alimentadas igualmente; que os leões frequentariam as mesmas manjedouras que os bois e se alimentariam de palha (Is. 11, 6-9). Vendo que nenhuma destas coisas que foram profetizadas se realizaram segundo a história, coisas que, consideravam eles, seriam os principais sinais que se observariam quando do advento de Cristo, não quiseram aceitar a presença de nosso Senhor Jesus Cristo.
Ao contrário, como se ele, contra o direito e o lícito, isto é, contra a fé da profecia, tivesse assumido para si o nome de Cristo, o crucificaram.
Os hereges, por outro lado, lendo o que está escrito na Lei: "O fogo de meu furor se acendeu"; (Jer 15, 14) e também "Eu sou o Senhor teu Deus forte e zeloso, que vingo a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me odeiam"; (Ex. 20, 5) "Arrependo-me de ter ungido rei a Saul"; (I Sam. 15, 11) "Eu sou o Senhor, que faço a paz, e que crio os males"; (Is. 45, 7) "Haverá algum mal na cidade que não tenha sido feito por Deus?" (Amós 3, 6) "Desceram do Senhor os males sobre as portas de Jerusalém"; (Miq. 1, 12) "O espírito maligno, mandado por Deus, sufocava Saul" (I Sam. 18, 10) e muitas outras coisas passagens semelhantes a estas, não ousaram dizer que elas não fossem escrituras de Deus, mas as julgaram que fossem daquele Deus criador que os judeus cultuam, do qual afirmaram que seria apenas justo, não, porém, bom.

Julgaram dever crer também que o Salvador teria vindo para anunciar-nos um Deus mais perfeito, que negam ser o criador do mundo, havendo, porém, entre eles, até mesmo a este respeito, diversas opiniões discordantes. Uma vez que, afastando-se da fé do Deus criador que o é de todas as coisas, na medida em que a fantasia e a vaidade de suas almas lhos sugeria, entregaram-se a diversas fábulas e ficções e disseram que algumas coisas seriam visíveis e criadas por um Deus, enquanto que outras seriam invisíveis e criadas por outro. Alguns, entretanto, dos mais simples entre eles, os quais parecem manter-se dentro da fé da Igreja, julgam que não há nenhum Deus maior do que o Criador, conservando a este respeito uma reta e sadia sentença; julgam, porém, coisas tais sobre este Deus que não poderiam ser julgadas sequer de um homem extremamente injusto e cruel.

A causa do entendimento errôneo de todas estas coisas por parte daqueles a quem mencionamos acima não é outra senão que a Sagrada Escritura não é por eles entendida segundo o sentido espiritual, mas segundo o som da letra. Por isso nos esforçaremos em demonstrar, segundo a pequenez do nosso sentir, aos que creem que as Sagradas Escrituras não foram compostas por palavras humanas, mas redigidas por inspiração do Espírito Santo e transmitidas e confiadas a nós por vontade de Deus Pai pelo seu Filho unigênito Jesus Cristo, o que a nós parece ser a reta via dos que observam a inteligência, aquela regra e disciplina transmitida por Jesus Cristo aos apóstolos os quais, por sucessão, a transmitiram também aos seus pósteros que haveriam de ensinar a santa Igreja.

Todos, conforme penso até mesmo os mais simples dos fiéis, creem que há certas dispensações místicas assinaladas pela Sagrada Escritura. Quais  sejam estas, porém, ou o que são, quem possuir reta mente e não for oprimido pelo vício da jactância será religiosamente obrigado a confessar ignorá-lo.
Se alguém, por exemplo, nos questionar sobre as filhas de Ló, que contra o direito se aproximaram carnalmente do pai, ou sobre as duas esposas de Abraão, ou sobre as duas irmãs que se casaram com Jacó, ou sobre as duas servas que lhes aumentaram a numerosidade dos filhos, o que mais poderá ser respondido senão que estas coisas são certos sacramentos e formas de coisas espirituais, que nós, todavia ignoramos quais sejam?

Quando lemos sobre a construção do Tabernáculo, temos como certo também que estas coisas que são escritas são figuras de outras coisas ocultas. Adaptar, porém, cada uma ao seu modo e abrir e dissertar sobre cada uma delas, considero ser coisa imensamente difícil, para não dizer impossível.

Todavia, conforme disse, é algo que não escapa até mesmo da inteligência comum que aquela descrição é repleta de mistérios. Todas aquelas narrativas que parecem terem sido escritas sobre núpcias, sobre procriação de filhos, sobre guerras diversas ou quaisquer outras histórias, que outra coisa devemos crer que sejam senão formas e figuras de coisas ocultas e sagradas? Todavia, devido ao fato de que os homens usam de tão pouca aplicação para exercitar o engenho e que, antes que aprendam, já
consideram que sabem, decorre que nunca começam a saber. No entanto, se não faltar o estudo nem o mestre, e se estas coisas forem buscadas como divinas, isto é, religiosa e piamente, com autêntica esperança de que muitas sejam abertas pelo Deus que revela, ainda que para o entendimento humano sejam imensamente difíceis e ocultas, talvez quem assim as busque facilmente encontrará o que é lícito buscar.

Mas para que não se julgue que a dificuldade esteja apenas nos discursos proféticos, já que para todos é certo que o estilo profético está semeado de figuras e enigmas, o que deveremos dizer quando nos aproximamos do Evangelho? Não se esconde ali também um sentido interior, como que um sentido divino, que somente é revelado por aquela graça que a recebeu aquele que dizia: "Nós, porém, temos o pensamento de Cristo, para que conheçamos as coisas que por Deus nos foram dadas”.
“Falamos não com palavras aprendidas de humana sabedoria, mas na doutrina do Espírito”. (I Cor. 2, 16-12-4)

E quanto às coisas que foram reveladas a João, como não se admirará, quem as ler, de que haja ali ocultos tantos inefáveis mistérios, nos quais tão manifestamente também aqueles que não podem entender o que neles se esconde, entendem todavia que algo se esconde? Também as cartas dos apóstolos, as quais a alguns parecem que sejam mais fáceis, não estão elas igualmente repletas de sentidos tão profundos que, para aqueles que podem entender o sentido da sabedoria divina, parece que se lhes infunde, por um pequeno receptáculo, a claridade de uma luz imensa?
Já que estas coisas são assim e há tantos que erram nesta vida, julgo que não é coisa destituída de perigo que se declare facilmente que alguém as conhece ou as entende. Tratam-se de coisas que, para que possam ser abertas, é preciso usar a chave da ciência, chave que o Salvador dizia estar com os doutores da lei. Embora estejamos nos desviando de nosso tema, considero que deveria ser assunto de reflexão para aqueles que dizem que antes do advento do Salvador não havia verdade junto aos que eram versados na Lei, como é possível que Jesus Cristo, Nosso Senhor, diga que as chaves da ciência estejam junto aos que tinham os livros dos profetas e da Lei em suas mãos? De fato, é assim que ele diz: "Ai de vós, doutores da Lei, que usurpastes a chave da ciência, e nem entrastes vós, nem deixastes entrar os que queriam entrar" (Lc. 11, 52)

Retornando, porém, ao nosso assunto, conforme começávamos a dizer, julgamos que a via que nos parece ser reta para entender as Escrituras e buscar o seu sentido é aquela que no-la é ensinada pela própria Escritura quando esta nos mostra como devemos sentir sobre ela mesma.
No livro de Provérbios encontramos Salomão ter preceituado o seguinte sobre a consideração da Sagrada Escritura: "E tu", diz ele, "descreve para ti estas coisas três vezes, em conselho e ciência, para que respondas as palavras da verdade aos que as propuserem a ti". (Pr. 22, 20-21)

Cada um, portanto, deve descrever três vezes em sua alma a inteligência das letras divinas.
Deve fazê-lo, primeiro, para que os mais simples sejam edificados pelo próprio corpo das Escrituras, por assim dizer. É deste modo que chamamos ao entendimento comum e histórico.
Se, porém, eles já começam a adiantar-se um pouco, de tal modo que possam entender algo mais profundamente, que sejam edificados também pela própria alma das Escrituras.
Quanto aos que, porém, forem perfeitos e semelhantes àqueles de quem diz o Apóstolo: "Não obstante, é a sabedoria que pregamos entre os perfeitos; não, porém, uma sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que serão destruídos; mas falamos da sabedoria de Deus encoberta no mistério, e que Deus predestinou antes dos séculos para a nossa glória"; (I Cor. 2, 6-7) que sejam estes edificados, como que pelo seu espírito, pela própria lei espiritual que possui a sombra dos bens futuros.
Assim como o homem é dito ser constituído de corpo, alma e espírito, assim também o é a Sagrada Escritura que pela liberalidade divina foi concedida para a salvação dos homens.

Tudo isto pode ser visto assinalado também no livro chamado "O Pastor", que parece ser desprezado por alguns. Nele, com as seguintes palavras, está escrito ter sido ordenado a Hermas que escreva dois livros, e que depois anuncie aos presbíteros da Igreja aquilo que aprendeu pelo Espírito:

"Escreve", diz o livro, "dois livros, e darás um a Clemente, e outro a Grapte”. Que Grapte advirta as viúvas e os órfãos. Clemente seja enviado por todas as cidades de fora. Tu, porém, as anunciarás aos presbíteros da Igreja". (L. 1 Vis. 2,4)
Grapte, ao qual se ordena que advirta os órfãos e as viúvas, é o puro entendimento da própria letra, pela qual são advertidas as almas infantis que ainda não mereceram ter Deus como pai, e que por causa disso são chamados de órfãs. Já as viúvas são aquelas que se separaram do homem iníquo ao qual foram unidas contra a Lei, permanecendo, todavia, viúvas, pelo fato de ainda não se terem unido ao esposo celeste.

A Clemente ordena-se que envie as coisas que foram ditas às cidades de fora, que são aqueles que já se afastam da letra, aquelas almas que começaram a ser edificadas fora dos cuidados do corpo e além dos desejos carnais.
Aquilo que, porém, Hermas aprendeu do Espírito Santo, não por letras, nem por livros, mas por viva voz, é-lhe ordenado que o anuncie aos presbíteros da Igreja de Cristo, isto é, aos que possuem um maduro sentido da prudência capaz da doutrina espiritual.

Não se deve, todavia, ignorar que há algumas coisas nas Escrituras em que nem sempre pode ser encontrado o que chamamos de corpo, isto é, o que se segue ao entendimento da história, nas quais, conforme demonstraremos a seguir, somente deverão ser entendidas as coisas às quais chamamos de alma ou espírito.
Penso que isto no-lo é apontado também no Evangelho, quando este diz que haviam sido postas para a purificação dos judeus seis talhas de pedra, nas quais cabia cada uma, duas ou três metretas (Jo. 2, 6).

Esta passagem a palavra evangélica parece referir-se aos que são chamados pelo Apóstolo de judeus que o são em oculto, os quais se purificam pela palavra da Escritura, contendo às vezes duas metretas, isto é, recebendo o entendimento da alma ou do espírito, contendo outras vezes três metretas, quando a leitura pode conter, para a edificação, também o entendimento corporal, que é a história. As seis talhas de pedra, por conseguinte, se referem aos que, colocados neste mundo, buscam a purificação. De fato, lemos ter-se consumado em seis dias, que é número perfeito, este mundo e tudo o que nele existe.

As multidões de todos os fiéis testemunhem quanta utilidade há neste primeiro entendimento que chamamos de histórico, o qual pode ser suficientemente crido com fidelidade e simplicidade sem necessidade de muitas explicações, conforme é bastante evidente para todos.

Quanto à inteligência da qual dissemos acima ser como que a alma da Sagrada Escritura, o apóstolo Paulo dela nos deu numerosos exemplos, como quando escreve na Primeira Epístola aos Coríntios: "Está escrito na Lei de Moisés: `Não amordaçarás o boi que tritura o grão'". (I Cor. 9, 9)
Em seguida, explicando como este preceito deveria ser entendido, e acrescenta dizendo: “Porventura Deus tem cuidado dos bois”? Não é antes por nós mesmos que Ele diz isto? “Sim, é por causa de nós que isto foi escrito, porque o que lavra deve lavrar com esperança, e o que debulha deve-o fazer com esperança de participar dos frutos”. (I Cor. 9, 10)

Assim também uma multidão de outras coisas que são assim interpretadas da Lei confere aos ouvintes muitíssimo entendimento.

Quanto à explicação espiritual, esta é aquela pela qual alguém pode mostrar quais são as coisas celestes às quais os que são judeus segundo a carne servem como imagens e sombras, coisas futuras das quais a Lei é sombra, e outras tantas semelhantes que se encontram nas Santas Escrituras. A inteligência espiritual é também aquela pela qual buscamos qual seja a sabedoria escondida no mistério "que Deus predestinou antes dos séculos para a nossa glória e nenhum dos príncipes deste século conheceu". (I Cor. 2, 7)

É também aquela a que se refere o próprio Apóstolo quando usa de alguns exemplos de Êxodo ou de Números e diz que "estas coisas lhes aconteciam em figura, mas foram escritas por causa de nós, para quem o fim dos séculos chegou", (I Cor. 10, 11) oferecendo-nos ocasião à inteligência para que possamos entender do que estas coisas que lhes aconteciam eram figuras, quando nos diz também que "bebiam da pedra espiritual que os seguia, e esta pedra era Cristo". (I Cor. 10, 4)
Quanto ao Tabernáculo, o mesmo apóstolo nos lembra em outra epístola aquelas palavras que foram preceituadas a Moisés: "Farás todas as coisas segundo a forma que te foi mostrada no monte". (Heb. 8, 5)

Escrevendo aos Gálatas, e repreendendo pela palavra a alguns que a si mesmos pareciam que liam a Lei mas, por ignorarem haver alegorias nas coisas que foram escritas, não a entendiam, assim lhes diz com uma certa repreensão: "Dizei-me vós, os que credes estar debaixo da Lei, não lestes a Lei? De fato, está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava e outro da livre. Mas aquele que nasceu da escrava, nasceu segundo carne; aquele, porém, que nasceu da livre, nasceu segundo a promessa. Estas coisas são alegorias. “De fato, estes são os dois testamentos". (Gal. 4, 21-24)
Nisto deve-se também considerar o quão cautelosamente o Apóstolo falou, ao dizer:
"Vós, que estais sob a Lei, não ouvistes a Lei?" Ouvistes, isto é, entendestes e conhecestes. E também, na Epístola aos Colossenses, abraçando e resumindo brevemente o sentido de toda a Lei: "Ninguém, pois, me condene pelo comer e pelo beber, ou pelos dias solenes, ou pelas neomênias, ou pelo sábado, que são sombra de coisas futuras". (Col. 2, 16- 17)
É ele também que, escrevendo aos Hebreus e aos que são da circuncisão, diz: "Eles que servem à imagem e à sombra das coisas celestes". (Heb. 8, 5)

Tudo isto talvez não parecerá matéria de dúvida, para aqueles que recebem os escritos do Apóstolo como sentenças divinas, no que diz respeito aos cinco livros de Moisés. Mas se investigarmos o que se refere à história restante, veremos que mesmo as coisas que ali estão contidas deverão também ser ditas terem acontecido em figura para aqueles dos quais são escritas. É o que se encontra escrito na Epístola aos Romanos, quando o Apóstolo coloca um exemplo tirado do Terceiro Livro dos Reis, dizendo: "Eu reservei para mim sete mil homens, que não dobraram os joelhos diante de Baal". (Rom. 11, 4)

Paulo toma estas palavras como ditas figurativamente daqueles que são chamados israelitas segundo a eleição, para que fosse mostrado que o advento de Cristo não aproveita somente agora aos gentios, mas a muitos outros chamados à salvação também da descendência de Israel.

PARTE III

Tudo isto sendo assim, esboçaremos, como exemplo e forma, conforme nos ocorrer, de que modo deve ser entendida, sobre cada uma destas coisas, a divina Escritura.
Repetiremos e mostraremos primeiro que o Espírito Santo, pela providência e vontade de Deus e pela virtude de seu Verbo unigênito, que era no princípio Deus junto de Deus, iluminava os ministros da verdade, os profetas e apóstolos, para que conhecessem os mistérios daquelas coisas ou causas que aconteciam entre os homens ou com os homens. Chamo aqui de homens as almas colocadas nos corpos que, ao narrar ações humanas ou transmitir preceitos e observâncias, descreviam figuradamente os mistérios que lhes eram conhecidos e revelados por Cristo, não para que qualquer um que os quisesse conculcar aos pés as tivesse explicadas, mas para que os que se entregassem ao seu estudo com toda a pureza, sobriedade e vigílias pudessem investigar profundamente o sentido escondido do Espírito de Deus e pudessem, pela narrativa costumeira do discurso, contemplar um outro contexto mais elevado, tornando-se desta maneira sócios da ciência e do Espírito e participantes do conselho divino. De fato, não há nenhuma outra maneira pela qual a alma pode alcançar a perfeição da ciência se não pela inspiração da verdade da sabedoria divina.

Estes homens, portanto, repletos do espírito divino, trataram principalmente de Deus, isto é, do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Falaram também, conforme dissemos, repletos do espírito divino, dos mistérios do Filho de Deus, de como o Verbo se fêz carne e por qual causa veio a tomar a forma de servo. Pela palavra divina, em seguida, ensinaram aos mortais, sobre as criaturas racionais, tanto as celestes quanto as mais felizes entre as terrenas, sobre a diferença das almas e sobre a origem destas diferenças, e sobre o que é este mundo, por que foi feito e de onde provém a existência de tanta e tamanha malícia sobre a terra. Quanto à questão sobre se esta malícia existe somente na terra ou também é encontrada em outros lugares, isto será necessário que o aprendamos a partir dos discursos divinos.
A intenção do Espírito Santo era iluminar primeiramente estas santas almas e outras a elas semelhantes que haviam se consagrado ao ministério da verdade. Em seguida, conforme já dissemos, por causa daqueles que não pudessem ou não quisessem entregar-se ao trabalho e à indústria pela qual mereceriam que lhes fossem ensinadas ou viessem a conhecer tantas e tais coisas, havia a perspectiva de ocultar os mistérios envoltos em discursos costumeiros, sob o pretexto de alguma história ou da descrição de coisas visíveis.

Foi deste modo que se introduziu a narração da criação e da formação da criatura visível e do primeiro homem, à qual se seguiu a da sua descendência, fazendo-se referência a algumas coisas realizadas por alguns justos e também relembrando-se alguns de seus delitos como de homens.
Foi daqui que foram escritas algumas ações impúdicas e iníquas dos ímpios. De um modo admirável, encontram-se também narrações de batalhas realizadas e a descrição da diversidade ora dos que vencem, orados vencidos, pelas quais coisas se declaram, aos que sabem investigar tais ditos, certos mistérios inefáveis. À Escritura legal, pela admirável disciplina da sabedoria, é inserida a Lei da verdade e também dos profetas; e com todas estas coisas foram tecidas pela divina arte da sabedoria como que um certo indumento e véu dos sentidos espirituais. É a isto que chamamos de corpo da Sagrada Escritura, e é deste modo que, pelo que chamamos de revestimento da letra, tecido pela arte da sabedoria, muitos, que não o poderiam de outro modo, podem ser edificados e adiantar-se.

No entanto, se em todas as coisas desta roupagem, isto é, se em tudo o que se encontra na história da lei, fossem guardadas as consequências e conservada a ordem, de tal modo que nela a inteligência pudesse conservar um curso contínuo de entendimento, não acreditaríamos que pudesse haver mais nada inserido mais profundamente nas Sagradas Escrituras do que isto que nos é manifestado na sua superfície. A sabedoria divina procurou, por este motivo, colocar certos estorvos ou interrupções ao entendimento histórico, inserindo em sua narrativa certas impossibilidades e inconveniências, para que as próprias interrupções da narração oferecessem resistência ao leitor como se fossem obstáculos pelos quais se nega caminho ou passagem ao entendimento vulgar.

Assim, excluídos e repelidos, somos conduzidos ao início de uma outra via, de tal modo que, pelo ingresso de uma passagem estreita para um caminho mais elevado e mais eminente, se manifeste a imensa grandeza da ciência divina.
Devemos considerar que o principal objetivo do Espírito Santo foi o de guardar a consequência da inteligência espiritual, tanto nas coisas que devem ser feitas como nas coisas que já se fizeram. Assim, onde o Espírito Santo encontrou que as coisas que se fizeram segundo a história podiam ser adaptadas à inteligência espiritual, compôs a ordem de ambos os textos em um só discurso narrativo, escondendo sempre o sentido oculto mais elevado. Onde, porém, não pôde convir a consequência espiritual à história das coisas realizadas, inseriu algumas coisas que foram feitas menos ou que não poderiam ter sido feitas de nenhum modo, ou às vezes também que poderiam ter sido feitas, mas que não o foram.

Em alguns discursos nos quais, segundo a inteligência corporal, não parece que possa ser guardada a verdade, isto é feito com muitas inserções, o que principalmente costuma acontecer na legislação, onde há muitas coisas que nos próprios preceitos corporais é manifesto que sejam úteis, embora haja outras nas quais não se manifesta nenhuma razão de utilidade e às vezes até mesmo se observam impossibilidades.
Tudo isto, conforme dissemos, o Espírito Santo buscou para que, na medida em que o que está na superfície não possa ser verdadeiro ou útil, rapidamente fôssemos chamados à busca de uma verdade mais alta e procurássemos nas Escrituras, que cremos inspiradas por Deus, um sentido digno de Deus.

O Espírito Santo, porém, não cuidou apenas das coisas que foram escritas até o advento de Cristo, mas, como um só e mesmo Espírito procedente de um só Deus, fez também o mesmo nos evangelistas e apóstolos. Também aquelas narrações que inspirou por meio destes foram tecidas pela arte de sua sabedoria que expusemos acima.
Também nelas misturou coisas nada pequenas pelas quais, interpolada ou interrompida pela sua impossibilidade a ordem histórica da narrativa, dobrasse e chamasse a intenção do leitor ao exame da inteligência interior. Mas, para que o que dizemos seja conhecido pelas próprias coisas, consultemos as próprias passagens das Escrituras.
A quem, pergunto que tenha senso, parecerá ser dito coerentemente que o primeiro, o segundo e o terceiro dia, nos quais se nomeiam tardes e manhãs, foram sem Sol, sem Lua e sem estrelas, e o primeiro dia sem céu?
Quem será encontrado tão idiota que julgue que Deus, como um homem qualquer do campo, tenha plantado árvores no paraíso, no Éden voltadas para o Oriente, e nele tenha plantado a árvore da vida, isto é, uma árvore visível e palpável, e de tal maneira que alguém comendo desta árvore com seus dentes corporais alcançasse a vida e, comendo de outra árvore, obtivesse a ciência do bem e do mal? Quando se diz que Deus caminhava no paraíso após o meio dia, e que Adão se escondia debaixo da árvore, não tenho dúvida de que com isto a Escritura profere uma expressão figurativa, na qual se indicam certos mistérios.

Caim, tendo-se retirado da face de Deus (Gen. 4, 16) manifestamente induz o leitor prudente a que se pergunte o que é a face de Deus, e como alguém poderá retirar-se dela.
Para não ampliar a obra que temos em mãos mais do que o justo, será muito fácil, para quem o quiser, reunir das santas escrituras muitas coisas que, apesar de terem sido escritas como fatos, não podem ser cridas competente e razoavelmente que se tenham realizado segundo a história.

Este modo de escrever pode ser encontrado abundante e copiosamente também nos livros evangélicos, quando se diz, por exemplo, que o demônio transportou Jesus para um elevado monte (Mt. 4, 8) para que dali lhe mostrasse todos os reinos do mundo e a sua glória. Como parecerá que tenha se podido fazer com que Jesus tivesse sido conduzido pelo demônio a um alto monte, ou também que se lhe tivesse sido mostrado aos seus olhos carnais, junto a um só monte, todos os reinos do mundo, isto é, o reino dos Persas, dos Scítios e dos Índios, ou também como os seus reis são glorificados pelos homens? Muitíssimas outras coisas semelhantes a estas encontrará no Evangelho quem o ler mais atentamente, e poderá notar que nestas narrativas que parecem enunciadas segundo a letra, há inseridas e simultaneamente tecidas coisas que a história não recebe, mas que, todavia, possuem uma inteligência espiritual.

Não queremos que ninguém suspeite que julgamos que não haja história alguma nas Escrituras porque dissemos que algumas destas coisas não foram feitas, nem que nenhum preceito da Lei deva ser entendido segundo a letra porque consideramos que em alguns deles a razão ou a possibilidade não admite que sejam entendidos segundo a letra. Não é nosso pensamento também que as coisas que foram escritas do Salvador não se tenham cumprido de modo sensível, nem que os seus preceitos não devam ser observados segundo a letra. Ao contrário, o que se nos mostra
de modo evidente é que em muitas passagens da Escritura não só pode como também deve ser observada a verdade da história.
Quem poderá negar que Abraão foi sepultado em uma caverna dupla em Hebron (Gen. 25, 10), assim como também Isaac e Jacó, juntamente com suas esposas (Gen. 49, 31; 50, 13)?
Ou quem duvidará que Siquém foi dada como porção a José (Jos. 24, 32)?
Ou que Jerusalém é metrópole da Judéia, na qual foi construído o templo de Deus por Salomão?

E, assim como ocorre com estas passagens, o mesmo pode ser dito de uma multidão inumerável de outras.
Muitas mais, de fato, são as passagens que constam deverem ser
entendidas segundo a história do que aquelas que contém um aberto sentido espiritual. Quem não afirmará que o mandamento que preceitua: "Honra teu pai e tua mãe, para que haja bem para ti", (Ex. 20, 13) seja suficiente sem nenhuma interpretação espiritual, e que seja necessário aos que o observam? E isto principalmente quando consideramos que Paulo, repetindo as mesmas palavras, confirma o mesmo preceito (Ef. 6, 2-3). E o que deveremos dizer do que está escrito: "Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho", (Ex. 20, 13-16) e outras muitas passagens como estas? E quanto às coisas que são ordenadas no Evangelho, quem poderá duvidar que muitas devem ser observadas segundo a letra, como quando se diz: "Eu, porém, vos digo, não jureis de modo algum"?(Mt. 5, 34)
E também quando se diz: "Quem olhar para uma mulher para desejá-la, já adulterou com ela em seu coração". (Mt. 5, 14)

O mesmo se deve dizer de Paulo apóstolo quando preceitua: "Corrijais os inquietos, consoleis os pusilânimes, sustentai os fracos, sede pacientes com todos", (I. Tes. 5, 14) e de muitos outros preceitos que a estes se assemelham.
Todavia, se alguém ler mais atentamente, estou certo que em muitos lugares duvidará se esta ou aquela história deve ser considerada verdadeira ou menos verdadeira segundo a letra; e se algum determinado preceito deva ser observado segundo a letra ou não. Para isto é necessário que nos esforcemos com muito estudo e trabalho, entendendo com a maior reverência que as coisas que são colocadas nos livros santos são palavras divinas e não humanas.

Nós, portanto, consideramos que este é o entendimento que deve ser guardado, digna e consequentemente, nas Sagradas Escrituras.

As sagradas letras pregam haver um povo sobre a terra escolhido por Deus, o qual foi chamado com vários nomes. Às vezes todo este povo é dito Israel, às vezes Jacó. De um modo especial, depois que este povo foi dividido por Jeroboão filho de Nadab em duas partes (1Reis 12), as dez tribos que permaneceram sob seu domínio foram chamadas de Israel, enquanto que as outras duas, junto com as quais também estava a tribo de Levi, e das quais uma era aquela de cuja estirpe real descendia Davi, foi chamada de Judá. Todo o lugar que este povo possuía e que o havia recebido de Deus era chamado Judéia, do qual a metrópole era Jerusalém.

Chama-se metrópole aquela cidade que é dita como que a mãe de muitas cidades. Os nomes destas cidades, separadamente, são citados com muita frequência nos diversos livros divinos; são enumerados, porém, todos simultaneamente, no livro de Josué, filho de Num.

Tudo isto sendo coisa certa, querendo o Apóstolo de algum modo elevar a nossa inteligência da terra, diz ele em algum lugar: "Considerai Israel segundo a carne".(I Cor. 10, 18)
Com isto ele nos ensina que, na verdade, há um outro Israel que não é segundo a carne, mas segundo o espírito. E, novamente, afirma em outro lugar: "Porque nem todos os que descendem de Israel são israelitas". (Rom 9, 6)

Se, portanto, aprendemos por meio do Apóstolo que há um Israel segundo a carne e outro segundo o espírito, quando o Salvador nos diz que "Eu não fui enviado senão às ovelhas desgarradas da casa de Israel", (Mt. 15, 24) não mais podemos entender esta passagem como aqueles que só conhecem o que é terreno, isto é, como por exemplo os Ebionitas, os quais também são chamados de pobres pelo mesmo nome. Ebion, de fato,significa pobre entre os hebreus. Devemos entender que há um outro gênero de almas que são também chamadas de Israel, segundo o significado de seu próprio nome, pois Israel significa `a mente que vê a Deus', ou `o homem que vê a Deus'.
O Apóstolo revela igualmente coisas deste mesmo gênero sobre Jerusalém quando nos diz que "aquela Jerusalém, que é de cima, é livre e é nossa mãe". (Gal. 4, 26)
Sobre Jerusalém, em outra de suas epístolas, nos diz também o seguinte:
"Vós, porém, aproximaste-vos do monte Sião e da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celeste e da multidão de muitos milhares de anjos, e da Igreja dos primogênitos, que estão inscritos no céu". (Heb. 12, 22-23)
Se, portanto, há algumas almas neste mundo que são chamadas de Israel, e no céu há uma cidade que é chamada de Jerusalém, seguir-se-á que estas cidades que são ditas do povo de Israel tenham como metrópole a Jerusalém celeste e que deste modo também entendamos de toda Judá. É delas que consideramos que os profetas falaram quando, através de místicas narrativas, profetizaram algo da Judéia ou de Jerusalém, ou quando algumas santas histórias relatam ter acontecido este ou aquele gênero de invasão na Judéia ou em Jerusalém.

Tudo, portanto, o que é narrado ou profetizado de Jerusalém e de todos os lugares ou cidades que são ditos cidades da terra santa, cuja metrópole é Jerusalém, se escutarmos as palavras de Paulo como sendo palavras do Cristo que, segundo a sentença do próprio Apóstolo, nele fala, devemos entende-lo como referindo- se àquela cidade que ele chama de Jerusalém celeste.
Deve-se considerar que o Salvador nos queria estimular a uma inteligência mais elevada destas mesmas cidades quando prometeu, aos que tivessem dispensado bem o dinheiro que lhes havia sido confiado, que teriam poder sobre dez cidades (Lc. 19, 17), ou sobre cinco cidades (Lc. 19, 19).

Se, portanto, as profecias que foram feitas sobre Judá e Jerusalém, e também sobre Judá, Israel e Jacó, quando não as entendemos carnalmente, significam mistérios divinos, consequentemente também aquelas profecias que foram proferidas sobre o Egito ou sobre os egípcios, sobre Babilônia ou sobre os babilônios ou sobre Sidônia e os sidonitas não devem ser entendidas como profetizadas deste Egito, desta Babilônia, deste Tiro, ou desta Sidônia que estão colocados na terra. As coisas que o profeta Ezequiel profetizou de Faraó rei do Egito (Ez. 29- 32) não podem convir a nenhum homem que pudesse ter reinado no Egito, assim como manifestamente o indica o próprio texto da leitura. Semelhantemente, as coisas que são ditas do príncipe de Tiro não podem ser entendidas terem sido ditas de algum homem ou rei de Tiro. E quanto a Nabucodonosor, as coisas que nas Sagradas Escrituras dele estão escritas em muitos lugares, principalmente em Isaías, como será possível que as entendamos como ditas de um homem? Não pode ser um homem aquele do qual se diz "ter caído do céu, luzeiro resplandecente, que brilhava ao nascer do dia". (Is 14, 12)
E as coisas que são ditas em Ezequiel sobre o Egito, como aquela segundo a qual esta nação seria exterminada durante quarenta anos de tal maneira que nela não se encontraria pé de homem (Ez. 29, 11), e que seria expugnada a tal ponto que por toda a sua terra o sangue humano ter-se-ia elevado até os joelhos, não sei se alguém que tenha inteligência poderia entendê-lo como referindo-se a esta terra do Egito adjacente à Etiópia.

Deve-se, portanto, examinar se é possível entender com mais dignidade que, assim como existe a Jerusalém e a Judéia celeste e, sem dúvida, também um povo que habita nela, que é dito Israel, assim também será possível que vizinhos a estes lugares haja outros que pareçam chamar-se Egito, Babilônia, Tiro ou Sidônia, e que os príncipes destes lugares e as almas que neles habitam possam ser chamados de egípcios, tirenses e sidônios. E que, segundo a vida que ali conduzem, será um cativeiro aquele pelo qual dizemos a Judéia ter descido à Babilônia ou ao Egito como que proveniente de lugares melhores e superiores, ou ter sido dispersa entre outros povos.

Todas estas coisas, conforme dissemos, estão escondidas e seladas nas histórias da Sagrada Escritura, porque “o reino do céu é semelhante a um tesouro escondido no campo, o qual, quando um homem o acha, esconde-o e, pela alegria que sente de o achar, vai, vende tudo o que tem, e compra aquele campo". (Mt. 13, 44)
Deve-se considerar mais diligentemente, nesta passagem, se nela não se indica que somente a própria superfície, por assim dizer, da Escritura, isto é, aquilo que se lê conforme a letra, é um campo repleto e florescente de todo gênero de plantas, mas também aquele entendimento espiritual mais elevado e profundo que são os tesouros de sabedoria e ciência escondidos aos quais o Espírito Santo, por meio de Isaías, chama de tesouros obscuros, invisíveis e escondidos (Is. 45, 3). Para que estes tesouros possam ser encontrados é necessário o auxílio divino, o único que poderá
quebrar as portas de bronze (Is. 45, 2) em que foram fechados e
escondidos que poderá arrombar as travas de ferro (Is. 45, 2) com as quais se fecha o caminho pelo qual se chega às coisas que no Gênese foram escritas e seladas sobre os diversos gêneros de almas, às descendências e gerações que pela proximidade pertencem a Israel ou que são separadas mais longe de sua estirpe, ao que é aquela descida ao Egito das setenta almas (Gn. 46, 27) que foram no Egito como astros do céu em meio à multidão.

Não são todos os que descenderam destes, porém, que foram luz deste mundo: "Nem todos, de fato, os que descendem de Israel, são israelitas". (Rom. 9, 6)
Os descendentes destas setenta almas, de fato, se tornaram como a areia inumerável que está à beira do mar.
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A descida dos santos padres ao Egito pode ser considerada como tendo se realizado a este mundo, concedida pela providência divina para a iluminação e a instrução do gênero humano. Por meio deles seriam ajudadas as demais almas iluminadas, e foi a eles que foi concedida em primeiro lugar a palavra de Deus. Somente este, ademais, é o povo que é dito ver a Deus, que é o que significa o nome de Israel quando traduzido.
É, portanto, consequente que adaptemos e interpretemos segundo este entendimento o castigo do Egito com as dez pragas para que permitisse à saída do povo de Deus, assim como os acontecimentos com o povo no deserto, a construção do Tabernáculo pela congregação de todo o povo, a urdidura das vestimentas sacerdotais e o demais que se diz das vestes do ministério. Verdadeiramente, conforme foi escrito, estas coisas contém em si a sombra e a forma das coisas celestes. Paulo, de um modo manifesto, afirma dos que são do povo de Israel que eles "servem à sombra e à imagem das coisas celestes". (Heb. 8, 5)

Na própria Lei encontram-se as leis e as instituições pelas quais deve-se viver na terra santa. São também feitas ameaças aos que tiverem prevaricado da mesma e colocam-se diversos gêneros de purificação aos que necessitam de purificação ou aos que mais freqüentemente se maculam. Por meio destas purificações podem alcançar aquela única purificação depois da qual não é mais lícito macular-se.
Este povo é recenseado, mas não todos. O preceito divino estabelece que as almas infantis ainda não estão no tempo de serem recenseadas (Num 1, 2-3); não o estão também aquelas almas que são súditas de outras como à sua cabeça, as quais são chamadas de mulheres. Numeram-se somente os homens, as mulheres não sendo contadas no número que é ordenado por Deus que seja recenseado. Porém fica também manifesto que elas não podem ser numeradas extrinsecamente, mas que estão incluídas no número daqueles que são chamados de homens. São principalmente os que são aptos para lutar nas guerras israelíticas os que são incluídos no santo número, aqueles que podem guerrear contra os adversários e inimigos que o Pai submeteu ao seu Filho sentado à sua direita para que destrua todo principado e potestade. Este número é o dos seus soldados
que, militando para Deus e não se misturando nos negócios seculares, vencem os adversários do Reino. São aqueles que, revestidos pelo escudo da fé, vibram a lança da sabedoria, aqueles nos quais brilha o elmo da esperança e da salvação e por cuja armadura da caridade Deus defende todo o peito.

Parece-me que os que Deus preceitua nos livros divinos que sejam recenseados sejam soldados que se preparam para tais guerras.
Destes, porém, são apontados como muito mais resplandecentes e
perfeitos aqueles dos quais se diz que até os cabelos de suas cabeças são numerados (Mt. 10, 30). Quanto aos que foram punidos pelos pecados e cujos corpos caíram no deserto, estes parecem ter semelhança com os que, tendo-se adiantado não pouco, no fim não puderam alcançar a perfeição por diversas causas. Diz-se deles que murmuraram, cultuaram os ídolos, fornicaram ou fizeram outras coisas que não é lícito à mente conceber.

Não considero também vazio de mistério que alguns, tendo muito gado e animais, se adiantaram e arrebataram antecipadamente um lugar apto ao pasto e à alimentação de seus animais, os quais lutaram nas guerras de Israel antes que todos. Pedindo eles mesmos este lugar a Moisés, foram separados dos demais além do Jordão e segregados da possessão da terra santa (Num. 32). O Jordão pode ser visto, segundo a forma das coisas celestes, regar e inundar as almas sedentas e os sentidos que lhes são adjacentes.

Não me parece ocioso também que o próprio Moisés tenha ouvido de Deus as coisas que são descritas no Levítico, enquanto que no
Deuteronômio o povo torna-se ouvinte de Moisés, dele aprendendo as coisas que não pôde ouvir de Deus. Por este motivo o Deuteronômio é dito segunda lei, o que a alguns parece significar que, cessando a primeira Lei que havia sido dada a Moisés, tivesse se formado uma segunda Lei, entregue de um modo especial por Moisés a Josué seu sucessor, o qual cremos ser a forma de nosso Salvador, por cuja segunda lei, que são os preceitos evangélicos, todas as coisas são conduzidas à perfeição.

Devemos examinar ademais se isto não parece indicar que assim como no Deuteronômio se declara uma legislação mais evidente e mais manifesta do que a que havia sido escrita antes, assim também não se indica que ao primeiro advento do Salvador que se realizou na humildade quando assumiu a forma de servo não se sucederá aquele segundo mais resplandecente e glorioso na glória do Pai, nisto se plenificando a forma do Deuteronômio, quando no reino dos céus todos os santos viverem das leis daquele evangelho eterno. Deste mesmo modo. como Cristo agora, pelo seu primeiro advento, plenifica a lei que contém a sombra dos bens futuros, assim também pelo seu segundo e glorioso advento, plenificará e conduzirá à perfeição a sombra deste seu primeiro advento. Foi assim que efetivamente, disse dele o profeta: "O sopro de nossa boca, ó Cristo Senhor, foi preso em nossos pecados, a quem dissemos: Na tua sombra viveremos entre as nações", (Lam. 4, 20) quando todos os santos forem transferidos do evangelho temporal ao mais digno evangelho eterno, segundo no-lo é assinalado sobre o Evangelho eterno por João no Apocalipse (Ap. 14, 6).

Seja para nós suficientes em tudo isto adequar o nosso senso à regra da piedade e sentir das palavras do Espírito Santo que não constituem um discurso escrito segundo a fragilidade da linguagem humana. De fato, está escrito que "toda a glória do rei provém do interior". (Salmo 44, 14)
É deste modo também que o tesouro dos sentidos divinos está escondido, encerrado nos frágeis vasos da vil letra. Se alguém, no entanto, busca mais curiosamente a explicação de cada uma destas coisas, venha e, junto conosco, ouça como Paulo apóstolo, por meio do Espírito Santo, o qual perscruta até as profundezas de Deus, investiga a elevação da sabedoria e da ciência divina e, não chegando nem ao fim e nem, por assim dizer, podendo chegar a um íntimo conhecimento, em desespero e admiração de causa, clama e diz: "Ó altitude das riquezas da sabedoria e da ciência de
Deus!" (Rom. 11, 33)
E que ele proclamou isto desesperando de uma perfeita compreensão, podemos ouvi-lo dizendo: "Quão incompreensíveis são os seus juízos, e impenetráveis os seus caminhos!" (Rom. 11,33).
De fato, ele não diz quão dificilmente podem ser compreendidos os juízos de Deus, mas que não o podem completamente; nem disse que dificilmente podem ser perscrutados os seus caminhos, mas que não podem ser perscrutados. Quanto mais alguém crescer na investigação e mais se adiantar no estudo interior, e quanto mais for ajudado pela graça de Deus e iluminado em seu entendimento, mais não poderá chegar ao perfeito fim daquelas coisas que são buscadas, nem nenhuma mente que foi criada terá possibilidade de compreendê-las de modo algum.

Antes, para encontrar algumas das coisas que busca, verá outras mais que terá que buscar. E se também a estas alcançar, verá muitíssimas outras que deverão ser buscadas. Foi por este motivo que o sapientíssimo Salomão, compreendendo pela sabedoria a natureza das coisas, disse: "Eu disse: farme-ei sábio, e a sabedoria retirou-se para longe de mim, muito mais do que antes estava. A sua profundidade é grande, quem a poderá sondar?" (Ec. 7, 24)
Também Isaías, sabendo que o início das coisas não poderia ser
encontrado pela natureza mortal, nem tampouco por aquelas naturezas que, embora sejam mais divinas do que a humana, foram, todavia, elas próprias feitas e são, portanto, também criaturas, e sabendo, portanto, que por nenhuma destas, nem o início nem o fim pode ser encontrado, diz:
"Dizei as coisas que foram no início, e saberemos que sois deuses; ou anunciai as últimas que serão, e então veremos que sois deuses". (Is. 41, 22-23)
Por isto também o doutor hebreu colocava que, como o início ou o fim de todas as coisas não pode ser compreendido por ninguém, senão somente pelo Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito Santo, Isaías teria dito pela figura da visão haver somente dois serafins que com duas asas cobriam a face diante de Deus, com duas os pés, e com duas voavam, clamando mutuamente e dizendo: "Santo, santo, santo, é o Senhor Deus dos Exércitos, toda a terra está cheia de sua glória". (Is. 6, 1-3)
Porque, portanto, somente os serafins tinham ambas as suas asas
cobrindo-lhes as faces diante de Deus e os seus pés, devemos ousar declarar que nem o exército dos santos anjos, nem os santos tronos, nem as dominações, nem os principados, nem as potestades podem conhecer integralmente o início e o fim de todas as coisas. Deve-se, porém, entender que estes santos que foram enumerados como sendo espíritos e virtudes próximas aos próprios inícios tenham alcançado mais do que os restantes puderam conseguir. De tudo aquilo que, porém, revelando-o o Filho de Deus e o Espírito Santo, tiverem aprendido estas virtudes, muito estes outros puderam alcançar e muito mais os primeiros do que os inferiores. Tudo, porém, mesmo para elas é impossível que o compreendam, porque está escrito: "Muitas obras de Deus são ocultas". (Ec. 16, 22)

De onde que é desejável que cada um, segundo a medida de suas forças, sempre queira arrojar-se para o que está adiante, esquecendo-se do que fica para trás, tanto para as obras melhores como também para o senso e o entendimento mais puro, por Jesus Cristo, nosso Salvador, ao qual é a glória pelos séculos dos séculos.
Todos, portanto, os que se ocupam com a verdade, pouco se preocupem com nomes e palavras, porque cada povo tem diversos costumes de palavras. Preocupem-se em buscar mais o que significa, do que com quais palavras se significa, principalmente em coisas tão grandes e tão difíceis, como quando se busca, por exemplo, se há alguma substância que não possa ser entendida nem pela cor, nem pelo hábito, nem pelo tato, nem pelo tamanho, mas que seja apenas visível pela mente, seja a qual nomeada como se o queira. Os gregos a chamam de "assomaton", isto é, incorpóreo, as divinas Escrituras a chamam de invisível, como quando Paulo diz Cristo ser a imagem invisível do Pai (Col. 1, 15), para pouco depois dizer que por Cristo foram criadas todas as coisas, as visíveis e as invisíveis (Col.1, 17). Vemos, assim, que que Paulo declara haver também entre as criaturas algumas que são invisíveis segundo a propriedade de suas substâncias. Estas, porém, embora não sejam corporais, usam, todavia, os corpos, ainda que eles mesmos sejam, segundo a substância, melhores do
que os corpos. A substância da Trindade, porém, que é princípio e causa de todas as coisas, da qual são todas, por qual são todas e na qual são todas, não se pode crer que seja nem corpo, nem em corpo, mas que seja de todo incorpórea.

Exortados assim brevemente pela própria lógica e coerência do assunto, embora nos tenhamos estendido um pouco, seja suficiente o que dissemos para mostrar que há algumas coisas cuja significação não pode ser explicada por nenhum discurso da língua humana, mas que são declaradas por uma inteligência mais simples do que as propriedades de quaisquer palavras. A esta regra deve ater-se também a inteligência das letras divinas, e considere-se o que se diz não pela vileza da palavra, mas pela divindade do Santo Espírito que inspirou quem as escreveu.


Fonte: http://cristianismo.org.br/or-prin0.htm

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