De São
Gregório Magno - A Vida de São Bento
PREFÁCIO
DE S. GREGÓRIO MAGNO AOS QUATRO LIVROS DOS DIÁLOGOS
“Abatido,
um dia, por causa da excessiva afluência de alguns seculares - aos quais, em
suas dificuldades, somos muitas vezes obrigados a pagar até o que sem dúvida
não devemos -, rocurei um lugar retirado, amigo de minhas mágoas, onde pudesse
ver com clareza tudo que me desagradava em minhas ocupações e ter livremente
sob os olhos tudo quanto me costumava afligir. Enquanto ali me achava,
amargurado e em silêncio por muito tempo, esteve comigo meu amado filho, o
diácono Pedro, que desde a mais tenra idade me é familiarmente ligado por
grande amizade, e também companheiro no estudo da Palavra Sagrada. Vendo-me o
coração devorado de mágoa, disse-me:
“Terá
acontecido algo de novo, pois estás mais triste que de costume?” “Pedro,
respondi-lhe, a tristeza que sofro cada dia, é para mim sempre velha, porque
contínua, e, simultaneamente, sempre nova, porque sempre aumenta”.
Meu
pobre espírito, atacado do mal das suas ocupações, recorda o que foi outrora no
mosteiro, como as coisas instáveis lhe estavam por baixo, e quanto ele
transcendia tudo que passa, acostumado que era a não pensar senão nas coisas celestes;
recorda que, embora retido no corpo, já ultrapassava pela contemplação os
limites da carne; e a morte, que para quase todos é punição, ele já a desejava
como a entrada na vida e o prêmio dos seus trabalhos. Agora, porém, sofre com
as dificuldades dos seculares, por ocasião da cura pastoral. Depois de tanta
formosura do tempo da sua paz, está hoje enfeiado do pó da atividade terrena.
E
como, por condescendência com muitos, ele se dissipa pelas coisas de fora,
mesmo quando retoma o curso da vida interior, é, sem dúvida, debilitado que a
ela volta. Estou, pois, avaliando o que sofro, avaliando o que perdi; e,
enquanto considero o que perdi, pesa-me ainda mais o que suporto.
Eis,
com efeito, sou agora batido pelas vagas de alto mar, e os ventos de forte
tempestade despedaçam a nau de minha mente; quando me lembro da vida anterior,
suspiro como se estivesse vendo atrás de mim o litoral. E, o que é ainda mais
triste, enquanto sou levado no tumulto de imensas ondas, mal posso ver o porto
que deixei; pois esta é a lei das quedas do espírito: primeiro, ele perde o bem
que possui, mas ao menos se lembra de o ter perdido; depois, quando avança mais
longe, acaba esquecendo o próprio bem que perdeu, e, finalmente, não vê mais, nem
de memória, o que antes possuía por experiência. Daí se segue o que antes eu
disse: se navegarmos mais adiante, já nem o porto de tranquilidade que deixamos
podemos ver.
Às
vezes, também, para aumento de minha dor, volta-me à lembrança a vida de alguns
homens que de toda a mente deixaram este século. Vendo as alturas a que
chegaram, fico sabendo quanto me encontro por baixo. “A maioria deles agradou
ao Criador numa vida retirada; para que o seu espírito novo não envelhecesse
por ocupações humanas, Deus onipotente não quis que se ocupassem com trabalho
deste mundo.”
Mas
poderei relatar melhor o diálogo (travado entre mim e Pedro), se distinguir
perguntas e respostas pela indicação dos nomes dos interlocutores.
Pedro:
“Não sabia que na Itália alguns homens brilharam notavelmente pelas virtudes de
sua vida”. Ignoro, pois, quem são estes cuja comparação te inflama. “Não
duvido, é verdade de que houve neste país homens bons, mas penso que ou não
operaram absolutamente sinais e milagres, ou, se os operaram, foram até hoje de
tal modo passados em silêncio que não sabemos que os praticaram.”
Gregório:
“Pedro, se eu referir o que desses homens perfeitos e aprovados eu só, pobre
homenzinho, vim a saber do testemunho de gente boa e fidedigna, ou aprendi por
mim mesmo, penso que o dia acabará antes da narrativa.”
Pedro:
“Gostaria de que em resposta a perguntas minhas contasses alguma coisa desses
homens. Não deve parecer condenável interromper com isto a exposição da
Escritura, porque não menos edificação provém da lembrança dos milagres. Na
exposição da Escritura conhece-se o modo de encontrar e conservar a virtude; na
narração dos milagres, conhecemos como se manifesta a virtude encontrada e
conservada. E há muita gente que mais pelo exemplo do que pela palavra se inflama
de amor pela pátria celeste. Muitas vezes mesmo os exemplos dos Pais trazem à
alma do ouvinte uma dupla ajuda, pois, se, de um lado, ele se afervora no amor
da vida futura pela comparação com os que o precederam, de outro lado, também
se humilha, se julga ser alguma coisa, ao conhecer que outros foram melhores.”
Gregório:
“O que fiquei sabendo pela narração ouvida de homens veneráveis, também eu o
narrarei sem hesitação, seguindo um exemplo de santa autoridade; pois me é mais
claro do que a luz que Marcos e Lucas aprenderam, não por ver, mas por ouvir, o
Evangelho que escreveram. Todavia, para tirar aos leitores qualquer ocasião de
dúvida, referirei em cada caso que descrever, os autores por quem fui
informado. Quero, porém, chamar a tua atenção para o seguinte: em alguns casos
guardarei apenas o sentido, enquanto, em outros, tanto o sentido como as
palavras dos relatores. A razão é que, se de todas as pessoas eu quisesse
conservar textualmente as palavras, a linguagem de escritor não poderia
reproduzir dignamente as que foram proferidas em linguagem rústica.
“Foi
de anciãos muito veneráveis que ouvi o que passo a contar.”
PRÓLOGO DE S. GREGÓRIO MAGNO AO SEGUNDO LIVRO DOS
DIÁLOGOS
“Houve
um varão de vida venerável, Bento tanto pela graça quanto pelo nome, que desde
a infância possuía um coração maduro”.
Superior,
pelo seu modo de proceder, ao verdor da idade a nenhuma volúpia entregou seu
coração, e assim, enquanto se achava nesta terra, da qual por algum tempo
pudera gozar livremente, desprezou, como já murchas, as flores do mundo. Oriundo
de nobre estirpe da província de Núrsia, fora encaminhado a Roma para o estudo
das belas letras. Vendo, porém, muitos nesses estudos rolarem pelo
despenhadeiro do vício, recolheu logo o pé que quase pusera no limiar do mundo,
no temor de que, tocando algo da sua ciência, viesse também ele a despenhar-se
por inteiro no tremendo abismo.
Desprezando,
pois, tais estudos, deixou a casa e os bens paternos, e, no desejo de agradar
somente a Deus, procurou o santo hábito do monaquismo. Retrocedeu, assim,
doutamente ignorante e sabiamente insensato.
Não
conheço todos os feitos desse varão, mas o pouco que contarei, sei-o pela
narração de quatro discípulos seus: Constantino, homem respeitabilíssimo, que
lhe sucedeu na direção do mosteiro; Valentiniano, que regeu por muitos anos o
mosteiro do Latrão; Simplício, que foi o seu segundo sucessor na direção da comunidade;
Honorato, que até hoje dirige o mosteiro onde Bento antes viveu.”
CAPÍTULO I.
REPARAÇÃO DO CRIVO QUEBRADO.
“Deixando,
pois, as humanidades, resolveu procurar um lugar ermo, seguido apenas pela aia,
que o amava com ternura”. Chegaram, assim, a certa localidade chamada Enfide,
onde, entretidos pela caridade de muitos homens de virtude, ficaram morando
junto à igreja de S. Pedro Apóstolo. Um dia, a ama pediu às vizinhas que lhe emprestassem
um crivo para limpar o trigo; tendo-o, porém, deixado descuidadamente sobre a
mesa, o crivo caiu e se quebrou, ficando partido em dois pedaços. Logo que
voltou e o encontrou nesse estado, a mulher começou a chorar muito, aflita por
ver quebrada a vasilha que tomara de empréstimo. Quando, porém, o piedoso e bondoso
jovem Bento encontrou a ,ama chorando, compadecido da sua dor, pegou os dois cacos do vaso, e,
levando-os consigo, entregou-se à oração com lágrimas. Quando se ergueu da
oração, viu junto de si o crivo de tal forma íntegro que nenhum vestígio se podia
descobrir da fratura. Então, pronta e carinhosamente consolou a ama,
devolvendo-lhe são o vaso que levara em cacos.
Este
fato passou ao conhecimento de todos os habitantes do lugar, e foi tido em
tanta admiração que penduraram à porta da igreja o crivo restaurado, a fim de
que os contemporâneos e os pósteros todos ficassem sabendo em que grau de
perfeição o jovem Bento principiara a graça da vida monástica. A vasilha ficou
por muitos anos exposta aos olhares de todos, pendendo à parta da igreja até estes
tempos dos Lombardos.
Bento,
porém, mais apetecendo os maus tratos que os louvores do mundo, e preferindo
fatigar-se de trabalhos por Deus a ser alçado pelos favores desta vida, fugiu
ocultamente da ama e foi dar a um retiro deserto no lugar denominado , distante
de Roma cerca de quarenta milhas. Aí brota uma água fresca e transparente, que,
correndo com abundância, primeiro forma um grande lago, do qual deriva, afinal,
um rio.
Quando
para ali se encaminhava em fuga, encontrou certo monge de nome Romano, que lhe
perguntou aonde ia. Ciente do seu desejo, não só guardou segredo mas, ainda lhe
prestou ajuda e deu o hábito do monacato, servindo-o no que podia.
Chegado
a tal lugar, o homem de Deus recolheu-se à apertadíssima gruta, onde morou três
anos ignorado de todos, excetuado o monge Romano. Este último vivia num
mosteiro próximo, sob a regra do abade, a cujo olhar piedosamente furtava
algumas horas para levar a Bento, em determinados dias, a parte de pão que
conseguira subtrair ao próprio consumo. Não havia caminho do mosteiro de Romano
à gruta, por causa de alto rochedo que em cima da gruta fazia saliência; mas
Romano, do alto dessa pedra, costumava fazer descer o pão pendurado a uma corda
comprida a que prendera uma campainha para que o homem de Deus, ao ouvir-lhe o
toque, soubesse que era a hora de baixar o alimento, e saísse a tomá-lo. Um
dia, porém, o antigo inimigo, invejando a caridade de um e a refeição do outro,
quando viu descer o pão, jogou uma pedra e quebrou a campainha. Romano, não
obstante, não desistiu de prestar por meios aptos o seu serviço.
No
entanto, Deus todo-poderoso queria, de um lado, descansar Romano do trabalho,
e, doutro lado, exibir aos homens, para exemplo, a vida de Bento, a fim de que
brilhasse como lâmpada sobre o candelabro, iluminando todos os que estão na
casa. Por isto, o Senhor dignou-se de aparecer a certo presbítero que morava longe
e acabava de preparar, no dia de Páscoa, a própria refeição; disse-lhe:
“Preparas delícias para o teu próprio gozo, enquanto o meu servo em tal lugar é
atormentado pela fome'.” O sacerdote levantou-se imediatamente e no próprio dia
da solenidade de Páscoa, com os alimentos que para si preparara, saiu na
direção indicada, procurando o homem de Deus através dos montes escarpados,
pelos vales e fossas do terreno, até que o achou escondido na gruta. Depois de
rezarem, assentaram-se bendizendo a Deus todo-poderoso; após suaves colóquios
sobre a vida eterna, o recém-vindo disse estas palavras: “Eia, tomemos
alimento, porque hoje é Páscoa. Respondeu-lhe o homem de Deus: “Sei que é
Páscoa, pois mereci a graça de te ver”. Morando longe dos homens, Bento ignorava
que a solenidade pascal era naquele dia; más o venerável presbítero de novo lho
asseverou: “Em verdade hoje é Páscoa, o dia da Ressurreição do Senhor”. De modo
nenhum te fica bem jejuar, pois aqui fui mandado justamente para que juntos
partilhemos as dádivas de Deus todo-poderoso”. Louvando, pois, o Senhor, tomaram
alimento; e, finda a refeição e o colóquio, voltou o padre para a sua igreja.
Por
esse mesmo tempo também alguns pastores o encontraram escondido na caverna.
Vendo-o entre arbustos, vestido de peles, julgaram a principio que fosse um
animal selvagem; mas, quando ficaram conhecendo o servo de Deus, muitos se
converteram da sua mente animal para a graça de uma vida piedosa. Assim o nome
de Bento tornou-se conhecido pelos arredores; já desde então Bento começou a ser
visitado por muitos que, trazendo-lhe a refeição para o corpo, levavam, em
troca, nos corações, o alimento de vida que procedia dos lábios do santo.
CAPÍTULO II. VITÓRIA SOBRE A TENTAÇÃO DA CARNE.
Certa
vez, quando estava só, apareceu-lhe o tentador: uma dessas avezinhas pretas,
conhecidas vulgarmente pelo nome de melro, começou a esvoaçar em torno do seu
rosto e a chegar importunamente tão perto que o santo homem, se o quisesse a poderia
apanhar com a mão. Em vez disto, fez o sinal da cruz, e o pássaro afastou-se.
Desaparecida, porém, a ave, seguiu-se-lhe grande tentação carnal, qual nunca o
santo experimentara.
Conhecera
outrora certa mulher, que o espírito maligno lhe fazia por essa ocasião voltar
aos olhos do espírito, inflamando de tal modo o coração do servo de Deus a
lembrança de sua formosura, que seu peito mal podia conter as chamas do amor, e
que quase pensava em abandonar o deserto, vencido pela paixão. Mas eis que de
repente foi contemplado pela graça celeste, e voltou a si; vendo, então, ao lado
de si crescerem densas moitas de urtigas e espinhos, atirou-se, despido, a
essas pontas e a essas chamas, onde se revolveu por tanto tempo, que, ao sair,
estava ferido por todo o corpo. Assim expulsou do corpo, pelas feridas da
carne, a chaga do espírito: convertera em dor a volúpia. Ardendo por fora em
justa punição, apagou o que por dentro ilicitamente queimava. Venceu, pois, o pecado,
porque transformou a natureza do incêndio. E a partir dessa época, como ele
mesmo dizia aos discípulos, foi nele a tal ponto subjugada a tentação da
volúpia que nunca mais a sentiu. Muitos, então, começaram a deixar o mundo e a
acorrer ao seu magistério: livre que estava do mal da tentação, mereceu
tornar-se mestre de virtudes. “Por isso é que Moisés determina que os Levitas
sirvam a partir dos vinte e cinco anos, e que, depois dos cinquenta, se tornem
guardas dos vasos sagrados (Num 8,24-26).”
Pedro:
“Entendo em parte o sentido do testemunho (bíblico) que aduzes, mas peço que o expliques mais
plenamente.” Gregório: “É evidente, Pedro, que na juventude ferve a tentação da
carne, mas, depois dos cinquenta anos, arrefece o calor do corpo; quanto aos
vasos sagrados, são as mentes dos fiéis. É preciso, pois, que, enquanto estão
sujeitos à tentação, os eleitos sejam submissos e sirvam, fatigando-se em
obediência e trabalhos. Quando, porém, na idade tranquila da mente, tenha
passado o calor da tentação, tornam-se guardas dos vasos, isto é, doutores das
almas.”
Pedro:
“Confesso que a explicação me satisfaz. E, agora que já desvendaste o sentido
da passagem trazida em testemunho, peço-te que continues a descrever o que foi
começado da vida desse justo.”
CAPÍTULO III. O COPO DE VIDRO QUEBRADO COM O SINAL DA
CRUZ.
Gregório:
“Vencida a tentação, o homem de Deus, como terra bem cultivada e expurgada de
espinhos, produziu com maior abundância o fruto da seara das virtudes”. E, com
a divulgação da fama de sua exímia vida monacal, ia-lhe o nome ficando célebre.
Ora, havia a não grande distância um mosteiro cujo abade falecera.
Toda
a comunidade foi ter então com o venerável Bento, e instantemente pediu-lhe
quisesse ficar à sua frente. O santo recusou por muito tempo, predizendo que
não poderia harmonizar os seus costumes com os daqueles irmãos. Mas, afinal,
vencido pelos rogos, cedeu.
Já, porém,
que vigiava naquele mosteiro pela observância da vida regular e a ninguém
permitia que por ações ilícitas se desviasse, como antes, do caminho monástico,
os irmãos que ele aceitara, encheram-se de fúria e puseram-se primeiro a acusar
a si mesmos por terem pedido a Bento que os regesse; sua vida tortuosa ia em oposição
à reta norma do abade.
Como
viam que, sob tal abade, o ilícito já não lhes era permitido, e como lhes doía
abandonar os antigos hábitos, achando eles dura a obrigação de meditar coisas
novas na sua mente velha, alguns deles - já que aos maus é sempre pesada a vida
dos bons - tramaram a morte do abade, e, tomado o alvitre em conselho,
deitaram-lhe veneno ao vinho. Quando apresentaram ao Pai, sentado à mesa, o copo
da bebida pestífera para ser abençoado segundo o costume da casa, Bento
estendeu a mão e fez o sinal da cruz. A este gesto, o vaso, que estava
distante, estalou e fez-se em pedaços, como se naquela taça de morte tivesse
dado, em vez da cruz, uma pedrada.
Compreendeu
logo o homem de Deus que o copo contivera uma bebida mortal, pois não pudera
suportar o sinal da vida. Levantou-se no mesmo instante, e, com o rosto
plácido, a mente tranquila, convocou os irmãos, aos quais assim falou: “Deus
tenha compaixão de vós, irmãos”. Porque me quisestes fazer isto? Não vos disse
eu previamente que não se harmonizariam os vossos e os meus costumes? “Ide, e
procurai para vós um Pai consoante à vossa vida; depois disto já não me
podereis reter”. “Voltou, então, ao recanto da dileta solidão, e só, sob os
olhares do Contemplador Superno, pôs-se a viver consigo mesmo.”
Pedro:
“Não entendo bem o que significa isto: «viver consigo mesmo”.
Gregório:
“Se o santo varão pretendesse ter por muito tempo sob seu poder e coação irmãos
que conspiravam unanimemente contra ele e eram de vida tão diferente da sua,
talvez excedesse o limite das próprias forças, perdesse a tranquilidade, e.”. Assim,
baixassem da luz da contemplação, os olhos da mente. Cansando-se em lidar cada
dia com a incorreção de outros, cuidaria menos de si próprio, e, desta forma,
talvez viesse a perder-se a si, sem achar os outros. Pois, quando somos
arrastados muito fora de nós pela agitação do pensamento, continuamos a ser nós
mesmos, mas não estamos em nós mesmos, porque deixamos de olhar para dentro de
nós e vagamos pelas outras coisas. Acaso diremos que vivia consigo aquele que
partiu para longe, consumiu o quinhão recebido e se empregou na casa de um
habitante do lugar, deu de comer a porcos, que via fartarem-se de favas,
enquanto ele mesmo tinha fome?
Depois,
porém, começou a pensar nos bens que perdera, e então foi escrito dele:
“Voltando a si, disse: Quantos mercenários têm pão em abundância na casa de meu
pai!” (Lc 15,17). Ora, se estava em si mesmo, como é que voltou a si?
“Disse
eu, pois, que esse venerável homem viveu só consigo, porque, sempre prudente na
guarda de si mesmo, vendo-se continuamente ante os olhos do Criador e
examinando-se sem cessar, nunca deixou que lhe divagasse fora o olhar da mente”.
Pedro: “Como entender o que está escrito do Apóstolo Pedro, quando foi tirado
do cárcere pelo anjo? Ele, “voltando a si, disse: Agora sei, na verdade, que o Senhor
enviou o seu anjo e me livrou do poder de Herodes e de toda a expectativa do
povo dos Judeus” (Atos 12,11).
Gregório:
“De dois modos, Pedro, somos levados para fora de nós: ou caímos abaixo de nós
mesmos pela queda do pensamento, ou somos transportados acima, pela grafa da
contemplação. Aquele, pois, que guardou porcos, caiu, por pensamentos divagantes
e imundos, abaixo de si, enquanto aquele que o anjo libertou e arrebatou no
êxtase do espírito, esteve também fora, mas acima, de si. Cada um deles,
portanto, “ voltou a si”: um, deixando as obras erradas, recolheu-se a própria
alma; o outro, descendo das alturas da contemplação, voltou ao modo comum de
inteligência, como dantes. Por conseguinte, o venerável Bento, naquela solidão,
viveu só consigo, enquanto se manteve dentro da clausura do pensamento; pois
todas às vezes que o ardor da contemplação o Raptou para as alturas, ele se
deixou, sem dúvida, abaixo de si mesmo”. Pedro: “Apraz-me o que dizes; mas
queria saber se ele podia deixar os irmãos que tinha tomado a si para sempre.” Gregório:
“Em minha opinião, Pedro, julgo que onde existem alguns bons que possam ser
ajudados, devem os maus ser suportados com paciência”.
Mas
onde falta, por completo, o fruto dos bons, torna-se, finalmente, inútil o
trabalho gasto com os maus, mormente se perto há outras condições capazes de
produzir fruto para Deus. Por causa de quem ficaria ó santo homem ali, pendo
todos em peso contra si? Muitas vezes, também, no espírito dos perfeitos se dá uma
coisa que não devemos passar em silêncio: vendo sem resultado o seu esforço,
passam a outro lugar, onde trabalhem com fruto. Por este motivo, aquele grande
pregador, que ardia por “dissolver-se” e “para quem Cristo constituía o viver,
e a morte, lucro” (Fil 1,21-23) que não só apeteceu os sofrimentos para si, mas
ainda inflamou os outros para tolerá-los, esse grande pregador, quando foi alvo
de perseguição em Damasco, procurou, para evadir-se, a muralha, cordas e um
cesto, e quis ser baixado às ocultas (2 Cor 11,32-33). Diremos, por ventura,
que Paulo temeu a morte, que ele próprio afirma ter cobiçado por amor de Jesus?
A
verdade é que, vendo esperá-lo ali menos fruto e maior trabalho, se reservou
para trabalhar em outra parte com maior proveito; pois o robusto combatente de
Deus não quis ficar encerrado no acampamento, mas buscou o campo de batalha.
Donde também em breve verás, se prestares atenção, que o mesmo venerável Bento não
deixou de lado tantos rebeldes quantos ressuscitou, alhures, da morte da alma.”
Pedro: “É como dizes; mostra-o tanto a razão evidente como o adequado
testemunho da Escritura. “Peço-te agora que voltes à narração da vida de tão
grande Pai.”
Gregório:
“Como o santo homem, vivendo muito tempo naquela solidão, crescesse em virtude
e milagres, foi reunindo muitos no lugar para o serviço de Deus todo-poderoso.
Pôde, assim, construir, com a ajuda de Jesus Cristo Senhor onipotente doze mosteiros,
em cada um dos quais colocou doze monges sob um abade instituído; consigo,
porém, conservou alguns poucos, que julgou conveniente se formassem
ulteriormente em sua presença.
Por
esse tempo, também, começaram a afluir de Roma pessoas nobres e piedosas, que
lhe davam os filhos a fim de que os criasse para Deus todo-poderoso. Foi então
que Equício fez a entrega de Mauro, e o nobre Tertulo, à de Plácido, flores das
esperanças paternas. “Mauro, adolescente que se distinguia pelos bons costumes,
começou a prestar auxílio ao Mestre, enquanto Plácido ainda se achava em idade
infantil.”
CAPÍTULO IV.
O MONGE DIVAGANTE RECONDUZIDO À SALVAÇÃO.
“Em
um dos mosteiros que construíra ao redor, havia certo monge que não conseguia
ficar em oração”. Logo que os irmãos se inclinavam nesse exercício, saía e
punha-se a revolver na mente vadia coisas mundanas e transitórias. Admoestado
várias vezes por seu abade, foi por fim conduzido ao homem de Deus, que lhe increpou
com veemência a insensatez; de volta, porém, ao seu mosteiro, mal conseguiu
observar por dois dias a admoestação do homem de Deus; já ao terceiro, recaindo
no velho hábito, entrou de novo a vaguear na hora da oração. Quando isto foi
contado ao servo de Deus pelo pai do mosteiro, respondeu aquele: «Irei eu
mesmo, e pessoalmente o emendarei”.
O
homem de Deus foi, com efeito, ao dito mosteiro, e na hora marcada, quando os
irmãos depois da salmódia se entregavam à Oração, observou que o monge que não
podia ficar rezando, era arrastado por um negrinho, que o puxava pela orla do
hábito. À vista disso, Bento perguntou secretamente ao abade do mosteiro, Pompeiano,
e ao servo de Deus, Mauro: “Não vedes, então, quem é que puxa esse monge?”
Responderam que não. Ao que retorquiu:
“Oremos
para que vejais também vós a quem é que esse monge segue”. Depois de dois dias
de oração., Mauro monge o viu, ao passo que Pompeiano, pai do mosteiro, não o
conseguiu.
Ora,
no dia seguinte, saindo do oratório depois do ofício, o homem de Deus topou com
o dito monge em pé do lado de fora, e aí com uma vara bateu-lhe de rijo, por
causa da cegueira de seu coração. Desde esse dia o monge nunca mais se deixou
induzir pelo pretinho, permanecendo sossegado na prática da oração, e o antigo
inimigo não mais se atreveu a dominar-lhe o pensamento, como se fora ele mesmo
que levara as pancadas.
CAPÍTULO V.
ÁGUA QUE BROTOU DE UMA PEDRA NO ALTO DO MONTE.
“Dos mosteiros que Bento edificara na mesma
região, três ficavam em cima de rochedos da montanha”. Era, por isto, muito
penoso aos irmãos descer sempre ao lago para buscar água, tanto mais que o declive
do monte constituía grave perigo para todos aqueles que, cheios de medo, por
ele desciam.
Reuniram-se,
então, os irmãos desses três mosteiros, e foram ter
com
o servo de Deus, Bento, dizendo: “É-nos penoso ir todos os dias ao lago buscar
água, e por isto é necessário mudar de lugar os nossos mosteiros”. Bento os
consolou com brandura e despediu. Na mesma noite, porém, com o menino Plácido,
de que acima falei, subiu ao rochedo do monte, e ali orou por muito tempo.
Acabada a oração, colocou no dito lugar três pedras como sinal e, sem que os outros
percebessem qualquer coisa, voltou ao seu mosteiro. No dia seguinte, tendo os
irmãos voltado à sua presença para tratar
das
dificuldades da água, assim lhes falou: “Ide, e cavai um pouco o rochedo no
sítio em que achardes três pedras sobrepostas; Deus Todo-Poderoso é capaz de
fazer brotar água até naquele cume de montanha, para poupar-vos o cansaço de
tão grande caminhada”.
Ora,
indo eles à pedra do monte indicada por Bento, encontraram-na já gotejante.
“E,
quando nela praticaram uma cova, esta logo se encheu de água, que brotou com
tanta abundância que ainda hoje corre em quantidade, e serpeja desde o pico até
as faldas da serra.”
CAPÍTULO VI.
O FERRO QUE VOLTOU AO PRÓPRIO CABO.
“Em
outra ocasião, certo godo, pobre de espírito, procurou a vida monástica, e foi
recebido com o maior agrado pelo homem de Deus”.
Um
dia, este mandou dar-lhe um instrumento semelhante a uma foice, para remover os
espinheiros de certo lugar que devia ser transformado em horta. O lugar que o
godo recebeu para limpar, estava situado à margem do lago. Quando roçava com
toda a força as densas moitas de espinheiro, eis que o ferro, saltando do cabo,
caiu no lago, precisamente onde tanta era a profundidade das águas que não
havia esperança de recuperá-lo. Perdida a ferramenta, correu o godo, todo
trêmulo para o monge Mauro, a quem narrou o dano que causara, fazendo ainda
penitência pela falta.
O
monge Mauro tratou logo de referir o fato ao servo de Deus, Bento. Tendo-o
ouvido, o homem do Senhor encaminhou-se para o lugar, tomou da mão do godo o
cabo e mergulhou-o no lago; na mesma hora o ferro subiu do fundo e entrou no
cabo. Bento, então, restituiu a ferramenta ao godo, dizendo: “Eis, trabalha
agora, e não fiques triste.”
CAPÍTULO VII.
MAURO
CAMINHA SOBRE AS ÁGUAS.
“Um
dia, quando o venerável Bento estava na cela, o jovem lácido, monge do santo
varão, saiu para tirar água do lago”. Quando, porém, mergulhou a vasilha que
segurava, tão incautamente o fez que ele mesmo, caindo, a acompanhou. A
correnteza logo o colheu e levou para o meio do lago, à distância da margem de
quase uma fechada. O homem de Deus, embora na cela, no mesmo instante teve
notícia do acidente e chamou Mauro depressa, dizendo: “Irmão Mauro, corre, pois
o menino que foi buscar água, caiu no lago e já está longe, levado pela
corrente”.
Coisa
admirável e não vista depois do apóstolo Pedro! Tendo pedido e recebido a
bênção, Mauro saiu ligeiro movido pela ordem do Pai, e nisto correu sobre as
águas, pensando que ia por terra, até o ponto aonde chegara o menino arrastado
pela onda; agarrou-o pelos cabelos e voltou também a curso rápido.
Logo
que pisou terra, voltando a si, olhou para trás e viu que correra em cima das
águas. E, como não podia presumir que isto deveras tivesse acontecido cheio de
admiração temeu o fato. Voltando ao Pai, contou-lhe o sucedido. O venerável
Bento começou, então, a atribuir o caso não aos próprios méritos, mas à
obediência de Mauro. Este, porém, replicando, dizia que era devido somente ao mandado
do Pai, e que não tinha consciência daquele prodígio, que sem saber praticara.
Nessa amistosa contenda de humildade sobreveio como árbitro o menino que fora
salvo; o qual assim falou:
“Quando
eu era arrebatado das águas, via sobre minha cabeça a melota do abade, e
contemplava-o a tirar-me das águas”.
Pedro:
“Muito grandes são as coisas que narras, e proveitosas para a edificação de
muitos. De minha parte, quanto mais bebo dos milagres desse santo varão, mais sedes
têm.”
CAPÍTULO VIII.
O PÃO ENVENENADO QUE O CORVO LEVOU PARA LONGE.
Gregório:
“Já aqueles lugares estavam em grande extensão abrasados do amor de Jesus
Cristo, Deus Nosso Senhor, e muitos cristãos tinham abandonado a vida secular para
ali domar o orgulho do coração sob o suave jugo do Redentor”. Como é costume
dos maus invejar aos outros o bem da virtude que eles mesmos não procuram
praticar, eis que o padre de uma igreja próxima, chamado Florêncio (avô do
nosso subdiácono Florêncio), tocado da maldade do antigo inimigo, começou a ter
ciúme do santo homem, e pôs-se a denegrir sua vida de monge e a impedir quantos
podia, de irem visitá-lo.
Vendo,
afinal, que não conseguia opor-se aos progressos de Bento, vendo que crescia a
fama de sua santidade, e que muitos, pelo simples pregão dessa fama, eram
continuamente chamados a um estado de vida melhor, FIorêncio, mais e mais
abrasado pela inveja, ia-se tornando cada vez pior: os louvores merecidos pela
vida de Bento, ele os apetecia; vida tão louvável, porém, não a queria levar.
A
tal ponto Boi obcecado pelas trevas da inveja, que chegou a enviar de presente
ao servo de Deus todo-poderoso um pão envenenado. O homem de Deus o recebeu
agradecido, mas não lhe ficou oculta a peste que no pão se ocultava.
Ora,
acontecia que à hora da refeição, costumava vir da floresta próxima um corvo,
que recebia pão das mãos de Bento. Quando então chegou como de costume, o homem
de Deus lançou diante do corvo o pão envenenado do presbítero, e deu-lhe esta ordem:
“Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, toma este pão e atira-o num lugar tal
que não possa ser achado por ninguém”. O corvo, então, de bico e asas abertos,
começou a esvoaçar e a crocitar em redor do pão como se dissesse claramente que
queria obedecer, mas não podia. No entanto, o homem de Deus ordenava repetidas
vezes:
“Leva,
leva sem medo, e vai jogá-lo onde não possa ser encontrado”. Finalmente, depois
de hesitar por muito tempo, o corvo tomou o pão no bico e, levando-o, partiu.
Ao cabo de três horas voltou sem o pão, que lançara fora, e recebeu das mãos do
homem de Deus a ração costumeira.
Vendo
o venerável Pai que o coração daquele sacerdote se inflamava de ódio contra sua
vida, mais se condoía dele que de si mesmo.
Ora,
o citado Florêncio, já que não lograra matar o corpo do mestre, tomou a peito
acabar com as almas dos discípulos.
Por
conseguinte, à vista destes introduziu no quintal do mosteiro em que estava
Bento, sete moças nuas, que, de mãos dadas, dançaram diante deles por muito
tempo, a fim de inflamar-lhes o espírito para as depravações da luxúria. Vendo
isto da cela, e temendo a queda dos discípulos mais jovens, o santo homem, que
bem se dava conta de ser o único motivo da perseguição, acabou por ceder à
inveja:
Nomeou
os superiores, e distribuiu os irmãos pelos mosteiros que edificara; e, levando
consigo alguns poucos monges, mudou de domicílio.
Tão
logo, porém, o servo de Deus se esquivava humildemente aos ódios de Florêncio,
e já Deus onipotente castigava a este de terrível forma. Pois, estando no
terraço, donde com prazer contemplava a partida de Bento, o mesmo ruiu,
enquanto permanecia ileso o resto da casa, e, esmagando o inimigo de Bento,
acabou com ele.
O
discípulo do homem de Deus chamado Mauro julgou que devia imediatamente
anunciar o fato ao venerável Pai Bento, que apenas caminhara umas dez milhas, e
disse-lhe: “Volta, pois o presbítero que te perseguia, morreu. Ao ouvi-lo,
prorrompeu Bento em fortes lamentos, tanto pela morte do inimigo como pela
alegria que com ela teve o discípulo. Do fato seguiu-se que Bento impôs uma
penitência ao discípulo, pois este, ao contar o ocorrido, ousara regozijar-se pelo
fim do inimigo”.
Pedro:
“São admiráveis e estupendas as coisas que dizes. Com feito, na água que brotou
da pedra, vejo Moisés (Num 20,11); no ferro que voltou do fundo d’água, Eliseu
(4 Reis 6,7) ; no caminhar sobre as águas, Pedro (Mt 14,29) ; na obediência do
corvo, Elias (3Reis 17,6) ; no luto pela morte do inimigo, Davi (2 Reis 1,11;
18,13).
Como
posso avaliar, este varão foi cheio do espírito de todos os justos.”
Gregório:
“O homem de Deus, ó Pedro, possuiu o espírito do Deus único, que pela graça da
Redenção encheu o coração de todos os eleitos, e de quem diz , João: “Era a
verdadeira luz que ilumina todo homem que vem a este mundo” (Jo 1,9).
E
ainda: “Da sua plenitude nós todos recebemos” (ibd. 1,16) . De fato, os santos
homens de Deus puderam obter do Senhor milagres, mas não os puderam transmitir
a outrem. O Senhor, porém, deu os sinais da virtude aos seus súditos, Ele que
prometeu dar o sinal de Jonas aos seus inimigos, de modo que se dignou de morrer
ante os soberbos e ressuscitar ante os humildes, para que aqueles vissem o que
iam desprezar, e estes contemplassem o que com veneração deveriam amar. “Deste
mistério se seguiu que, enquanto os soberbos só viram o aspecto ignominioso da
morte, os humildes receberam a glória de poder contra ela”.
Pedro:
“Peço-te agora que digas para que lugar se dirigiu o santo homem, e se lá
praticou novos milagres.” Gregório: “Saindo o santo homem para outras paragens,
mudou de lugar, mas não de inimigo. Pois os combates que depois sustentou, foram
tanto mais duros, quando foi desde então o próprio mestre da maldade que teve
abertamente contra si.
O
lugar fortificado chamado Cassino está situado no flanco de elevada montanha, a
qual o abriga dentro de extensa garganta, depois, alteando-se ainda por três
milhas, como que prolonga até as nuvens o seu cume. Aí em cima tinham os
antigos um templo onde, segundo o costume dos primitivos gentios, Apolo era
venerado por insensata multidão de camponeses. Cresciam por toda a parte em torno
bosques consagrada ao culto dos demônios, onde a turbainsana dos infiéis ainda
naquele tempo oferecia sacrifícios sacrílegos.
Chegado
a tal lugar, o homem de Deus despedaçou o ídolo, derrubou a ara, incendiou os
bosques e estabeleceu no próprio templo de Apoio a capela de S. Martinho,
enquanto no lugar da ara do mesmo Apoio construiu a capela de S. João. Além
disto, chamava à fé, por contínuas pregações, a multidão que morava nas redondezas.
Não
podendo suportar tudo isso em silêncio, o antigo inimigo oferecia-se aos olhos
do Pai, não mais ocultamente ou em sonhos, mas em visão manifesta, e
queixava-se, com tais clamores, de sofrer violência, que também os irmãos lhe
podiam escutar os gritos, sem, todavia, lhe discernir a figura. Conforme
referia o venerável Pai aos discípulos, o antigo inimigo aparecia diante dos
seus olhos corporais, hediondo e envolto em chamas; com a boca e os olhos chamejantes
parecia investir contra ele.
O
que dizia, porém, todos o ouviam. Primeiro, chamava Bento pelo nome. Já que
este não respondia, logo disparava em doestos. Assim é que, ao chamá-lo “Bento,
Bento”, vendo que não obtinha resposta alguma, imediatamente, acrescentava: “Maldito
e não Bento, que tens tu comigo”? Porque me persegues?
“Consideremos
agora os novos combates do antigo inimigo contra o servo de Deus, ao qual
aquele quis fazer guerra, mas acabou por proporcionar, sem querer, ocasiões de
vitória.”
CAPÍTULO IX.
A ENORME PEDRA LEVANTADA POR
ORAÇÃO.
“Certo
dia, quando os irmãos trabalhavam na construção do mosteiro, achava-se uma
pedra que resolveram levar para a obra”. E, já que dois ou três não a
conseguiam remover, outros se lhes juntaram. A pedra, porém, continuava imóvel
como se tivesse raízes no chão. A coisa era tal que dava claramente a entender
que em cima da pedra estava sentado o próprio antigo inimigo, já que as mãos de
tantos homens não a podiam mover. Mandaram, então, comunicar a dificuldade ao
homem de Deus, pedindo-lhe que viesse e, rezando, expulsasse o inimigo, a fim
de que pudessem levantar a pedra. Aquele veio sem demora, orou, deu a bênção, e
com tanta presteza foi a pedra erguida, que se diria que nunca tivera peso algum.”
CAPÍTULO X.
O INCÊNDIO IMAGINÁRIO DA COZINHA.
“Então
ao homem de Deus pareceu oportuno cavarem a terra naquele mesmo sítio”. Ora,
sucedeu que, cavando muito fundo, os irmãos encontraram um ídolo de bronze.
Atiraram-no logo para longe, indo o mesmo cair por acaso na cozinha; em consequência,
viu-se de repente sair fogo do lugar, e pareceu aos olhos de todos que o prédio
da cozinha era devorado pelas chamas. Como, jogando água para apagar o fogo,
fizessem grande vozerio, o homem de Deus, atraído pelo ruído, aproximou-se.
Considerando, então, que o fogo estava somente nos olhos dos irmãos e não nos
seus, baixou logo a cabeça em oração, e, chamando a si os irmãos que via iludidos
pelo incêndio fantástico, admoestou-os a persignarem os olhos para que
percebessem estar ileso o edifício da cozinha, e deixassem de ver as chamas
imaginárias que o antigo inimigo lhes sugeria”.
CAPÍTULO XI.
O MONGE ESMAGADO É RESTABELECIDO
PELA ORAÇÃO DE BENTO.
“Doutra
feita, quando os irmãos, obedecendo a uma exigência da construção, levantavam
um pouco mais certa parede, o homem de Deus conservava-se na cela, aplicado à
oração. Apareceu-lhe então o antigo inimigo insultando-o, e deu-lhe a saber que
ia ter com os irmãos no trabalho. Informado, o homem de Deus mandou-lhes a toda
pressa um mensageiro, dizendo: “Irmãos, agi com cautela, pois, aí vai agora o
espírito maligno. Mal acabara de falar o que levava a mensagem, e já o mau
espírito derrubara a parede em obras e sob os seus escombros esmagara um jovem
monge, filho de certo oficial da corte. Consternados todos e cheios de aflição,
não pelo dano da parede mas pelo esmagamento do irmão, correram a contar com profunda
dor o desastre ao venerável Pai Bento. Este ordenou que lhe levassem o corpo
dilacerado do rapaz. Só puderam levá-lo num manto, pois as pedras da parede lhe
tinham triturado não só os membros mas também os ossos.
O
homem de Deus mandou no mesmo instante que o pusessem em sua cela sobre a
esteira onde costumava rezar. A seguir, despediu os irmãos, fechou a cela e
debruçou-se em oração mais instante do que de costume. Coisa admirável! “Na
mesma hora, o abade mandava novamente o jovem ao trabalho, são e forte como
dantes, para que terminasse a parede com os irmãos aquele de cuja morte se
queria aproveitar o antigo inimigo para zombar de Bento.”
CAPÍTULO XII.
OS MONGES QUE COMERAM FORA DO
MOSTEIRO.
“Nesses
entrementes, começou o homem de Deus a possuir também o espírito de profecia,
predizendo o futuro e anunciando aos presentes as coisas distantes”.
Era
costume do mosteiro, todas as vezes que os monges saiam para qualquer missão,
que se abstivessem de comer e beber fora do mosteiro.
Observava-se
com toda a solicitude esse uso da Regra. Certo dia, porém, saíram alguns irmãos
a mandado, e viram-se obrigados a ficar fora até hora mais tardia. Sabendo que
perto donde estavam residia uma religiosa mulher, entraram em sua casa e
tomaram alimento. Quando tarde voltaram ao mosteiro, pediram, como de costume,
a bênção ao Pai; o qual logo os interrogou: “Onde comestes?” - “Em parte
alguma”, responderam. Ao que retorquiu: “Porque mentis desse modo? Acaso não
entrastes na casa de tal mulher? Não tomastes tais é tais comidas, não bebestes
tantos copos?” Como o venerável Pai lhes descrevesse não só a hospedagem da
mulher, mas também o gênero dos pratos e o número dos copos que haviam tomado,
reconheceram tudo que haviam feito, e, caindo trêmulos a seus pés, confessaram
a falta. “O homem de Deus, porém, logo lhes perdoou a culpa, considerando que
para o futuro não tornariam a cometer tal em sua ausência, pois saberiam que
lhes estava presente em espírito.”
CAPÍTULO XIII.
O IRMÃO DO MONGE VALENTINIANO, QUE
COMERA EM VIAGEM.
“O
monge Valentiniano, já mencionado no início, tinha um irmão, homem leigo mas
piedoso, o qual, para receber a bênção do homem de Deus e visitar o irmão,
costumava anualmente ir, em jejum, da sua casa ao mosteiro. Certa vez, quando
estava em viagem para ali, associou-se-lhe outro viajante, que levava alimentos
para a jornada.
Quando
a hora ia adiantada, este lhe disse: “Vamos, irmão, comer alguma coisa para não
nos cansarmos no caminho”. Aquele, porém, respondeu-lhe: “Longe de mim, irmão;
não farei isto, pois sempre tive o costume de comparecer em jejum ante o
venerável Pai Bento”.
Ouvindo
esta resposta, o companheiro calou-se por algum tempo. Depois, porém, de terem
caminhado mais um pouco, insistiu novamente em que comessem. Aquele que
decidira chegar em jejum, recusou. O que convidara, então, tornou a calar-se, e
consentiu em prosseguir um pouco mais com ele, sem comer.
Quando
caminhavam mais adiante e a hora tardia chegou a fatigá-los de tanto andar,
deram com um prado e uma fonte, e tudo mais que podia parecer agradável para
restaurar o corpo. disse, então, o companheiro de viagem: “Aqui temos água,
temos relva e temos um lugar ameno, onde podemos recobrar forças e descansar um
pouco, a fim de terminar em boas condições a nossa marcha”. Com os ouvidos
afagados por essas palavras e os olhos seduzidos pelo lugar, o irmão de
Valentiniano deixou-se persuadir pelo terceiro convite; consentiu finalmente e
comeu. À tardinha chegou ao mosteiro. Levado à presença do venerável Pai Bento,
pediu-lhe que o abençoasse. Mas no mesmo instante o santo homem exprobrou-lhe o
que fizera em viagem, dizendo: “Como é, irmão, que o maligno inimigo, que te
falou pela boca do companheiro, não conseguiu induzir-te nem da primeira vez,
nem da segunda, mas da terceira convenceu-te e alcançou sobre ti a vitória que
planejava?” Reconhecendo então, a culpa do seu fraco espírito, o visitante
prosternou-se aos pés do santo, e tanto mais chorava e se envergonhava, quanto
via que, apesar da distância, a sua falta fora cometida ante os olhos do Pai
Bento”.
Pedro:
“Bem vejo que no coração desse santo homem habitava o
espírito
de Eliseu, que esteve presente ao discípulo distante” (4 Reis)
CAPÍTULO XIV.
BENTO DESCOBRE O DISFARCE DO REI
TÓTILA.
Gregório:
“Convém, Pedro, que por enquanto te mantenhas em silêncio, para que aprendas
coisas ainda maiores”.
No
tempo dos Godos, como seu rei Tótila {/} tivesse ouvido que o santo varão
possuía o espírito de profecia, dirigiu-se ao mosteiro e, parando a certa
distância, mandou anunciar a sua vida. Como logo lhe viesse do mosteiro a
resposta que fosse, Tótila, que sempre tivera um espírito traiçoeiro, cuidou de
explorar se realmente o homem de Deus possuía o espírito de profecia. A um dos
guardas de espada, chamado Rigo, depois de dar os próprios calçados e fazer vestir
as vestes reais, mandou que se apresentasse ao homem de Deus, como se fosse o
rei em pessoa. Para seu séquito destacou os três condes mais chegados ao rei:
Vulterico, Ruderico e Blidino, para que, caminhando a seu lado, fingissem
diante do homem de Deus acompanhar o próprio rei Tótila. Deu-lhe também outros pagens
e guardas, para que, à vista de tal comitiva e das vestes de púrpura, fosse
tido pelo rei.
Quando
Rigo, ornado desses trajes e acompanhado do numeroso cortejo, entrou no
mosteiro, o homem de Deus estava sentado bem longe. Ao vê-lo chegar, e quando
já podia ser ouvido, gritou-lhe estas palavras: “Deixa, filho, deixa tudo que
trazes; não é teu”.
Rigo
caiu por terra no mesmo instante, e encheu-se de pavor por ter procurado
enganar tão grande homem. Também os que vinham com ele arrojaram-se ao chão.
Uma vez erguidos, nem tiveram a ousadia de acercar-se de Bento, mas, voltando
ao seu rei, contaram-lhe, apavorados, quão depressa tinham sido descobertos.”
CAPÍTULO XV.
DUAS PROFECIAS.
“Então
Tótila foi ter pessoalmente com o homem de Deus”. Quando o rei, de longe,
avistou Bento assentado, não ousou aproximar-se, mas prostrou-se por terra. E,
como o homem de Deus lhe dissesse por duas ou três vezes: “Levanta-te”, sem que
o rei se atravesse a fazê-lo, Bento, servo de Jesus Cristo, se dignou de
encaminhar-se pessoalmente até o rei prostrado, levantou-o do chão, censurou-lhe
as más ações e ainda prenunciou em poucas palavras tudo que estava para
suceder-lhe: “Muito mal cometes, muito mal cometeste; já é tempo de pores termo
à iniqüidade. Na verdade, entrarás em Roma, atravessarás o mar, reinarás nove
anos e no décimo morreras”. Ouvido isto, o rei encheu-se de terror e, após
pedir a oração do santo, foi-se embora. A partir desse tempo, começou a ser menos
cruel. Pouco depois entrou em Roma e, em seguida, passou a Sicília. N o décimo
ano do seu reinado, a juízo de Deus onipotente, perdeu o reino ao mesmo tempo
que a vida.
Também
o bispo de Canúsio costumava visitar o servo de Deus, que muito o amava pelo
mérito de sua vida. Um dia, conversando o prelado com Bento sobre a entrada de
Tótila em Roma e a ruína da cidade, disse aquele: “Por esse rei a cidade será
de tal modo destruída que deixará de ser habitada”. Ao que redarguiu o homem de
Deus. “Roma não será destruída pelos gentios, mas, devastada por tempestades,
raios, tormentos e terremotos, definhará por si mesma”. Os mistérios desta
profecia já nos são mais claros do que a luz, pois vemos nesta cidade
desmoronadas as muralhas, derribadas as casas, destruídas as igrejas pelo
furacão, e contemplamos como em fre- qüentes desabamentos vêm abaixa os edifícios,
esfalfados de adiantada velhice. O discípulo Honorato de quem tenho o relato,
não o assevera ter ouvido do próprio santo, mas afirma que pelos outros irmãos
lhe foi contado que Bento o disse.
CAPÍTULO XVI.
O CLÉRIGO LIBERTADO DO DEMÔNIO.
“Pela
mesma época certo clérigo da igreja de Aquino estava sendo atormentado pelo
demônio”. Já Constâncio, bispo dessa igreja, o fizera percorrer muitos
sepulcros de mártires para alcançar a cura. Alas os santos mártires de Deus não
lhe quiseram conceder o dom da saúde, para assim demonstrar quanta graça havia
em Bento.
Foi,
pois, o clérigo levado ao servo de Deus onipotente, Bento, o qual, orando ao
Senhor Jesus Cristo, logo expulsou do possesso o antigo inimigo. Depois de
curá-lo, o santo preceituou-lhe: “Vai, e de agora em diante não comas carne,
nem te atrevas a receber uma ordem sacra; no dia em que ousares profanar uma
ordem sacra, recairás imediatamente sob o poder do demônio”. Foi-se embora o clérigo
curado e, como o castigo recente costuma amedrontar, guardou por algum tempo tudo
que o homem de Deus mandara. Quando, porém, depois de muitos anos, mortos todos
os seus superiores, viu que outros mais jovens lhe passavam à frente nas ordens
sacras, negligenciou, como que esquecido pelo longo tempo, as palavras do homem
de Deus, e apresentou-se à ordenação. No mesmo instante apoderou-se dele o
diabo, que já o deixara, e não cessou de
atormentá-lo até que lhe arrancou a alma.”
Pedro:
“Esse homem de Deus, a meu ver, chegou a penetrar até nos segredos da
Divindade, pois viu claramente que o clérigo estava entregue ao demônio para
que não ousasse apresentar-se à ordenação.” Gregório: “Porque não havia de
conhecer os segredos da Divindade aquele que da Divindade guardou os
mandamentos?
Pois
está escrito: “O que adere ao Senhor, é um só espírito” (1 Cor 6,17).
Pedro:
“Se aquele que adere ao Senhor, se torna um só espírito com o Senhor, porque é
que o mesmo grande pregador diz : “Quem conheceu a mente do Senhor, ou quem foi
seu conselheiro?”(Rom 11,34). Parece muito incongruente que alguém ignore o
pensamento daquele com o qual se tornou um só”.
Gregório:
“Os santos varões, enquanto são com Deus uma só coisa, não ignoram o pensamento
do Senhor. É o mesmo Apóstolo quem diz: “Que homem sabe aquilo que é do homem,
senão o espírito do homem que está nele? “Assim também o que é de Deus, ninguém
conhece senão o Espírito de Deus” (1 Cor 2,11). Mas, para mostrar que sabia as
coisas de Deus, Paulo acrescentou: “Nós não recebemos o espirito deste mundo,
mas o espírito que é de Deus” (ibd. 2,12). E de novo diz: “O que olho não viu,
nem ouvido escutou, nem subiu ao coração do homem, é o que Deus preparou para
os que o amam; a nos, porém, Ele o revelou pelo seu Espírito” (ibd. 2,9-10).
Pedro:
“Se, portanto, ao mesmo Apóstolo foram reveladas pelo
Espírito
divino as coisas de Deus, como, então, nos preveniu com as seguintes palavras
sobre a questão que eu propus: “O abismo das riquezas da sabedoria e da ciência
de Deus”! Como são incompreensíveis os seus juízos e imperscrutáveis os seus caminhos!”
(Rom 11,33).
Eis,
porém, que, ao dizer estas coisas, me aparece outra questão.
Com
efeito, o profeta Davi, falando ao Senhor, diz: “Nos meus lábios pronunciei
todos os juízos da tua boca» (Salm 118,13). E, visto que conhecer é menos que
pronunciar, porque declara Paulo incompreensíveis os juízos de Deus, quando
Davi atesta que não só os conheceu todos, mas até os pronunciou em seus
lábios?”
Gregório:
“Em poucas palavras respondi às duas perguntas, quando há pouco disse que os
santos varões, enquanto são com o Senhor uma só coisa, não ignoram o pensamento
do Senhor. Pois todos os que seguem devotamente o Senhor, por essa devoção
estão com Deus; mas, como ainda se acham sob o peso da carne corruptível, ao
mesmo tempo não estão. Assim, enquanto juntos com Deus, conhecem-lhe os ocultos
juízos; enquanto separados, ignoram-nos.
Como,
de um lado, ainda não penetram perfeitamente os mistérios de Deus, declaram
incompreensíveis os seus juízos; mas como, de outro lado, estão unidos de
espírito com o Senhor e nessa adesão percebem alguma coisa na medida do que
lhes é dado nas palavras sagradas da Escritura ou em secretas revelações,
conhecem isso e o proferem. Ignoram, portanto, os juízos que Deus cala, e
conhecem os que Ele manifesta. Por isto, o profeta Davi, depois de dizer: “Em meus
lábios pronunciei todos os juízos”, logo acrescenta: “da tua boca”, como se
dissesse abertamente: “Pude conhecer e proferir aqueles juízos dos quais soube
que tu os proferiste”.
“Aqueles,
porém, que tu mesmo não disseste, os escondes sem dúvida ao nosso conhecimento”.
Assim é que concordam entre si as duas sentenças, a do Profeta e a do Apóstolo,
segundo as quais são, de um lado, incompreensíveis os juízos de Deus, e são, de
outro lado, proferidos por lábios humanos os juízos anteriormente pronunciados
pela boca do Senhor; pois os juízos de Deus podem ser conhecidos pelos homens
quando revelados por Deus, e não o podem quando não revelados.”
Pedro:
“Vejo que, por ocasião da minha pergunta, se esclareceu o sentido da coisa”. “Mas,
se ainda há mais sobre os milagres deste homem, peço-te que o contes.”
CAPÍTULO XVII.
BENTO PREDIZ A DESTRUIÇÃO DO
PRÓPRIO MOSTEIRO.
Gregório
“Certo nobre chamado Teóprobo fora convertido pelos conselhos do mesmo Pai
Bento, e gozava, por seus merecimentos, de grande confiança e familiaridade
junto ao Santo”. Entrando certa vez na cela deste, encontrou-o a chorar muito
amargamente; ali deteve-se parado por muito tempo; notando, porém, que as
lágrimas não cessavam, e que o homem de Deus, em vez de chorar rezando, como costumava,
chorava de tristeza, perguntou-lhe finalmente qual a causa de tão grande
amargura.
“Todo
este mosteiro que construí e tudo que preparei para os irmãos, respondeu-lhe o
homem de Deus, será entregue aos gentios, a juízo de Deus todo-poderoso; a custo
pude alcançar que deste lugar me fossem poupadas as vidas dos habitantes”. O
que Teóprobo então ouviu em palavras, nós agora estamos vendo com os olhos,
pois sabemos que o mosteiro foi recentemente destruído pelos Lombardos: durante
a noite enquanto dormiam os irmãos, entraram ali, faz pouco tempo, e saquearam
tudo, mas não conseguiram apoderar-se de um só homem. Assim Deus cumpriu o que
prometera ao fiel servo Bento: embora entregasse os bens aos gentios,
protegeria as vidas. “Nisto se vê que Bento teve a sorte de S. Paulo que viu
seu navio alijado de tudo, mas recebeu por consolação a vida de quantos o
acompanhavam (Atos 27).”
CAPÍTULO XVIII.
O BARRIL OCULTO.
“Um
dia o nosso Exilarato, que conheceste já feito monge, foi por seu senhor
encarregado de levar ao homem de Deus no mosteiro dois desses recipientes de
madeira, vulgarmente conhecidos pelo nome de barris, cheios de vinho. O servo
levou um e escondeu o outro no caminho. O homem de Deus, porém, a quem não
ficavam ocultos os fatos distantes, recebeu o barril com palavras de agradecimento,
acrescentando ao moço que se despedia: “Cuidado, filho, não bebas do barril que
escondeste, mas inclina-o com cautela e verás o que há dentro:” Muito
envergonhado, o jovem afastou-se do homem de Deus; e, uma vez de volta,
querendo submeter à prova o que ouvira, virou o barril, e logo saiu de dentro
uma serpente.
Então.
o servo Exilarato, por aquilo que encontrou no vinho, sentiu pavor do mal que
praticara.”
CAPÍTULO XIX.
A ACEITAÇÃO DOS LENÇOS É DESCOBERTA.
“Não
longe do mosteiro havia um povoado onde não pequeno número de homens fora
convertido do culto dos ídolos à fé de Deus, graças às exortações de Bento; ali
viviam também algumas monjas”.
A tal lugar o servo de Deus enviava
freqüentemente alguns dos irmãos para exortarem aquelas almas. Certo dia, como
de costume, mandou um monge, o qual depois da alocução aceitou, a instâncias das
monjas, uns lenços, que escondeu debaixo do hábito. Apenas chegado ao mosteiro,
começou o homem de Deus a repreendê-lo com a mais viva amargura, dizendo: “Como
entrou a iniquidade no teu coração?” O monge ficou atônito, pois, esquecido do
que havia feito, ignorava o motivo da repreensão. Bento então lhe disse: “Não estava
eu presente quando aceitaste os lenços das servas de Deus e os guardaste
debaixo do hábito?”
“Prostrando-se
logo a seus pés, o monge se arrependeu da estulta ação e deitou fora as peças
que escondera.”
CAPÍTULO XX.
O PENSAMENTO ORGULHOSO DE UM MONGE.
“Um
dia, quando o venerável Pai tomava, já à tardinha, a refeição do corpo, um dos
seus monges, filho de certo defensor, estava presente, segurando-lhe o
candeeiro diante da mesa. Enquanto o homem de Deus comia e ele assistia,
fazendo o ofício da candeia, o jovem, tomado pelo espírito de soberba começou a
revolver, calado, em sua mente, e a dizer de si para si, estas palavras: “Quem
é este a quem eu assisto enquanto come, seguro o candeeiro e presto serviço”?
Quem sou seu para que lhe deva servir?” Voltando-se no mesmo instante, o homem
de Deus entrou a repreendê-lo com veemência, dizendo: “Persigna o teu coração,
irmão; que dizes”?
Persigna
o teu coração!” E, tendo chamado sem mais demora os outros irmãos, ordenou-lhes
que lhe tomassem o candeeiro das mãos, e a ele, que deixasse o serviço e fosse
na mesma hora sentar-se sossegado. Perguntaram-lhe, então, os irmãos o que
tivera no coração, e ele por ordem contou de quão grande espírito de soberba se
enchera, e as palavras que em pensamento dizia, calado, contra o homem de Deus.
“Tornou-se
assim bem manifesto a todos que nada podia ficar oculto ao venerável Bento, em
cujos ouvidos haviam ressoado até as palavras de um pensamento mudo.”
CAPÍTULO XXI.
A FARINHA
QUE APARECEU EM ÉPOCA DE FOME.
“Em
outra ocasião, a fome devastava toda a região da Campanha, e grande escassez de
gêneros angustiava a todos”. Já faltava trigo no mosteiro de Bento: quase todos
os pães haviam sido consumidos, de modo que não se achavam mais de cinco para
os irmãos à hora de comer. Vendo-os contristados, o venerável Pai procurou
corrigir com repreensão moderada a sua pusilanimidade, e reanimá-los com uma
promessa: “Porque, dizia, se entristece o vosso espírito pela falta de pão?
Hoje, na verdade, há muito pouco, mas amanhã tê-lo-eis em abundância.” De fato,
no dia seguinte, encontraram duzentos módios de farinha em sacos diante da
porta do mosteiro, sem que alguém até hoje saiba por quem Deus todo-poderoso os
mandou levar. “Vendo isto, os irmãos deram graças ao Senhor, e aprenderam a não
duvidar da abundância, mesmo em tempo de carência.”
Pedro:
“Peço-te que me digas se devemos crer que o espírito de profecia estava sempre
neste servo de Deus, ou se lhe enchia a mente apenas de tempos em tempos.”
Gregório:
“Nem sempre, Pedro, o espírito de profecia ilumina a mente dos profetas, pois,
como está escrito do Espírito Santo que “sopra onde quer” (Jo 3,8), também se
deve entender que sopra quando quer. Vem daí que Natã, interrogado pelo rei se
podia construir o templo, primeiro consentiu e depois proibiu (2 Reis 7). Pela
mesma razão, Eliseu, ao ver a mulher chorando, sem saber a causa da sua dor,
disse ao servo que a queria repelir: “ Deixa-a, porque a sua alma está
amargurada, e o Senhor mo encobriu e não manifestou (4 Reis 4,27).
É
por disposição de grande bondade que Deus onipotente assim ordena as coisas. Pois,
ora dando, ora retirando o espírito de profecia, de um lado eleva às alturas a
mente dos profetas, e, de outro lado, a conserva na humildade, para que os mesmos,
quando recebem esse espírito, saibam o que são por mercê de Deus, e, quando não
o têm, conheçam o que são por si mesmos”.
Pedro:
“Eis que forte argumento clama que as coisas são como
dizes.
Peço-te, porém, que continues a expor tudo que te acode à
memória
sobre o venerável Pai Bento.”
CAPÍTULO XXII.
O PIANO DO MOSTEIRO DE TERRACINA
TRAÇADO POR BENTO EM UMA VISÃO.
Gregório:
“Outra vez, um homem religioso pediu a Bento que mandasse alguns discípulos a
uma propriedade que tinha perto de Terracina, para construir um mosteiro.
Anuindo aos rogos, Bento escolheu alguns irmãos, instituiu-lhes o abade e o que
devia ser o seu prior. À despedida, prometeu-lhes o seguinte: “Ide, em tal dia irei
também eu, e mostrar-vos-ei em que lugar havereis de edificar o oratório, o
refeitório dos irmãos, os aposentos dos hóspedes e tudo que for preciso”.
Recebida a bênção, puseram-se logo a caminho; nos dias seguintes, à espera
ansiosa do dia marcado, prepararam tudo que parecia necessário para receber os
que podiam chegar com o grande Pai.
Eis,
porém, que na noite em que começava a raiar o dia prometido, o homem de Deus
apareceu em sonhos ao monge que ele constituíra abade, e ao prior deste, e lhes
foi designando minuciosamente cada um dos lugares onde deviam edificar alguma
coisa. Quando despertaram do sono, contaram um ao outro o que tinham visto; mas,
por não darem pleno crédito à visão, aguardaram o homem de Deus na prometida
visita. Este, porém, não chegou no dia determinado, pelo que foram ter com ele,
muito magoados, e lhe disseram: “ Esperamos, Pai, que fosses como prometeras, e
nos mostrasses onde devíamos edificar; mas não foste”.
Ao
que lhes disse: “Porque, irmãos, porque falais assim? Acaso não fui, conforme
prometi?” E quando lhe retorquiram: “Quando foste?”, respondeu: “Não vos
apareci a um e outro quando dormíeis, e não vos mostrei então cada local do
mosteiro? Ide, e, como ouvistes na visão, construí todas as dependências do
mosteiro”. “Ao ouvirem estas palavras, ficaram profundamente admirados, e
voltaram ao referido terreno, onde construíram todos os compartimentos do
mosteiro como lhes fora revelado.”
Pedro:
“Gostaria de saber de que modo pode Bento ausentar-se para longe e dar aos
irmãos que dormiam, instruções que eles em sonho ouviram e compreenderam.”
Gregório:
“Pedro, porque é que perscrutas o modo como se deram os fatos, e te pões a
duvidar dos mesmos? É coisa evidente que o espírito é de natureza mais ágil que
o corpo. Ora, sabemos com certeza, pelo testemunho da Escritura, que o profeta,
levantado aos ares na Judéia, foi de repente baixado na Caldéia com o seu
almoço, que serviu a alimentar outro profeta, e no mesmo instante voltou à Judéia
(Dan 14). Se, pois, Habacuc pôde num momento ir corporalmente tão longe e
entregar um almoço, que é de admirar se o Pai Bento obteve afastar-se em
espírito e anunciar aos irmãos adormecidos o necessário, de modo que, assim
como o profeta se locomoveu corporalmente para alimentar o corpo, assim Bento
se transportou em espírito para instituir a vida espiritual?”
Pedro:
“A força da tua palavra, confesso, dissipou em mim as dúvidas do espírito.
Agora queria saber que efeito tinham as palavras desse homem no trato da vida
quotidiana.”
CAPÍTULO XXIII.
AS MONJAS MORTAS RESTITUÍDAS À COMUNHÃO DA IGREJA.
Gregório:
“Dificilmente, Pedro, era a sua palavra, mesmo no trato quotidiano, desprovida
de eficácia; pois, tendo alçado aos céus o coração, não lhe podiam as palavras
baixar vazias dos lábios”. Se, pois, alguma vez dizia algo, não já decidindo,
mas somente ameaçando, sua palavra tinha tanta eficácia como se não a tivesse dito
apenas duvidosa e condicionalmente, mas já em sentença irrevogável.
Assim
é que, não longe do mosteiro de Bento, viviam num sítio próprio duas monjas,
senhoras de nobre linhagem a quem certo homem religioso prestava serviço nas
necessidades da vida exterior. Em alguns, porém, a nobreza da raça produz a
vileza do espírito, de modo que essas pessoas, recordando que foram um pouco
mais do que outras, são menos dispostas a desprezar-se neste mundo; assim eram
as duas monjas, as quais não tinham reprimido perfeitamente a língua sob o
freio do hábito, e freqüentemente provocavam à ira, com palavras imprudentes, o
homem que lhes prestava serviço nas indigências exteriores.
Este,
depois de tolerar por muito tempo tais coisas, dirigiu-se finalmente ao homem
de Deus e contou-lhe quantas afrontas sofria. Bento, tendo ouvido como
procediam as monjas, logo mandou dizer-lhes: “Corrigi vossas línguas porque,
senão vos emendardes, eu vos excomungarei”. Por conseguinte, não proferiu a
sentença de excomunhão, mas apenas ameaçou.
As
monjas, porém, sem nada mudar dos antigos costumes, morreram dentro de poucos
dias e foram sepultadas na igreja. Ora, quando ali se celebrava a solenidade da
Missa, e o diácono clamava como de costume: “Se há alguém excomungado,
retire-se do lugar, a ama que as criara e costumava oferecer ao Senhor a
oblação por elas, via-as erguerem-se da sepultura e saírem da igreja”.
Havendo
observado muitas vezes que à voz do diácono elas saiam e não podiam ficar no
templo, lembrou-se do que o homem de Deus lhes mandara dizer quando ainda
viviam, isto é, que as privaria da comunhão eclesiástica, se não emendassem os
costumes e palavras.
Com
grande dor, então, foi referido o caso ao servo de Deus, que na mesma hora deu
com sua própria mão uma oblação, dizendo: “Ide, e fazei que esta oferenda seja
apresentada ao Senhor em favor delas, e a seguir já não estarão excomungadas”.
De fato, a oferta foi imolada em sufrágio das duas defuntas, e, quando o
diácono clamou, segundo o costume, que saíssem os excomungados, não foram mais
vistas sair da igreja.
“Com
isto ficou indubitavelmente claro que as ditas monjas, não mais saindo com
aqueles que estavam privados da comunhão eclesiástica, a tinham recuperado do
Senhor por intermédio do seu servo.”
Pedro:
“É muito para admirar que esse homem, embora venerável e muito santo, mas ainda
vivendo nesta carne corruptível, tenha podido libertar almas já colocadas
diante do invisível juízo.”
Gregório:
“Acaso, Pedro, não estava ainda nesta carne aquele que ouviu: “Tudo que ligares
sobre a terra, será ligado no céu, e tudo que desligares sobre a terra, será
desligado no céu” (Mt 16,19) ? O poder dos Apóstolos de ligar e desligar,
obtêm-no hoje aqueles que, cheios de fé e santos costumes, ocupam um posto de
governo sagrado. Contudo, para que o homem, feito do pó da terra, goze de tamanho
poder, veio do céu à terra o Criador do céu e da terra; e, para que a carne
julgue também os espíritos, Deus feito carne pelos homens deu-lhe o respectivo
poder em sua liberalidade, pois a nossa fraqueza se elevou acima de si própria
pelo fato mesmo de se ter enfraquecido sob si mesma a força de Deus.”
Pedro:
“Em verdade, com o poder dos milagres concorda a eficácia das palavras do
santo.”
CAPÍTULO XXIV.
O MONGE SEPULTADO QUE A TERRA REJEITOU.
Gregório:
“Certa vez um jovem monge, que amava os pais mais do que devia, tendo saído do
mosteiro sem bênção, para ir à casa dos pais, morreu no mesmo dia em que aí
chegou”. Sepultado, seu corpo, no dia seguinte apareceu fora da sepultura.
Trataram de enterrá-lo novamente, mas no dia seguinte encontraram o corpo mais
uma vez de fora, insepulto como na véspera. Correndo, então, sem demora, aos
pés do Pai Bento, pediram com muitas lágrimas que se dignasse de conceder ao
filho a sua graça. O homem de Deus deu-lhes imediatamente com a própria mão a
comunhão do corpo do Senhor, dizendo: “Ide, com grande reverência pondo-lhe
sobre o peito este corpo do Senhor, e colocai-o assim na sepultura”. Feito
isto, a terra guardou o corpo e não mais o rejeitou. Avalias, Pedro, quanto merecimento
tinha esse homem junto ao Senhor Jesus Cristo, para que a própria terra
lançasse fora os despojos daquele que não possuía o favor de Bento.”
Pedro:
“Avalio bem, e estou muito admirado.”
CAPÍTULO XXV.
O MONGE QUE
ENCONTROU UM DRAGÃO NO CAMINHO.
Gregório:
“Um dos monges de Bento se rendera à inconstância, e não queria mais ficar no
mosteiro. Apesar de assiduamente
repreendido
e admoestado pelo homem de Deus, de modo nenhum consentia em permanecer na
comunidade, e ainda insistia com importunas súplicas para que fosse despedido.
Certo dia, então, o venerável Pai, já entediado pela importunação, ordenou-lhe
irado que se fosse embora. Logo que saiu, porém, o monge encontrou na estrada
um dragão à sua espreita, de güela aberta. Como o monstro o quisesse devorar,
começou a gritar, todo trêmulo e alvoroçado: “Socorro! Socorro! Pois este
dragão me quer devorar”. Acorreram os irmãos, os quais não viram dragão algum,
mas reconduziram ao
mosteiro
o monge todo trêmulo e agitado. “Este logo prometeu nunca mais abandonar o
mosteiro, e desde essa hora permaneceu fiel à promessa, porquanto pelas orações
do santo varão pudera ver diante de si o dragão que ele antes seguia sem ver.”
CAPÍTULO XXVI.
O MOÇO CURADO DA LEPRA.
“Também
não quero passar em silêncio o que ouvi do ilustre varão Antônio”. Este contava
que um servo de seu pai fora atacado de lepra, a ponto de já se lhe entumecer a
pele, caírem os pelos, e não poder ele esconder o pus cada vez mais abundante. “Mandado
ao homem de Deus pelo pai de Antônio, o enfermo foi com presteza restituída à
saúde anterior.”
CAPÍTULO XXVII.
O DINHEIRO ENTREGUE POR MILAGRE AODEVEDOR.
“Tampouco
calarei aquilo que o discípulo de Bento chamado Peregrino costumava narrar”.
Uma
vez, certo homem fiel, impelido pelo aperto de uma dívida, acreditou ser seu
único remédio ir ter com o homem de Deus e expor-lhe a urgente necessidade.
Foi, pois, ao mosteiro, onde encontrou o servo de Deus onipotente, e contou-lhe
a grave aflição que sofria por parte de um credor a quem devia doze soldos.
Respondeu-lhe
o venerável Pai que não possuía os doze soldos, mas, para não deixar de
consolar com uma branda palavra a pobreza do homem, acrescentou: “Vai, e volta
daqui a dois dias, pois hoje não tenho o que te deveria dar”. Nesses dois dias,
conforme o seu costume, ficou entregue à oração. Quando no terceiro dia voltou
o devedor aflito, apareceram de repente treze soldos sobre uma arca do
mosteiro, que estava cheia de trigo. O homem de Deus mandou apanhá-los e
entregá-los ao pedinte angustiado, dizendo-lhe que pagasse doze e guardasse um
para os próprios gastos.
Eis
que agora volto a contar o que ouvi dos discípulos referidos no início deste
livro.
Certo
homem vivia sofrendo da gravíssima inveja de um inimigo, cujo ódio o impeliu
mesmo a pôr veneno ocultamente na bebida daquele. Não pôde o veneno tirar a
vida, mas a pele do homem perseguido mudou de cor, espalhando-se pelo corpo
umas manchas que pareciam de lepra. O doente, porém, levado à presença do homem
de Deus, depressa recuperou a saúde, pois, logo que este o tocou, lhe afugentou
as manchas da pele.”
CAPÍTULO XXVIII.
A GARRAFA QUE NÃO SE QUEBROU.
“Na
ocasião em que a falta de alimentos afligia tão gravemente Campanha, o homem de
Deus distribuíra tudo que havia no mosteiro, a diversos indigentes, a ponto de
quase nada mais restar na despensa, fora um pouco de azeite numa garrafa de
vidro”.
Apareceu,
então, certo subdiácono de nome Agapito, pedindo com muita instância que lhe
dessem um pouco de azeite. O homem de Deus, que tinha resolvido dar tudo na
terra para que tudo lhe fosse guardado no céu, mandou que entregassem ao
subdiácono o pouco de azeite que restava. Todavia, o monge encarregado da
despensa, apesar de ter ouvido a ordem, retardou-lhe a execução.
Um
pouco mais tarde, perguntando-lhe Bento se fora dado o que mandara, respondeu
que não, porque, se o fizesse, nada sobraria para os irmãos. Indignado com
isto, Bento ordenou a outros que atirassem pela janela a garrafa com o resto de
azeite, para que nada ficasse no mosteiro por desobediência. Assim foi feito.
Ora, sob a janela abria-se um grande precipício eriçado de pontas de rochedo. A
garrafa arremessada foi dar naturalmente nas pedras, mas ficou incólume como se
não tivesse sido jogada, de modo que nem ela se quebrou nem o óleo se derramou.
À vista disto, o homem de Deus mandou que a
buscassem e entregassem, íntegra como estava, ao subdiácono. “Reunidos depois
os irmãos, repreendeu em presença de todo o monge desobediente pela sua falta
de fé e soberba.”
CAPÍTULO XXIX.
O TONEL QUE APARECEU CHEIO DE AZEITE.
“Depois
desta repreensão, Bento entregou-se à oração com os irmãos”. No recinto em que
rezavam, havia um tonel de óleo, vazio e tapado. Ora, enquanto o santo homem
persistia em oração, a tampa do tonel começou a erguer-se com o azeite que
dentro crescia.
Deslocada
e suspensa a tampa, o azeite que subia, passou as bordas do tonel e acabou
alagando o pavimento do lugar em que se achava. Ao notar isto, o servo de Deus
Bento logo terminou a oração, e o azeite cessou de escorrer pelo chão. Então,
mais uma vez admoestou o irmão pusilânime e desobediente a ter confiança e humildade.
O monge, arguido, corou de vergonha, porquanto o venerável Pai acabava de
comprovar com um milagre o mesmo poder de Deus onipotente que em sua
admoestação lhe recordara.
A partir
de então, não havia mais quem pudesse duvidar de suas promessas, já que no
mesmo instante tinha restituído, por uma garrafa quase vazia, um tonel cheio de
azeite.”
CAPÍTULO XXX.
O MONGE
LIBERTADO DO DEMÔNIO.
Um
dia, quando se encaminhava para a capela de S. João, sita no próprio cume da
montanha, encontrou-se Bento com o antigo inimigo que, sob a figura de um
veterinário, ia levando um vaso de chifre e três cordas. Tendo-lhe Bento
perguntado: “Aonde vais?”, respondeu: “Eis que vou ter com os irmãos para
dar-lhes uma bebida.” O venerável Pai, então, continuou seu caminho para rezar e,
logo que terminou a oração, voltou às pressas. Neste entrementes o espírito
maligno, encontrando a tirar água um velho monge, neste entrou sem demora, e,
prostrando-o por terra, o atormentou com a maior raiva. “Quando o homem de
Deus, de volta da oração, viu o monge assim cruelmente maltratado, deu-lhe uma
bofetada apenas e com isco logo expulsou o espírito mau, que não ousou voltar a
agredir o velho.”
Pedro:
“Gostaria de saber se, tão grandes milagres, Bento os obtinha sempre em virtude
da oração, ou se, às vezes, também os realizava por um mero ato de vontade.”
Gregório:
“Os que de mente devota estão unidos a Deus, costumam fazer milagres, quando a
necessidade o exige, de um e outro modo, isto é, ora pela prece, ora pelo
próprio poder. Pais que S. João diz: “A todos os que o receberam, deu-lhes o
poder de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1,12), que é de admirar se os que são
filhos de Deus por poder operam também prodígios por poder? Que de duas maneiras
faziam milagres, atesta-o Pedro, o qual, pela oração, ressuscitou Tabita
defunta (Atos 9), ao passo que, com uma repreensão, entregou à morte Ananias e
Safira, que mentiam (Atos 2); não se lê que tenha orado para que estes
morressem, mas somente que repreendeu o crime que haviam perpetrado. É certo, portanto,
que os filhos de Deus realizam prodígios ora por poder, ora pela oração, visto
que a estes Pedro, increpando, tirou a vida, enquanto àquela, orando, a
restituiu.
“Narrarei
agora dois feitos do fiel servo de Deus, Bento, nos quais se vê claramente que
um, ele o pôde operar pelo poder recebido de Deus, e o outro, pela oração.”
CAPÍTULO XXXI.
O CAMPONÊS SOLTO PELO SIMPLES OLHAR DE BENTO.
“No
tempo de Tótila, rei dos Godos, um destes, chamado Zala, partidário da heresia
ariana, a tal ponto de crueldade ardia contra os que eram fiéis à Igreja
católica, que não houve um só clérigo ou monge que, tendo-o encontrado,
escapasse vivo das suas mãos.
Inflamado,
certo dia, pela avareza e a avidez da rapina, pôs-se a afligir com cruéis
tormentos um camponês; ora, quando lhe rasgava as carnes em diversos suplícios,
este, vencido pelos sofrimentos, declarou-lhe que havia depositado todos os
bens em mãos do servo de Deus. Bento: o pobre camponês esperava que,
acreditando o carrasco nas suas palavras, suspendesse a crueldade, e a vítima pudesse
ganhar no intervalo algumas horas de vida.
Zala,
com efeito, cessou de maltratar o camponês, mas, atando-lhe os braços com
fortes correias, obrigou-o a caminhar diante do cavalo para mostrar-lhe quem
era esse Bento que recebera os seus haveres. Indo à frente, de braços
amarrados, o camponês conduziu Zala ao mosteiro do santo varão, que encontraram
sozinho a ler, sentado à porta do mosteiro. Disse, então, o camponês a Zala,
que cheio de raiva o seguia: “ Eis aí o Pai Bento, de quem te falei”.
Na
excitação em que ia, com toda a fúria do seu perverso coração, Zala pôs os
olhos no homem de Deus e, pensando poder agir com o terror costumeiro, começou
a gritar-lhe: “Levanta-te, levanta-te, e devolve os bens que recebeste deste
camponês!” A sua voz, o homem de Deus ergueu os olhos da leitura e, tendo
encarado Zala, olhou em seguida para o camponês, que continuava amarrado.
Apenas,
porém, posou os olhos nos braços deste, as correias que os ligavam, começaram a
desamarrar-se de modo maravilhoso e com tanta rapidez que teria sido impossível
ao mais presto dos homens desata-las tão depressa. Quando aquele que viera manietado,
de repente apareceu solto, Zala, tremendo diante de tanto poder, caiu no chão,
e, inclinando aos pés de Bento a cabeça cruel, recomendou-se às suas orações.
Nem por isto o santo homem se levantou da leitura, mas, tendo chamado os irmãos,
mandou que o introduzissem no mosteiro para dar-lhe um pouco de pão bento.
Quando
Zala voltou à presença do santo, este admoestou-o a suspender tanta crueldade e
insensatez; depois do que, o tirano e foi, comovido, e nada mais ousou reclamar
do camponês que o
homem
de Deus, não pelo tato, mas apenas pelo olhar, soltara.
Eis
aí, Pedro, o que eu disse: os que servem familiarmente a Deus todo-poderoso,
podem de vez em quando operar milagres também por próprio poder. Esse que,
sentado, reprimiu a ferocidade do terrível godo e com o simples olhar desatou correias
e nós que prendiam o inocente, está a indicar, pela rapidez mesma do milagre, que
recebera o poder de fazer o que fez.
“Agora
ainda descreverei quão grande milagre Bento, orando, pôde obter.”
CAPÍTULO XXXII.
O MORTO
RESSUSCITADO.
“Certo
dia havia Bento saído com os irmãos para os trabalhos do campo, quando um
camponês, trazendo nos braços o corpo de um filho morto, veio ao mosteiro, todo
aflito pela perda e perguntou pelo Pai Bento. Quando lhe disseram que o Pai
estava no campo com os irmãos, sem delongas depôs o corpo em frente à porta do
mosteiro e, transtornado pela dor, lançou-se a correr em busca do venerável Pai.
Naquela
hora o homem de Deus já voltava do campo com os irmãos. Apenas o camponês o
viu, começou a gritar: “Devolve meu filho, devolve meu filho!” O homem de Deus
parou ao ouvir estes clamores, e disse: “Acaso te tirei o filho?” - “Ele
morreu, vem, ressuscita-o”, respondeu o camponês. Ouvindo isto, o servo de Deus
ficou muito triste e disse: “Retirai-vos, irmãos, retirai-vos; tal poder não
compete a nós, mas aos santos Apóstolos. Porque queres impor-nos um peso que
não podemos suportar?” O infeliz, porém, impelido por uma dor profunda,
persistia no pedido, jurando que não se retiraria sem que Bento lhe
ressuscitasse o filho. “Onde está?”, interrogou então o servo de Deus. Ao que
aquele respondeu: “O corpo jaz à porta do mosteiro”. Quando ali chegou o homem
de Deus com os irmãos, dobrou os joelhos e debruçou-se sobre o corpinho da
criança.
Erguendo-se
depois, estendeu para o céu as mãos, e disse: “Senhor, não consideres os meus
pecados, mas a fé deste homem que roga lhe seja ressuscitado o filho; e
restitui a este corpinho a alma que tiraste”. Mal terminara as palavras da
oração, quando o corpinho inteiro da criança estremeceu por aí voltar a alma, e
todos os presentes viram que no maravilhoso abalo o corpinho palpitava a
tremer. Bento, então, agarrou-lhe as mãos, e devolveu-o vivo e incólume ao pai.
É
evidente, Pedro, que não estava em seu poder tal milagre, pois
que,
para conseguir fazê-lo, teve de prostrar-se e orar.”
Pedro:
“É certo que as coisas são como dizes, pois provas com fatos as sentenças que
propões”. “Peço-te agora que dês a conhecer se os santos homens podem tudo que
querem, e obtêm tudo que desejam.”
CAPÍTULO XXXIII.
O MILAGRE DE ESCOLÁSTICA, IRMÃ DE BENTO.
Gregório:
“Pedro, quem será nesta vida mais sublime do que Paulo, o qual três vezes rogou
ao Senhor que o livrasse do aguilhão da carne, e, contudo, não pôde obter o que
queria (2 Cor 12,7-9) ; devo, por isto, contar-te que houve coisa que o
venerável Pai Bento não pôde alcançar.
A
irmã de Bento, de nome Escolástica, consagrada desde a infância a Deus
onipotente, tinha o costume de visitar o irmão uma vez por ano; o homem de Deus
descia a recebê-la numa propriedade do mosteiro, não longe da portaria. Foi
ela, pois, um dia, como de costume, e seu venerável irmão, acompanhado de
alguns discípulos, desceu a vê-la.
Passaram
o dia todo em louvores de Deus e em santos colóquios, e, ao caírem as trevas da
noite, juntos tomaram alimento. Quando ainda estavam à mesa, enquanto o tempo
entre santas conversações avançava a uma hora tardia, a monja irmã de Bento
rogou-lhe o seguinte: “Peço-te, irmão, que não me deixes esta noite, para
podermos falar até a manhã das alegrias da vida celeste.”
Ao
que ele respondeu: “Que é que dizes, irmã? Ficar fora do mosteiro, de modo
nenhum o posso!” Até esse momento a serenidade do céu era tal que nenhuma nuvem
aparecia nos ares; quando, porém, a monja ouviu a recusa do irmão, cruzou as
mãos sobre a mesa e nelas declinou a cabeça para rogar a Deus todo-Poderoso.
Ora,
logo que levantou da mesa a cabeça, tão violentos relâmpagos e trovões e tão
copiosa chuva explodira que nem o venerável Bento nem os irmãos que com ele se
achavam, puderam mover o pé do limiar do recinto em que estavam. A monja, com efeito,
ao reclinar a cabeça nas mãos, derramara sobre a mesa rios de lágrimas,
mediante as quais conseguiu transformar em tempestade a serenidade do tempo. E
não tardou o aguaceiro a seguir-se à oração; mas, ao contrário, tão perfeita
foi a simultaneidade da prece e da tempestade, que Escolástica ergueu a cabeça
já ao irromper da trovoada, de modo que num só instante se deram o levantar da
cabeça e o desabar da chuva.
Vendo, então o homem de Deus que não podia
voltar ao mosteiro no meio dos raios e trovões e da grande enxurrada, começou a
lastimar-se entristecido, dizendo: “Que Deus todo-poderoso te perdoe, irmã”!
Que
fizeste?” E ela: “Eis que te roguei, e não me quiseste ouvir;
roguei,
então, ao meu Senhor e Ele ouviu-me. “Agora, pois, se podes, sai, deixa-me e
volta para o mosteiro”. De fato, não podendo sair, aquele que espontaneamente
não quis ficar, teve de permanecer contra a vontade. Assim aconteceu que
passaram toda a noite em vigília, e se saciaram mutuamente em santas conversas
sobre a vida espiritual.
Por
isto disse eu que Bento quis alguma coisa, mas não a pôde; pois, se
consideramos a mente do venerável homem, é fora de dúvida que ele queria
continuasse o bom tempo que fazia quando desceu, mas, contra seu desejo, o que
encontrou foi esse milagre de Deus onipotente consoante a um coração de mulher.
E não é de admirar que a mulher, cujo desejo era ver o irmão por mais tempo, mais
tenha podido do que este, pois, já que segundo a palavra de João “Deus é
caridade” (1 Jo 4,16), é justo fizer-se que mais pôde aquela que mais amou. Pedro:
“Confesso que me agrada muito o que dizes.”
CAPÍTULO XXXIV
BENTO VÊ A
ALMA DA IRMÃ SAIR DO CORPO.
Gregório:
“No dia seguinte a venerável mulher voltou ao próprio mosteiro, e o homem de
Deus ao seu”. Eis, porém, que três dias depois, Bento na cela, elevando os
olhos às alturas, viu a alma da irmã, desprendida do corpo, a penetrar sob a
forma de pomba nas profundezas do céu.
Enchendo-se,
então, de alegria pela grande glória da irmã, com hinos e louvores rendeu
graças a Deus todo-poderoso, e anunciou aos irmãos a morte da mesma. Mandou-os
também sem demora a buscar para o mosteiro o corpo, a fim de que o enterrassem
na sepultura que tinha preparado para si. “Assim aconteceu que daqueles cujo
espírito sempre fora um só em Deus, também os corpos não foram separados pela
sepultura.”
CAPÍTULO XXXV.
O MUNDO DIANTE DOS OLHOS DE BENTO E A ALMA DE
GERMANO.
“De
outra vez, o diácono Servando, abade do mosteiro outrora construído em terras
da Campanha pelo patrício Libério, veio de visita a Bento, como costumava”.
Como era também ele homem cheio da erudição da graça celeste, frequentava o
mosteiro de Bento, para que se comunicassem mutuamente doces palavras de vida,
e ao menos em suspiros provassem o suave alimento da pátria celeste, já que
ainda não o podiam em gozo perfeito.
Chegada
a hora do descanso noturno, o venerável Bento acomodou-se no alto da torre,
enquanto o diácono Servando ficou em baixo; rima escada de acesso fazia
comunicar os dois aposentos.
Em frente
dessa mesma torre existia Lima grande morada, onde descansavam os discípulos de
um e outro.
Enquanto
os monges dormiam, o homem de Deus, Bento, antecipava em vigília a hora da
oração noturna. Ora, eis que, estando à janela em prece a Deus onipotente, de
súbito, na calada da noite, olhou para cima e viu uma luz que se difundia do
alto e dissipava as trevas da noite, brilhando com tal esplendor que, apesar de
raiar nas trevas, superava o dia em claridade. Nesta visão, seguiu-se uma coisa
admirável, pois, como depois ele mesmo contou também o mundo inteiro lhe
apareceu ante os olhos, como que concentrado num só raio de sol. Ainda enquanto
o venerável Pai fixava atentamente a vista no esplendor da cintilante luz, viu
a alma de Germano, bispo de Cápua, levada ao céu pelos anjos numa esfera de
foto.
Querendo,
então, que alguém lhe servisse de testemunha de tão grande visão, chamou
repetidamente, duas ou três vezes, em alta voz, o diácono Servando pelo próprio
nome Este, perturbado pelo insólito clamor de tão grande homem, subiu, olhou
para o alto e ainda viu um rastro exíguo de luz.
A
Servando, estupefato por tão grande maravilha, o homem de Deus narrou por ordem
tudo que acontecera, e imediatamente encarregou o virtuoso Teóprobo, de
Cassino, que na mesma noite mandasse alguém a Cápua para saber o que havia com
o bispo Germano, e o comunicasse a Bento.
“De
fato, aconteceu que o enviado encontrou já defunto o reverendíssimo bispo
Germano; o mesmo, indagando minuciosamente, apurou que ele morrera no mesmo
instante em que o homem de Deus tomou conhecimento de sua ascensão.”
Pedro:
“Coisa, de fato, muito admirável e estupenda”! O que disseste, porém, - a
saber, que o mundo inteiro, como que concentrado num único raio de sol, foi
trazido ante os olhos de Bento, já que nunca o experimentei, também não posso
conjeturar de que modo possa acontecer que o universo todo seja visto por um só
homem.”
Gregório:
“Tem por certo, Pedro, o que vou dizer: para a alma que vê o Criador, toda
criatura é pequena”. Por pouco que ela chegue a ver a luz do Criador, exíguo se
lhe torna tudo que é criado, porque, à luz dessa visão profunda, o íntimo da
mente se dilata e de tal modo se expande em Deus, que fica acima do mundo. A
própria alma do vidente coloca-se, então, acima de si mesma. Ao ser raptada
acima de si na luz de Deus, amplia-se interiormente, e, quando, nesse estado de
exaltação, olha abaixo de si, compreende quão pequeno é tudo aquilo que, no seu
estado de humilhação, não podia compreender.
O
homem de Deus, que, contemplando o globo de fogo, também via os anjos de volta
ao céu, certamente não podia ver essas coisas senão na luz de Deus. Que é,
pois, de admirar, se viu o mundo concentrado diante de si, aquele que, elevado
na luz do espírito, esteve fora do mundo? Se, porém, se diz que o mundo todo foi
concentrado diante dos seus olhos, não é que o céu e a terra tenham sido
contraídos, mas o espírito do vidente é que foi dilatado, e, raptado em Deus,
pôde sem dificuldade ver tudo que está abaixo de Deus. Portanto, enquanto
aquela luz lhe resplandecia aos olhos de fora, houve uma luz interior na mente,
que arroubando ao alto o espírito do vidente, lhe mostrou quão estreito é tudo
que se acha aqui em baixo.”
Pedro:
“Vejo que me foi útil não ter entendido o que disseras, já que, por minha
rudeza, tanto se desenvolveu a explicação”. “Mas agora que expuseste essas
coisas com clareza, peço que voltes ao curso da narração.”
CAPÍTULO XXXVI.
BENTO ESCREVEU A REGRA DOS MONGES.
Gregório:
“Apraz-me, Pedro, narrar ainda muitas coisas deste venerável Pai; algumas,
porém, de propósito as omito, pois devo apressar-me a relatar os efeitos de
outros. Todavia, uma coisa não quero que ignores, isto é, que o homem de Deus,
entre tantas coisas maravilhosas com que luziu no mundo, também não pouco
brilhou pelo verbo da doutrina. Escreveu, com efeito, uma Regra de Monges, notável
pelo espírito de discernimento e clara pela linguagem.
Se, pois,
alguém quiser conhecer mais exatamente os costumes e a vida do santo Pai, poderá
encontrar nos preceitos dessa Regra todas as ações que ele praticou como
Mestre, pois o santo varão de modo nenhum pôde ensinar outra coisa que o que
ele mesmo viveu.”
CAPÍTULO XXXVII.
BENTO ANUNCIA AOS IRMÃOS A SUA MORTE.
“No
mesmo ano em que devia partir desta vida, anunciou o dia de sua santíssima
morte a alguns discípulos que com ele viviam e a outros que moravam longe”. Aos
presentes acrescentou que guardassem em silêncio o que ouviram, e aos ausentes
ainda deu, a saber o sinal que se produziria para eles quando a alma se lhe apartasse
do corpo.
Seis
dias antes da sua morte, mandou abrir a sepultura. Pouco depois atacado de
febres, começou a ser atormentado pela violenta temperatura. Como dia a dia se
agravasse o mal, no sexto dia fez-se levar ao oratório pelos discípulos; aí
muniu-se para a partida, com a comunhão do corpo e do sangue do Senhor; a
seguir, apoiando nos braços dos discípulos os membros enfraquecidos, ficou de
pé com as mãos elevadas para o céu, e entre palavras de oração exalou o último
suspiro.
No
mesmo dia, foi comunicada a dois irmãos, dos quais um estava no mosteiro e o
outro distante, igual visão: ambos viram um caminho forrado de tapeçarias e
coruscante inumeráveis luzes, estendido desde a cela de Bento até o céu, em
direção do oriente; no alto, estava um homem de venerando e resplandecente
aspecto, que lhes perguntou de quem era a estrada que viam; eles confessaram que
ignoravam; então lhes disse: “Este é o caminho pelo qual Bento, o amado do
Senhor, subiu ao céu.”
Assim
aconteceu que, como os discípulos presentes viram a morte do santo varão,
também os ausentes dela tiveram conhecimento, pelo sinal que lhes fora prenunciado.
Foi sepultado na capela de S. João Batista, que ele próprio construíra depois
de ter posto abaixo o altar de Apolo. “E na mesma gruta de Subloca em que
primeiro habitou, ainda hoje, quando a fé dos suplicantes o exige, ele refulge
em milagres.”
CAPÍTULO XXXVIII.
A MULHER LOUCA CURADA NA GRUTA DO SANTO.
“Deu-se
recentemente o fato que vou narrar”.
Certa
mulher mentecapta, tendo perdido completamente o juízo, vagava dia e noite por
montes e vales, florestas e planícies, só parando para repousar onde o cansaço
a tal obrigava.
Um
dia, depois de muito errar pelas solidões, deu com a gruta do santo varão
Bento, onde entrou embora não a conhecesse, e aí se deixou ficar. “Ora, na
manhã seguinte, dali saiu tão sã de juízo como se nunca o tivesse perdido, e
conservou pelo resto da vida a saúde que recebera.”
Pedro:
“Que dizer do que frequentemente experimentamos no patrocínio dos mártires, que
não prestaras tantos benefícios por meio de seus corpos quantos por outras
relíquias, fazendo mesmo maiores prodígios nos lugares onde não estão
sepultados?”
Gregório:
“Pedro, está fora de dúvida que, onde jazem os seus corpos, os santos mártires
podem fazer muitos milagres, como, aliás, os fazem e manifestam inúmeras vezes
aos que pedem com
pura
intenção. Todavia, já que os fracos podem duvidar de que eles estejam presentes
para atender nos lugares onde não se acham os seus corpos, é preciso que
realizem maiores prodígios nos lugares em que a alma débil pode duvidar da sua
presença.
Para
aqueles, porém, cuja mente está fixa em Deus, tanto maior é o mérito da fé quanto
mais convictos estão de que os mártires, apesar de não jazerem ali nos seus
corpos, nem por isto os deixam de escutar. Por este motivo a própria Verdade, a
fim de aumentar a fé dos discípulos, disse: “Se eu não for embora, o Consolador
não virá a vós” (Jo 16,7). Ora, como é certo que o Espírito Consolador sempre procede
do Pai e do Filho, porque é que o Filho diz que se deve retirar para que venha
aquele que do Filho nunca se separa?
O motivo
é que os discípulos, vendo o Senhor na carne, tinham sede de O ver para sempre
com os olhos do corpo; por isto o Senhor lhes disse com razão: “Se eu não me
for, o Paráclito não virá”; como se dissesse claramente: Se não retiro o corpo,
não mostro o que é o amor do Espírito, e se não deixardes de me ver
corporalmente, jamais aprendereis a amar-me espiritualmente.”
Pedro:
“Satisfaz-me o que dizes.”
Gregório:
“Temos agora de interromper por um pouco a conversa, para que, já que
pretendemos narrar milagres de outros, no entretempo reparemos as forças pelo
silêncio.”
SEGUNDO LIVRO DOS DIÁLOGOS: VIDA DE SÃO BENTO S. Gregório Magno
SEGUNDO LIVRO DOS DIÁLOGOS: VIDA DE SÃO BENTO
Nursia 480 - Monte Cassino 543
A MEDALHA DE SÃO BENTO
A
medalha de São Bento é um forte símbolo de fé e proteção. Os seus devotos
acreditam que quem tem esta medalha de São Bento está protegido contra todo o
tipo de inimigos, porque São Bento possuíu, mesmo em vida, a notável capacidade
de escapar a todas as ciladas do demónio, protagonizando grandes milagres.
Conta-se que São Bento
fazia o sinal da Cruz sempre que precisava de se defender dos perigos e das
tentações do demónio e, por esse motivo, é muitas vezes representado com uma
cruz na mão. São Bento é o padroeiro dos exorcistas.
A poderosa Medalha de São
Bento é um dos mais fortes escudos de proteção contra todo o tipo de inimigos,
pois ela é um símbolo da fé e da força dos milagres. Ela foi primeiro esculpida
nas paredes das colunas do mosteiro no Monte Cassino, tendo sido descoberta no
século XVI.
Numa das faces da medalha
está desenhada uma cruz, ao lado da qual estão gravadas as letras CSPB, as
quais significam "Cruz Sancti Patris Benedicti" (Cruz do Santo Pai
Bento).
Nas hastes da Cruz estão
inscritas outras letras com um significado profundo:
- na vertical lê-se CSSML
- Crux Sacra Sit Mihi Lux - "A cruz sagrada seja minha luz".
- na horizontal lê-se NDSMD - Non Draco Sit Mihi Dux - "Não seja o dragão meu guia".
- na horizontal lê-se NDSMD - Non Draco Sit Mihi Dux - "Não seja o dragão meu guia".
Estas são as duas
primeiras linhas da famosa e muito poderosa oração de proteção de São Bento:
A Cruz Sagrada seja a minha luz,
não seja o dragão meu guia.
Retira-te, satanás!
Nunca me aconselhes coisas vãs.
É mau o que tu me ofereces, bebe tu mesmo o teu veneno!
Ámen, ámen, ámen.
A bênção de Deus Todo Poderoso,
Pai, Filho e Espírito Santo,
desça sobre nós e permaneça para sempre.
Ámen.
A oração de proteção de São
Bento é, também, muitas vezes rezada em Latim, especialmente como oração para
fazer um exorcismo:
Crux Sacra Sit Mihi Lux
Non Draco Sit Mihi Dux
Vade Retro Sátana Nunquam Suade Mihi Vana
Sunt Mala Quae Libas Ipse Venena Bibas
Non Draco Sit Mihi Dux
Vade Retro Sátana Nunquam Suade Mihi Vana
Sunt Mala Quae Libas Ipse Venena Bibas
No topo da Cruz
lê-se "Pax", o lema da Ordem de São Bento, ou, outras vezes,
"IHS", o monograma de Cristo.
À direita da
palavra Pax, estão as iniciais V R S N S M V, que representam a
frase seguinte da oração de São Bento: Vade Retro Sátana Nunquam Suade Mihi Vana -
"Retira-te, satanás, nunca me aconselhes coisas vãs!"
e depois, seguindo o
movimento dos ponteiros do relógio, estão as iniciais S M Q L I V B, que são a
última frase da oração: Sunt Mala Quae Libas Ipse Venena Bibas - "É mau o
que me ofereces, bebe tu mesmo os teus venenos!".
Portanto, a
medalha de São Bento contém a sua poderosa oração de proteção, e por esse
motivo ela é um escudo especialmente forte de proteção contra os inimigos,
sendo um escudo contra todo o tipo de mal.
No reverso da medalha
encontra-se a figura de São Bento, tendo na mão esquerda o livro da Regra
que escreveu para os monges e, na outra mão, a Cruz.
Em redor da sua imagem
lê-se: EIUS - IN - OBITU - NRO - PRAESENTIA - MUNIAMUR - "Sejamos
confortados pela presença de São Bento na hora de nossa morte".
Junto da figura de São
Bento vemos representados dois dos maiores milagres que protagonizou: um cálice
do qual sai uma serpente e um corvo com um pedaço de pão na boca. Ambos são
representativos de duas tentativas de envenenamento às quais São Bento conseguiu
escapar pela força da sua Fé, sendo este santo também protetor contra
envenenamentos.
ORAÇÃO A SÃO BENTO
Oração
Ó glorioso Patriarca São Bento, que vos
mostrastes sempre compassivo com os necessitados, fazei que também nós,
recorrendo a vossa poderosa intercessão, obtenhamos auxílio em todas as nossas
aflições. Que nas famílias reine a paz e a tranquilidade; afastem-se todas as
desgraças, tanto corporais como espirituais, especialmente o pecado. Alcançai
do Senhor a graça que vos suplicamos, obtendo-nos finalmente que, ao terminar
nossa vista neste vale de lágrimas, possamos louvar a Deus.
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